Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Importação automática de artigos |
Importação automática de artigos |
||
Linha 11:
Relatava o vigário de Caldelas:
Até aqui o padre Osório com a sua grande prática etnológica dos usos e costumes dos maridos sertanejos do Minho.
O mano lavrador não era mais apontado em melindres de pundonor. Assim como curara em silêncio o coração, golpeado pelas deslealdades da defunta Genoveva, do mesmo modo se acomodara com os estragos sofridos nos tegumentos da cabeça. Dizialhe o administrador que querelasse contra o Zeferino, porque havia testemunhas indicativas que faziam prova. Não quis.
No entanto, Zeferino debatia-se num azedume de desesperado, muito má-língua, insano de paixão, a degenerar para facínora em teorias de escavacar meio mundo. Começou a superar-lhe nas entranhas o vício do pai com sedes ardentes de vinho do Porto e genebra. Sentia alívios, consolações inefáveis, quando se embebedava; rejuvenescia; a vida encarava-se-lhe melhor. Arranchava com vadios nas noitadas das tavernas onde se jogava esquineta e monte. Trocava na mesa da tavolagem peças de duas caras que comprara no tempo em que amealhara dez mil cruzados com dez anos de trabalho. Os parceiros roubavam-no. Vinham de noite de Famalicão a Landim, perto das Lamelas, jogadores professos, armar a forquinha ao pedreiro com cartas marcadas e pego. Depois das perdas, quando se via atascado na esterqueira do jogo e da borracheira, embriagava-se de novo, e nessas alucinações ia a Prazins, de clavina ao ombro, com o Tagarro de Monte Córdova, e falava alto, com petulância, paira que Marta o ouvisse. O brasileiro e o Simeão tinham-lhe medo e não abriam as janelas depois do Sol posto.
Linha 21:
Espalhou-se então a notícia de que o brasileiro ia efectivamente casar com a sobrinha.
O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta anónima, que era um traslado aumentado do depoimento do pedreiro que vira o José Dias saltar da janela. E por fim ameaçava-o:
Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco Melro da Pena, um taverneiro de olhos estrábicos, de alcunha o Alma Negra, um que o tinha avisado, quando a malta da patuleia tencionava agarrá-lo. O Melro rompera relações com o Zeferino, por causa da partilha de uns dinheiros apanhados na mala do correio de Guimarães, e dizia hiperbolicamente ao seu compadre que o Zeferino, quando andara na patuleia, era ladrão como rato.
O Melro era má bisca. Estivera três anos na Relação como cúmplice num homicídio que se fizera na sua tasca. Vivia apertadamente com mulher e quatro filhos, e não cessava de pedir empréstimos ao compadre desde que o avisara. Quando o Simeão foi espancado, o Melro logo lhe disse era segredo que quem lhe batera fora o Zeferino, com as costas guardadas par dois pimpões do Monte Córdova. E acrescentou:
O Feliciano deu um passeio para os lados da Pena, onde morava o compadre. Disse-lhe que ia ver a quinta da Comenda que se vendia; que lha fosse mostrar. Conversaram; e, no regresso, pararam em frente de uma casa com três janelas e um quintal espaçoso.
O brasileiro pôs o monóculo e leu um bilhete pregado na porta com quatro tachas: Domingo, às 10 da manhã, depois da missa, vai à praça a quem mais der sobre a avaliação judicial de 500$000 réis esta casa, dízima a Deus, para partilhas. O Feliciano leu, retirou-se apressado para que o não vissem, murmurando quaisquer palavras a que o compadre Melro respondeu:
Feliciano seguiu para Prazins e o Melro disse aos fregueses da taverna que o seu compadre ia comprar a quinta da Comenda, e que estivera a ler o escrito da casa do Cambado que se vendia, e dissera que talvez a comprasse para a dar a um afilhado...
O Melro, às 8 da noite, quando os fregueses desalojaram, fechou a taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse à mulher:
<poem>
Linha 64:
</poem>
E o Melro numa distracção lírica:
Linha 75:
Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um frémito áspero impedido pelas escórias nitrosas. Pediu à mulher umas febras de algodão em rama, enroscou-as numa agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do cano.
<poem>
Linha 88:
Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia, introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes, acompanhando o movimento com o dedo polegar, paira certificar-se de que o desarmador, a caixeta e o fradete trabalhavam harmonicamente. Levantou o fuzil de aço, que fez um som rijo na mola, e friccionou-o com pólvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou a aresta da pederneira que faiscava.
<poem>
Linha 96:
</poem>
A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus de Braga, e às almas santas benditas. Ele encarou-a de esconso, e regougou:
Carregou a. clavina com a pólvora de um cartucho; bateu com a coronha no sobrado, e deu algumas palmadas na recâmara para fazer descer a pólvora ao ouvido. Fez duas buchas do papel do cartucho, bateu-as com a vareta ligeiramente, uma sobre a pólvora e a outra sobre a bala.
Linha 113:
A mulher fora sentar-se no sobrado, à beira da enxerga de três filhos a chorar; o mais novo esperneava, dava vagidos na cama a procurá-la. Ó Alma Negra fora dentro beber uns tragos de aguardente, voltou enroupado num capote de militar, despojo das batalhas da Maria da Fonte.
Era uma noite de Fevereiro, de névoa cerrada, um céu de carvão pulverizado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma estrela. Não se agitava um galho de árvore nua movido pelo ar nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e imota das catacumbas. As vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras a fuga rápida das hardas, dos toirões e das raposas que se avizinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar de um gato-bravo, o pio da coruja no campanário distante punham arrepios de medo na espinha daquele homem que ia matar outro
Em noites assim, o Universo seria o imenso vácuo precedente ao Fiat genesíaco, se os viandantes não esbarrassem com as árvores e não escorregassem nos silvedos das ribanceiras. O noctívago sente na sua individualidade, nos seus calos e no seu nariz, a doce impressão panteísta das árvores e dos calhaus. Que este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanso que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os celerados das aldeias que larapeiam o presunto do vizinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas cívicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das árvores que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mefisto a quem venderam a alma pelo preço da consciência eleitoral, ou mais barata, chegam incólumes ao delito, passando ilesos como o lobo e o javali por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos numa agonia patibular.
Linha 137:
Quando, à meia-noite, o Alma Negra entrava em casa pela porta do quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom Jesus do Monte. Ao lado dela estavam duas filhas a rezar também, a tiritar, embrulhadas numa manta esburacada, aquecendo as mãos com o bafo.
O Melro mandou deitar as filhas, e foi à loja contar à mulher, lívida e trémula, como o Zeferino morreu sem ele pôr para isso prego nem estopa. Ela pôs as mãos com transporte e disse que fora milagre do Bom Jesus; que estivera três horas de joelhos diante da sua divina imagem. O marido objectava contra o milagre
Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:
[[Categoria:A Brasileira de Prazins|Capítulo 16]]
|