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Eu, que entoava na delgada avena
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Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
Armas canto, e o varão que, lá de Troia
Prófugo, á Italia e de Lavino ás praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
Muito em guerras soffreu, na Ausonia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vem da sublimada Roma.
Ou por que mágoa a soberana déa
Compelliu na piedade o heroe famoso
A lances taes passar, volver taes casos.
Pois tantas iras em celestes peitos!
Do ítalo Tibre contraposta ás fozes,
Houve, possante emporio, antigo, asperrimo
N’arte da guerra; ao qual, se conta, Juno
Até pospoz a predilecta Samos:
No orbe enthronal-a então já traça e tenta.
Porêm de Teucro ouvira que a progenie,
Dos Penos subvertendo as fortalezas,
Viria a ser, desmoronada a Libya,
Que assim no fuso as Parcas o fiavam.
Saturnia o teme, e a pró dos seus Achivos
Recorda as lides que excitara em Troia;
Nem d’alma aggravos risca, dôres cruas:
A injúria da belleza em menoscabo,
E a raça detestada e as honras duram
Do rapto Ganymedes. Nestes odios
Sôbre-accesa, os da Grecia e immite Achilles
Por todo o plaino undísono atirados;
E, em derredor vagando annos e annos,
De mar em mar a sorte os repulsava.
Tam grave era plantar de Roma a gente!
Ledos e o cobre rompe a salsa espuma,
Juno, dentro guardada eterna chaga:
"Eu, diz comsigo, desistir vencida!
Nem vedar posso a Italia ao rei dos Teucros!
Não queimou Pallas mesma, submergindo-os
Só de um Ajax Oileu por culpa e furias?
Do Tonante o corisco ella das nuvens
Darda, os baixéis desgarra, o ponto assanha;
N’um torvelinho em rocha aguda o crava:
E eu, que raínha marcho ante as deidades,
Mulher e irmã de Jove, tantos annos
Guerreio um povo! E a Juno ha quem adore,
No âmago isto fermenta, e a deusa á patria
De austros furentes, de chuveiros prenhe,
A’ Eolia parte. Aqui n’um antro immenso
O rei preme, encarcera, algema, enfreia
Em tôrno aos claustros de indignados fremem
Com gran’rumor do monte. Em celsa roca
Sentado Eolo, arvora o sceptro, e as iras
Tempera e os amacia. Que o não faça,
Lá se vam pelos ares. Cauto, em negras
Furnas o omnipotente os aferrolha,
E, um cargo de montanhas sobrepondo,
Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas
O exora humilde: "Eolo, o pae dos divos
E rei dos homens te concede as ondas
Sublevar e amainal-as; gente imiga
Me sulca as do Tyrrheno, Ilio e os domados
Ventos açula, as pôpas mette a pique,
Ou dispersas no ponto as espedaça.
Quatorze esbeltas nymphas me cortejam,
Das quaes a mais formosa, Deiopeia,
Que em paga para sempre a ti se vote,
Meiga te procreando egregia prole."
A quem Eolo: "Que o desejes basta;
Meu, raínha, he servir-te. Quanto valho
Tu dás-me á diva mesa o recostar-me,
Ser em tufões potente e em tempestades."
Dice; e um revez do conto a cava serra
A um lado impelle: em turbilhão, cerrados
As terras varejando. Ao mar carregam,
E horrísonos revolvem-lhe as entranhas
Nôto mais Euro, e de borrascas fertil
Africo; ás praias vastas ondas rolam.
Some-se ao nauta o céo, tolda-se o dia;
Pousa no pelago atra noite; os polos
Toam, o ether fuzila em crebros raios:
Tudo ameaça aos varões presente a morte.
E alça as palmas e exclama: "Afortunados
Oh! tres e quatro vezes, d’Ilio ás abas,
Os que aos olhos paternos feneceram!
O’ dos Danaos fortissimo Tydides,
Não ficar eu nos campos, onde o bravo
Heitor d’Eacide ás lançadas, onde
Sarpédon jaz magnanimo, onde o Simois
Corpos e elmos de heroes e escudos tantos
Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas
Rasga o panno, e a mareta aos astros joga.
Remos estalam; cruza a proa, e o bórdo
Rende; escarpado fluido monte empina-se.
N’um sorvedouro á terra entre marouços:
Remoínha o esto na revôlta arêa.
Tres rouba Nôto e avexa n’uns abrolhos,
Abrolhos sob o mar, que Italos aras
Tres no parcel (que lastima!) Euro esbarra,
Encalha em vaos, de marachões rodêa.
Uma, em que Oronte fido e os Lycios vinham,
Ante Enéas, d’avante humido rôlo,
Fere-a; do baque o prono mestre vôlto
Cahe de cabeça. O vagalhão tres vezes
Torce-a, revira, um vortice a devora.
Raros no vasto pégo a nadar surdem;
Prêa das ondas. A tormenta escala
A nau robusta de Ilioneu, de Abante,
As de Alethes grandevo e Achates forte:
Todas, frouxadas as junturas, sorvem
Mugir seu reino e o temporal desfeito,
Caixões do imo a brotar, sentiu Neptuno,
Torvo, abalado, e acode acima e exalta
A placida cabeça. A frota esparsa
Da marejada e do ruído ethereo.
De Juno irosa o dolo o irmão percebe;
Euro e Zephyro chama: "Herdastes, ventos,
Tal presumpção, que sem meu nume, ousados,
Eu vos... Mas insta abonançar as vagas:
Caro m’o pagareis, guardo o castigo.
Ao rei vosso intimai, já já, que em sorte
Não lhe coube este imperio, que o tridente
Euro, vossas mansões: nessa aula ufano
Sôbre enclaustrados ventos reine Eolo."
Nem cessa, e o mar se lança, o tempo alimpa
E abre o Sol. Finca a espadoa, e com Cymóthoe
Mesmo o padre as alliva com seu sceptro,
Amplas syrtes afunda, aplaca os mares,
Por cima em rodas se deslisa leves.
Como, enraivado em popular tumulto,
Já voa, as armas o furor ministra;
Mas, se um pio ancião preclaro assoma,
Calam, para escutar o ouvido afiam;
Elle os convence e os animos abranda:
Quando olha o deus, que os brutos no ar sereno
Dobra, e dá loros ao ligeiro carro.
Da costa proxima em demanda, á Libya
Os cansados Eneadas aproam.
Faz barra ilha fronteira, onde a mareta
Quebra e se escoa em sinuosas rugas:
Penedia em redondo, e ao céo minazes
Ha dous picos irmãos, a cujo abrigo
Selvas prolonga-se eminente scena,
Descahe de atra espessura horrida sombra;
No tôpo ha gruta em pêndulos cachopos,
Com doce fonte, e em viva rocha bancos
Nem mordaz ferro adunco as lassas quilhas.
Com sete naus ao todo arriba Enéas;
E amorosos da terra, alvoroçados
Saltando os seus, do sal tabidos membros
Toma em folhas, e em roda as accendalhas,
Nutre a faisca, e em lenha a chamma atêa.
Mareados pães e cereaes aprestos
Já desembarca a trabalhada chusma,
Trepa emtanto um penhasco, e ao largo Enéas
Regyra, a vêr se undívagos alcança
Antheu ou Capys, as biremes phrygias,
Ou armas de Caíco em altas pôpas.
Na praia errantes; segue atrás o armento,
E enfileirado pelos valles pasta.
Retem-se, e o arco aferra e as settas ageis
Que armam Achates fido, e os guias logo,
Embrenha a demais turba e acossa a tiros,
Té que derriba sete ingentes corpos,
E iguala as naus. De vólta, elle os divide.
E os barris que, á partida, o heroe trinacrio
Dulcíloquo os mitiga: "Os males, socios,
Nada estranhamos; oh! mais agros foram:
Deus porá termo a estes. Vós de Scylla
De perto a raiva e escolhos resonantes,
Animo! esse temor bani tristonho;
Talvez isto com gôsto inda nos lembre.
Por varios casos, transes mil, nos vamos
Ao Lacio onde o repouso os fados mostram:
Tende-vos duros, da bonança á espera."
Tal discursa, e affectando um ar seguro,
N’alma inferma suffoca a dôr profunda.
Lestos á presa atiram-se: este esfola,
Qual trementes no espeto enrosca os lombos,
Qual fogo atiça aos caldeirões na praia.
Fartos, na relva espalham-se, refeitos
De velho baccho e veação opíma.
Dubios indagam, sôbre os seus praticam
Entre medo e esperança: estam com vida?
Ou na extrema agonia ao brado surdos?
Mormente o pio rei de Amyco chora
E o forte Gyas e Cloantho forte.
Das alturas, no fim, Jove esguardando
O mar velívolo e as jacentes plagas
E amplas nações, no vertice do Olympo
Quando o absorviam taes cuidados, Venus
Triste, os gentis luzeiros orvalhando:
"O’ tu, queixou-se, que os mortaes e os deuses
Reges eterno e horrísono fulminas,
Que após tragos lethaes, não só d’Italia,
Do universo os cancellos se lhes fecham?
Roma delles tirar, delles os cabos
Que, eras volvendo, restaurado o sangue
Nos prometteste: quem mudou-te, ó padre?
Do occaso ao menos e desgraças d’Ilio
Isto, uns fados com outros compensando,
Me consolava. Igual fortuna arrasta
Quando os findas, gran’rei? De Acheus escapo,
Entrar salvo Antenor d’Illyria o seio
E internar-se em Liburnia, e a fonte obteve
De Timavo transpôr, donde por bôcas
Ruidoso mar que empola e o campo alaga.
Sentou Patavio aqui, deu casa a Teucros,
Nome á gente, e os brasões fixou de Troia;
Descansa em doce paz. Nós tua estirpe,
Ah! de uma por furor, victimas somos,
Longe expulsos d’Italia? Deste modo
Se honra a piedade, os sceptros nos reservas?"
Sorrindo-se o autor de homens e numes,
Da filha osculos liba, e assim pondera:
"Poupa esse medo, Cypria; immotos jazem
Dos teus os fados: nas lavinias tôrres
Has de revêr-te, e alar sôbre as estrellas
O heroe na Italia (esta ancia te remorde,
Vou rasgar-te os arcanos do futuro)
Guerras tem de mover e amansar povos,
E instituir cidades e costumes,
Terceiro estio, e os Rutulos domados,
Forem-se tres invernos. Posto ao leme
Ascanio, que hoje Iulo cognominam
(Ilo, em quanto florente Ilion se teve),
Ha-de, a séde lavinia trasladada,
Alba longa munir e abastecel-a.
Os Hectoreos aqui trezentos annos
Já reinarão, quando a vestal princeza
Da nutriz loba em fulva pelle ovante,
Romulo ha de erigir mavorcios muros,
E á recebida gente impôr seu nome.
Métas nem tempos aos de Roma assino;
Que o mar ciosa e a terra e o céo fatiga,
Transmudada em melhor, tem de amparar-me
Do orbe os senhores e a nação togada.
Praz-me assim. Manem lustros, que inda a casa
Senhora, e agrilhoar Mycenas clara.
D’Iulo garfo egregio, em nome e glória
Succedendo, as conquistas no oceano
Cesar teminará, nos céos a fama.
Onusto, o acolherás; e humanas preces
Tem de invocal-o. Então, deposta a guerra,
Se amolgue a ferrea idade; a encanecida
Fé com Vesta, os irmãos Quirino e Rhemo
Com trancas e aldrabões; sôbre armas cruas
Dentro o impio Furor sentado, e roxos
Atrás os pulsos em cem nós de bronze,
Hediondo ruja com sanguinea bôca."
Porque a recem Carthago hospicio aos Teucros
Franquêe, nem, do fado inscia, a raínha
Os extermine. O deus pelo ar patente
De azas remando, em Libya o vôo abate;
Despe; e Dido primeira em pró dos Phrygios
Brandos affectos placidos concebe.
Toda a noite pensoso o heroe velando,
A alma luz mal branqueja, onde arribara
Inquirir quem as tem, se homens, se feras,
E aos seus noticial-o. As naus mettidas
N’abra de uns bosques sob cavada penha,
Entre verde espessura e negras sombras,
Duas hastes que empunha de ancho ferro.
Da selva em meio a mãe se lhe apresenta,
Virgem no trajo e aspecto, em armas virgem
Lacena; ou qual Harpálice a threícia
Pois do hombro o arco destro, á caçadora,
Pendura, e ás auras a madeixa entrega,
Dos joelhos nua e a falda em nó colhida.
Eil-a: "O’ jovens, errante aqui topastes
De javali sanhudo? A cinta aljava
Tem sobre a pelle de um manchado lynce."
Isto Venus; e o filho assim responde:
"Nenhuma ouvi nem vi das irmãs tuas,
Nem voz de humano som; es deusa, ó virgem:
Irmã de Phebo ou nympha? As nossas penas
Tu, por quem es, minora: e nos ensina,
Pois vagueâmos sem saber por onde,
Vento e escarcéo medonho. Hostias sem conto
Havemos de immolar nas aras tuas."
"Não mereço honras taes, replíca Venus;
Usam de aljava, e ao bucho as virgens tyrias
Punicos reinos e agenorios muros
Vês, nos confins da indomita e guerreira
Libyca raça. O imperio atêm-se a Dido,
Que, por fugir do irmão, fugiu de Tyro.
Mas traçarei seu curso em breve summa.
Sicheu, Phenicio em lavras opulento,
Foi da misera espôso, e müito amado:
Com bom preságio o pae lha dera intacta.
Barbaro irmão, do estado se empossara.
Interveio o furor: de fome de ouro
Cego, e á paixão fraterna sem respeito,
Perfido, impio, a Sicheu nas aras mata;
Da amante afflicta largo espaço illude
Com mil simulações. Mas do inhumado
Consorte, com esgares espantosos,
Pallida em sonhos lhe apparece a imagem:
A ara homecida, os retalhados peitos
Desnuda, e á patria intíma-lhe que fuja:
Prata immensa e ouro velho, soterrados,
Para o exilio descobre. Ella, inquieta,
Que ou rancor ao tyranno ou medo instiga;
Acaso prestes naus, manda assaltal-as;
Dos thesouros do avaro carregadas
Empégam-se: a mulher conduz a empresa!
Verás medrando agora e ingentes muros:
Mercam solo (do feito o alcunham Byrsa)
Quanto um coiro taurino abranja em tiras.
Mas vós-outros quem sois? donde he que vindes?
Esta resposta suspirando arranca:
"O’ déa, se recorro á prima origem,
E annaes de angústias não te pejam, Vesper
No Olympo encerra o dia antesque eu finde.
Vagos no equoreo campo, arremessou-nos
Casual tempestade ás libyas costas.
Enéas sou, com fama alèm dos astros,
Que livrei de hostil garra os meus penates,
Do summo Jove a geração procuro.
Por guia a deusa mãe, submisso aos fados,
Em vinte naus commetto o phrygio ponto;
Rôtas do Euro e das ondas, restam sete.
D’Asia e d’Europa excluso..." Nem mais Venus
Lamentos comportou, na dôr o atalha:
"Quem sejas, creio, não do céo malquisto,
Gozas d’aura vital, que a Tyro aportas.
Sem risco os socios, ancorada a frota,
Com o rondar dos áquilos, te auguro,
Se em arte vã meus paes não me instruiram.
Attenta cysnes doze em bando alegres:
A ave de Jove; n’um cordão agora
Ou tem no pouso a mira, ou vam pousando;
Juntos batendo as estridentes azas,
Brincam cingindo o pólo, a salvo cantam:
Ou de véla enfunada a foz embocam.
Sus, alli te dirige, a estrada he esta."
Dá costas, e a cerviz rosada fulge,
De ambrosia odor celeste a coma expira;
Vera deusa. Elle atrás da mãe fuginte,
Reconhecendo-a, brada: "Porque o filho
Com taes ficções, cruel, enganas tanto?
Ligar dextra com dextra, ouvir-te ás claras,
Tal a argúe, e ás muralhas se endereça.
Ella porêm de ar fusco os viandantes
Tapa e os embuça em nevoa, que enxergal-os
Ou tocar ninguem possa, nem detel-os
Remonta, a espairecer no sítio ameno
Onde o sabeu perfume arde em cem aras,
E recentes festões seu templo aromam.
Eis da azinhaga pela trilha cortam,
A fronteira torrígera cidade.
Palhaes d’antes, a mole admira Enéas,
Admira o estrondo e as portas e as calçadas.
Tyro aferventa-se, a lançar os muros,
Parte com sulcos marca os edificios;
Santo augusto senado, e o foro e a curia,
Se cria e elege: aqui se escavam portos;
Fundam-se alli magnificos theatros,
Pompa e decoro das futuras scenas.
Quaes abelhas ao sol por floreos prados
Lidam na primavera, quando ensaiam
O adulto enxame; ou doce fluido espessam,
Ou quando a carga das que vem recebem;
Ou em batalha expulsam da colmêa
Os zangãos, gente ignava. A obra ferve,
E a tomilho recende o mel fragrante.
Exclama o heroe, e os coruchéos contempla.
Na cidade não visto, oh maravilha!
Se mistura ennublado. Em meio havia
Luco umbroso e fresquissimo, onde os Penos,
O tésto de um corsel, de Juno régia
Mostra e penhor que o povo, asado á glória,
Pugnaz e duro, insultaria os evos:
Lá punha Dido a Juno insigne templo,
No bronzeo limiar da<ref>No original, consta ''dá''.</ref> bronzea escada,
Craveja o bronze as traves, e a couceira
Range em portões de bronze. Um novo objeto
N’este bosque a lenir entra os receios;
E prometter-se allívio em seus pezares:
Pois quando, á espera da raínha, o templo
Nota peça por peça, quando o enlevam
De Carthago a fortuna, o gôsto fino,
A fio as guerras d’Ilion, pelo orbe
Já soadas; o Atrida, o rei troiano,
E terror de ambos sebresahe<ref>'Sebresahe'' está por ''sobresahe'', erro tipográfico corrigido na segunda edição.</ref> Achilles.
Pára, e em lagrimas diz: "Que sítio ou clima
Eis Priamo! o louvor tem cá seus premios,
Doe mágoa alheia, e remanece o pranto.
Coragem! que em teu bem conspira a fama."
Dice, e em vãos quadros se apascenta, e as faces
Vê de Pérgamo em roda a hoste graia
Do phrygio ardor fugir, fugir a teucra
Do instante carro do emplumado Achilles.
Ai! perto a Rheso por traição Tydides,
De carnagem cruento; e os acres brutos
Volve ao seu campo, sem gostado haverem
De Troia os pastos, nem bebido o Xantho.
Triste! as armas perdendo, alêm, Troílo,
He dos corséis tirado, e resupino,
Mas tendo os loros, do vazio carro
Pende; e a cerviz no pó, de rojo a coma,
Virada a lança hostil na arêa escreve.
Ao templo iam tambem da iniqua Pallas,
O peplo humildes offertando, e os peitos
Com punhadas ferindo: aversa a déa
Olhos no chão pregava. A Heitor Pelides
De ouro a pêso vendia-lhe o cadaver.
Do imo um gemido grande Enéas sólta,
No olhar o espólio, o coche, o amigo exanime,
E a Priamo estendendo as mãos inermes.
Do negro rei do eôo a turma e as armas
A’ testa de milhares de Amazonas
Com lunados broquéis, Penthesiléa
Se abraza em furia, bellicosa atando
E virgem com varões brigar se atreve.
Quando extatico o heroe se embebe e enleia,
Ao templo a formosissima raínha
Marcha, de jovens com loução cortejo.
Pelos serros Diana exerce os coros,
E, de infindas Oreadas seguida,
Carcaz ao hombro, em garbo as sobreleva;
Rega-se em gôzo tacito Latona:
Do seu reino a grandeza apressurando.
No adyto sacro, em meio do zimborio,
De armas cercada, em solio majestoso
Senta-se. Os pleitos julga e leis prescreve,
Subito Enéas no tropel devisa
A Cloantho brioso, Antheu, Sergesto,
E os mais que atra borrasca a longes costas
Remessara dispersos. Elle e Achates
Avidos ardem por travar as dextras;
Fôrça ignota os perturba. Dissimulam;
Qual a sorte dos seus do encêrro espreitam
Nebuloso, e onde surta a frota seja,
Clamando, a pedir venia, ao templo acodem.
Introduzidos, quando a vez tiveram,
Rompe o idoso Ilioneu, facundo e grave:
"Raínha, ó tu que por favor supremo
Suberbas gentes, os Troianos ouve,
Que, dos ventos ludíbrio, os mares cruzam:
Livra do infando incendio a pia armada,
Poupa innocentes, nossa causa attende.
Nem saquear os lybicos penates:
A vencidos não cabe audacia tanta.
Paíz antigo existe, em grego Hesperia,
Armipotente e uberrimo, colonia
Que, de um seu capitão, se diz Italia:
Esta era a nossa róta; eis que em vaos cegos
Deu comnosco de salto Orion chuvoso,
E, em sanha o pelago e os protervos austros,
Poucos ganhámos pé nas vossas praias.
Patria e raça feroz! barbara usança!
Pisar em terra mãos hostis vedam;
Da arêa o asylo a náufragos prohibem.
O céo mede as acções, premeia e pune.
Rei nosso Enéas he, que a ninguem cede,
Pio e inteiro, valente e bellicoso:
Se aura ethérea o sustenta e o guarda o fado,
De o penhorar primeira não te pezes.
Cidades em Sicilia e campos temos,
E do sangue troiano o claro Acestes.
Amarrar nos permitte a lassa frota,
Com que ledos, se Italia nos espera,
Os socios e o rei salvo, ao Lacio vamos:
Mas, se te ha consumido o lybio pégo,
Optimo pae dos Teucros, nem d’Iulo
Donde arribámos, a lograr voltemos
A apercebida sicula hospedagem,
E o regio amparo." O Dárdano termina:
Lavra entre os seus approvador sussurro.
"Sus, Teucros, esforçai. Recente o estado
Ao rigor me constrange, e a defender-nos
Guarnecendo as fronteiras. Quem de Enéas
Desconhece a prosapia, e as guerras d’Ilio,
Nem somos nós tam broncos, nem de Tyro
Tam desviado o Sol junge os cavallos.
Quer da saturnia Hesperia, quer as margens
D’Erix opteis, em que domina Acestes,
Folgais de aqui ficar? Esta cidade
Que erijo, he vossa; as naus que se approximem:
Não farei destincção de Phrygio a Peno.
Fôsse o rei vosso á Libya compellido
E os sertões perlustrar; se he que o naufragio
Em povoado ou brenha o traz perdido."
Ambos álerta, o padre e o companheiro
Ha müito almejam por quebrar a nuvem.
"Nado de Venus, que tenção meditas?
Tens a frota em seguro, os teus bemquistos;
Um só que falta, sossobrar o vimos:
Ao que a mãe te esboçou quadra o mais tudo."
Se rompe e funde nos delgados ares.
Um deus na espalda e vulto, á claridade
Resplende Enéas; que n’um sôpro a deusa
Ao filho a cabelleira em fulgor banha,
Em vivo terno agrado os olhos bellos:
Qual, pela indústria, com entalhos de ouro
Pário marmore, ou prata, ou marfim brilha.
De improviso á raínha e a todos clama:
Enéas sou. O’ tu que só tens mágoa
De tanto horror, que a nós de Troia restos,
Da Grecia escarneo, em terra e mar batidos,
Falhos de tudo, exhaustos, em teu reino,
Nem pagar-te as finezas dignamente
Podêmos, Dido, nem os Phrygios todos
Quantos pelo universo peregrinam.
Se para os bons ha numes, he justiça,
Que seculo feliz, que paes ditosos
Te houveram filha? Em quanto os vagos rios
Forem-se ao mar, em quanto em gyro a sombra
Vier do monte ao valle, em quanto o pólo
Vivirá com louvor teu nome e fama."
Dice; a dextra offerece ao velho amigo,
A sinistra a Seresto, e uns após outros,
A Gyas, a Cloantho, e aos mais guerreiros.
Tal successo a commove, e assim se exprime:
"Que fado te urge, ó filho da alma Venus,
A arduos perigos e a bravias plagas?
Es o Enéas que a deusa ao nobre Anchises
Bem me lembra que Teucro, expatriado,
Veio a Sidonia, para um novo assento,
Pedir a Belo ajuda: a opima Chypre
Já vencedor meu pae vastara e tinha.
Teu nome, e os rêis pelasgos. Sempre ufano
Da anciã linhagem teucra, elle ofendido
Com enthusiasmo elogiava os Teucros.
Eia, á minha morada, ó moços, vinde.
Cá me fixaram. Não do mal ignara
A socorrer os miseros aprendo."
Isto a Enéas memora, e o guia aos paços,
E em solemne festejo occupa as aras.
Touros vinte, co’as mães cem gordos anhos,
Cem corpulentos sedeúdos porcos,
E o doce mimo do jocoso Bromio.
Luxo esplende real no interno alcaçar,
Primoroso o tapiz, de ostro suberbo;
Nas mesas prataria; em ouro a historia
Patria esculpida, successão longuissima
De uns a outros varões desde alta origem.
Todo em seu filho está; para informal-o
E o conduzir de bórdo, expede Achates.
De troico exicio as preservadas prendas
Venham tambem: de escamas de ouro um manto
De croceo acantho, ornatos peregrinos.
Dons maternos de Leda á bella Argiva,
Que a Pérgamo os trouxera de Mycenas
A’ incasta boda; e o sceptro que Ilione,
E engranzado collar de perlas finas,
E aurea coroa de engastadas gemmas.
Executivo ás naus caminha Achates.
Nova traça urde a Cypria, alvitres novos;
Com os dons nos ossos á raínha infiltre
Insano fogo. A estancia ambigua, os Tyrios
Bilingues teme; Juno atroz a inflamma;
Tresnoitada a pensar, por fim conjura
Unico e meu poder, filho, que em pouco
Tens as typhéas soberanas armas,
Es meu refúgio, teu socorro imploro.
Sabes que a teu irmão de praia em praia
E doe-te a nossa dôr. Com mil caricias
Tem-no a Sidonia Dido; e o paradeiro
Dos junonios hospicios mal enxergo:
O ensejo he de tental-a. Eu receosa
A raínha; que um nume a não trastorne,
Mas firme, quanto eu mesma, a Enéas ame.
Ouve o como ha de ser. O infante regio,
Desvelo meu, do genitor chamado,
Das vagas restos e das teucras chammas.
Sopito em somno o esconderei no idalio
Jardim sacro, ou nos bosques de Cythera,
Porque os ardis não turbe inopinado.
Do menino as feições veste menino;
E, entre o lieu licor e as reaes mesas,
Quando em seu gremio Dido, em cabo leda,
Amplexos te imprimir e doces beijos,
A’ voz da cara mãe depondo azas,
Finge gozoso Amor de Iulo o porte.
Ella em somno abebera o neto amado;
No collo amima e o sobe ao luco idalio,
Entre flores o abraça e fresca sombra.
E obediente os regios dons Cupido
Leva aos Tyrios, folgando após Achates.
Já d’aurea tela em sumptuoso leito
Com sequito luzido o heroe concorre;
Tomam seu posto em purpura excellente.
Dá-se agua ás mãos, em canistréis vem Ceres,
Toalhas servem de tosada felpa.
Arrumam dentro, aos divos thurificam;
Cem outras e iguaes moços põem nas mesas
A baixella, a bebida e as iguarias.
Em mó nas salas festivaes, os Tyrios
O padre, o falso Ascanio, o vulto admiram
Flagrante e a voz do deus; o manto, as joias,
De croceo acantho o véo. Não farta a mente
A misera Phenissa, á mortal peste
O menino e seus dons. Do pae fingido
Elle nos braços, do pescoço appenso,
Mal sacia-lhe o amor, vai-se á raínha.
Com olhos e alma se lhe apega Dido,
Que deus afaga. O alumno de Acidalia
Sicheu aos poucos remover começa,
E intenso ardor insinuar procura
N’um coração já frio e ha müito esquivo.
Bolham, coroados, em bojudas copas.
Retumba o tecto, o estrepito por amplos
Atrios reboa; de aureas architraves
Pendentes lustres e os brandões accesos
Pede-a logo a raínha, e do mais puro
Enche a taça, que desde Belo usaram
Seus avós. Nos salões tudo em silencio:
"Jupiter, se he que aos hóspedes legislas,
Faze aos vindouros memoravel: Baccho
Porta-jubilo assista, e a boa Juno;
Vós o convite celebrai-me, ó Tyrios."
Em honra então na mesa o vinho entorna,
A Bycias provocando: elle aguçoso
Empina a espumea taça, em transbordante
Ouro se ensopa: toda a côrte o imita.
Logo entoa as lições do sabio Atlante
Canta a solar fadiga, a Lua instavel;
Donde homens e animaes, bulcões e raios;
Donde o nimboso Arcturo, e os Triões gemeos
E as Hyadas provêm; como apressados
Ou que demora estorva as tardas noites.
Penos e Troas á porfia o applaudem.
O serão entretida ia estirando
A infeliz Dido, e longo o amor bebia,
De Heitor; que armas da Aurora o filho tinha,
Diomedes que frisões; que jando Achilles.
"Do princípio antes, hóspede, as insidias
Graias, dice, nos conta, e o patrio excidio,
De praia em praia todo o mar voltêas."<ref>No original de Odorico, faltam estas aspas, óbvio erro tipográfico.</ref>
</poem>
</div>
==Notas==
<references/>
[[Categoria:Eneida Brasileira|Livro I]]
[[en:Aeneid/Book I]]
[[fr:L’Énéide, Chant I (Traduction de Jean Regnault de Segrais)]]
[[it:Eneide/Libro primo]]
[[la:Aeneis - Liber I]]
[[nl:Nederlandse vertaling van de Aeneïs/Boek I]]
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