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Revisão das 02h29min de 23 de janeiro de 2007
Que lindo está o dia, exclamou o coronel, chegando à porta que dizia para o terreiro. - Um tempo firme, sim senhor! Jacinto!
— Sinhô ! acudiu um preto velho.
— Para onde foi a gente hoje?
— Foi a cortar arroz, sim, sinhô.
— Onde está Manduca?
— Sinhô moço mandou ensilhar o rozilho, e foi para a banda da vila, sim sinhô.
O coronel respirou à larga o ar fresco, puro, da manhã resplendente. Dormira toda a noite, não tivera dores, estava bem disposto. Queria expandir-se, queria conversar.
— Logo hoje que estou sequioso por uma prosa é que me foge o Manduca, é que se deixa ficar na cama a Lenita! Forte coisa ! Vou fazer uma extravagância, vou dar uma volta pelo cafezal.
E mandou arrear uma égua velha, muito mansa, andadeira, uma rede, dizia ele. Saiu, foi visitar o cafezal, coisa que fazia raramente, uma ou outra vez por ano.
Quando voltou era quase meio-dia. Perguntou por Barbosa, não tinha vindo; por Lenita, ainda estava deitada. Veio com fome. Mandou pôr a mesa; enquanto esperava foi ao quarto de Lenita, bateu à porta.
— Que é isto? perguntou. Temos macacoa?
— Macacoa, não; sono, respondeu a moça.
— Ainda estava dormindo?
— Acordei com o seu batido.
— Olhe, levante-se, venha-me fazer companhia. O Manduca não sei para onde foi. Eu ainda não almocei, e não quero almoçar sozinho.
— Já vou.
— Pois fico esperando; venha logo, que estou com o estômago a dar horas.
A cabo de meia hora Lenita apareceu. Estava pálida, macilenta: tinha as pálpebras vermelhas, os olhos batidos, grandes olheiras. Veio embrulhada em uma peliça.
De quando em quando estremecia com um calafrio. Sentou-se à mesa meio de lado, alquebrada, lânguida.
—Melhor cara traga o dia de amanhã! Gritou o coronel ao vê-la. Parece e passou a noite no cemitério. Que é que teve?
— Uma ligeira indisposição.
— Hum! Já eu estava vendo isso mesmo ontem à noite. Ai moças, moças ! Isso enquanto não casam... Que há de querer um mingauzinho de cará?
— Não, obrigada.
— Olhe estas ervas...
— Obrigada.
— Um pedaço de fiambre?
— Fiambre... quero, mas pouco, sim?
O coronel serviu-lhe uma naca larga, rósea, marmoreada de veios de gordura branca.
Lenita polvilhou-a de sal moído, comeu com apetite.
— Está gostando de salgados, hein? Eu quando digo... Mais uma naquinha, sim?
Lenita aceitou, mandou buscar ginger-ale, bebeu um copo cheio.
Conversou com o coronel por cerca de duas horas.
Ao cair da tarde sentiu-se fraca, tomada de invencível soneira.
Recolheu-se, dormiu. Levantou-se ao escurecer. Quando ia saindo do quarto, deu com Barbosa que, de pé junto de um consolo, fingia examinar uma estatueta.
— Boa tarde, Lenita, disse ele com voz trêmula, tímido, desapontado.
A moça não respondeu: com um arranco nervoso tomou-lhe a cabeça entre as mãos, curvou-a, beijou-a sofregamente, esquisitamente, no alto, afundando, sumindo o rosto nos cabelos curtos, levemente crespos.
— Lenita, segredou em voz sumida, tênue como sopro, é perigoso, podem vê-la, encontrá-la. Eu virei é melhor.
— Aqui dorme a rapariga.
— Fácil é afastá-la sob qualquer pretexto. Deixe as portas cerradas.
Foram para a sala de jantar.
O coronel já tinha feito acender o lampião; estava de pé, junto à mesa, lendo a correspondência que minutos antes tinha chegado da vila.
— Olhe, Lenita, disse, aí estão os seus jornais, e também uma carta. Leia, leia logo a carta; é coisa que lhe interessa.
— Sim! Como sabe?
— A letra do sobrescrito é mesma desta que eu recebi. Leia.
— Que será? interrogou-se a moça, rasgando o envoltório com gesto fatigado, aborrida. Desdobrou a folha de papel, leu sem manifestar sentimento algum, com absoluta indiferença. Depois passou-a aberta ao coronel.
—Ora! Exclamou, arrastando a voz, com fastio.
— Então? Perguntou o coronel.
— Leia, está aí.
— Pois não é do Dr. Mendes Maia?
— É.
— E que lhe diz você?
— Eu digo... digo... não digo coisa nenhuma.
— Já se deixa ver que quer cala ...
— Nem sempre consente. O Dr. Mendes Maia perdeu o seu tempo, a sua retórica, o seu papel, a sua tinta e o seu selo. Eu não me caso com ele.
— É um pedido de casamento? perguntou Barbosa, ansiado.
— Em forma.
— E quem é esse Dr. Mendes Maia?
— Esse Dr. Mendes Maia é um bacharel em direito, nortista; fez seu quatriênio, e está na corte, à espera de um juizado de direito aqui na província.
— E donde o conhece D. Lenita?
— De Campinas. Estivemos juntos em um baile, no Club Semanal, há de haver três anos. Dançou comigo, fez-me a corte por duas horas, e agora pede-me em casamento.
— Meu pai também o conhece?
— Conheço: ele andou viajando por estas bandas com um primo que queria comprar sítio de café. Veio-me recomendado de São Paulo, e até pousou aqui, uma noite.
— Que espécie de homem é?
— E um bacharel em direito como a maioria dos bacharéis em direito. Parece-me boa pessoa. Homem, sou franco, para mim tem um defeito capital, é nortista. No mais, não há que dizer. Lenita, que hei de eu responder ao homem?
— Boa pergunta! Responda que eu não me quero casar que agradeço muito a honra da proposta, e coisas e tal, uma tábua cortês.
— Não valerá a pena pensar um pouco antes de decidir a coisa assim de talho, sem remédio?
— Não há que pensar, não quero.
— Olhe que o rapaz, segundo me diz o meu velho amigo Cruz Chaves, nesta outra carta que recebi, tem todos os requisitos para um bom corte de noivo: é inteligente, honesto, morigerado, trabalhador, econômico, bom católico, e muitas coisas mais. Fez o seu quatriênio como promotor e juiz municipal, está à espera de um juizado de direito, como você mesmo disse, e há de obtê-lo, porque dá-se com o Cotegipe e é muito protegido pelo Mac Dowel. E tem seus cobres.
— O partido tenta, tenta, mas eu é que me não deixo prender.
— Olhe que isto não vai a matar, não é sangria desatada, pense primeiro, responda depois.
— Não há que pensar.
— Esta mocidade! Para que tomar decisões de afogadilho, quando há tempo para refletir, para pesar todos os prós e iodos os contras?
— A resposta agora, ou daqui a um ano há de ser a mesma: não quero.
— Menina, ninguém deve dizer "deste pão não comerei".
— E nem tão pouco "desta água não beberei". Sabido, mas eu não quero mesmo.
— Bom, bom; não quer, não quer! Amanhã lá segue a recusa: que se agüente o Dr. Mendes Maia.