Os Trabalhadores do Mar/Parte I/Livro II: diferenças entre revisões

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Revisão das 14h28min de 9 de março de 2006

Primeira Parte- Livro Segundo- Mess Lethierry

<Os Trabalhadores do Mar

<Autor:Victor Hugo

Tradução: Machado de Assis

Vida Agitada e Cosciência Tranqüila

Mess Lethierry, o homem notável de Saint-Sampson, era um marinheiro terrível. Tinha navegado muito. Foi grumete, gajeiro, timoneiro, contramestre, mestre de equipagem, piloto, arrais. Agora era armador. Ninguém conhecia o mar como ele. Era intrépido para salvar gente. Quando havia temporal, Mess Lethierry ia passear à praia, com os olhos no horizonte. Que é aquilo lá ao longe? E alguém que está em perigo. É um barco de Weymouth, ou de Aurigny, ou de Courseulle, é o iate de um lorde, um inglês, um francês, um pobre, um rico, é o diabo, fosse quem fosse, ele saltava dentro da lancha, chamava dois ou tres homens valentes, dispensava-os quando não tinha, equipava ele só, desatava a amarra, travava dó remo, fazia-se ao largo, subia e descia nas cavas das ondas, mergulhava no furacão, ia ao perigo. Viam-no assim de longe, no meio das lufadas do vento, de pé sobre a embarcação, gotejante de chuva, confundido com os relâmpagos, face de leão e juba de espuma. Passava assim às vezes um dia inteiro no perigo, e nas vagas à saraiva e ao vento, costeando os navios que soçobravam, salvando homens, salvando cargas, disputando com a tempestade. Voltava à noite para casa, e tecia um par de meias.
Passou esta vida cinqüenta anos, desde os dez até os sessenta, enquanto foi moço. Aos sessenta anos, viu que já não Podia levantar com um braço a bigorna da forja de Varclin; pesava aquela bigorna 300 libras; foi atacado repentinamente de reumatismo.
Teve de deixar o mar. Passou da idade heróica à idade patriarcal.
Já não era mais que um bonachão.
Mess Lethierry alcançou a um tempo o reumatismo e a abastança.
Estes dois produtos do trabalho acompanhavam-se voluntariamente.
Quem chega a ser rico, fica inutilizado. É a coroa da vida.
Diz-se então: vamos gozar agora.
Nas ilhas como Guemesey, a população é composta de homens que passaram a vida a andar à roda do campo, e de homens que passaram a vida a viajar à roda do mundo. São duas espécies de lavradores, uns da terra, outros do mar. Mess Lethierry era dos últimos. Conhecia, porém, a terra. Tinha trabalhado muito. Viajara no continente. Foi algum tempo carpinteiro de navio em Rochefort, depois em Cette.
Falamos nas viagens à roda do mundo; Mess Lethierry viajou a França toda como carpinteiro. Trabalhou nos aparelhos para esgoto das salinas de Franche-Comté. Aquele honrado homem teve uma vida de aventureiro. Na França aprendeu a ler, a pensar, a querer. Fez tudo, e de quanto fez extraiu a probidade. 0 fundo da sua natureza era o marinheiro. A água lhe pertencia. Os peixes estão em minha casa, dizia ele. Em suma, toda a sua existência, com exceção de dois ou tres anos, foi consagrada ao oceano; atirada à água, dizia ele. Navegara nos grandes mares, no Atlântico e no Pacífico; mas preferia a Mancha. Aquele é que é rude, exclamava ele com amor. Nasceu ali, ali queria morrer. Depois de ter feito duas ou tres vezes a volta do mundo, e sabendo o que devia escolher, voltou a Guernesey, e não se mexeu dali. As suas viagens, então, eram dranville e Saint-Malo.
Mess Lethierry era guemesiano, isto é, normando, inglês, francês. Tinha essa pátria quádrupla, imersa e como que afogada na sua grande pátria, o oceano. Durante a sua vida, e em toda parte, conservou os costumes de pescador normando.
Isso, porém, não tolhia que ele abrisse de quando em quando um alfarrábio, gostasse de ler um livro, de saber os nomes dos filósofos e poetas, e taramelar em vasconço um pouquinho de cada língua.

Uma Prefrência de Mess Lethierry

Gilliatt era um selvagem. Mess Lethierry era outro.
Este, porém, era um selvagem elegante.
Era exigente a respeito de mãos de mulheres.
Ainda moço, quase menino, estando entre marinheiro e grumete, ouviu dizer ao bailio de Suffren: Bonita rapariga, mas que grandes mãos vermelhas que ela tem! Um dito de almirante impõe, em qualquer assunto que seja. Acima de um oráculo está uma senha. A exclamação do bailio de Suffren fez com que Mess Lethierry se tomasse delicado e exigente acerca de mãos alvas. A dele era uma larga espátula, escura na cor; na agilidade era uma clava, nas carícias uma torques; quebrava um seixo com um soco. Não era casado. Não quis ou não encontrou mulher. Naturalmente, o marinheiro queria mãos de duquesa. Não se encontram mãos dessas nas pescadoras de Port-Bail.
Conta-se entretanto que em Rochefort (Charente) achou ele um dia uma grisette que realizava o seu ideal Linda moça e lindas mãos. Detraía e arranhava. Afrontá-la era perigoso. As suas unhas, extremamente asseadas, tornavam-se garras destemidas, quando era necessário. Tão belas unhas encantaram Mess Lethierry; mas depois, receando que viesse a perder a autoridade sobre a amante, resolveu não levar aquele namorico à presença do senhor matre.
De outra feita, em Aurigny, gostou de uma rapariga. Já cuidava dos esponsais, quando um residente do lugar lhe disse: Dou-lhe os meus parabéns. Leva uma boa esterqueira. Lethierry pediu explicações deste elogio. Em Aurigny há uma moda. Apanha-se esterco de vaca e deita-se às paredes. Depois de seco, cai o esterco e serve para aquecer a gente. Ninguém casa com uma rapariga, senão quando é boa esterqueira. Esta habilidade afugentou Mess Lethierry.
Demais, em assunto de amor ou namoro, tinha ele uma boa filosofia rústica, uma ciência de marinheiro: apanhado sempre, encadeado nunca. Lethierry gabava-se de ter-se deixado vencer sempre pela vasquinha, no tempo da sua mocidade. 0 que hoje se chama crinolina chamava-se, então, vasquinha. Significa mais e menos que unia mulher.
Os rudes marinheiros do arquipélago normando são inteligentes.
Quase todos sabem ler. Vêem-se, aos domingos, rapazitos de oito anos, assentados em um grande novelo de cabos, com um livro na mão. Os marinheiros normandos foram sempre sardonicos, e sabem dizer coisas chistosas. Foi um deles, o atrevido piloto Queripel, quem atirou a Montgomery, refugiado em Jersey depois da funesta lançada contra Henrique II, esta apóstrofe: Cabeça doida feriu a cabeça vazia. Outro marinheiro, por nome Touzeau, arrais em Saint-Brelade, fez o trocadilho filosófico atribuído ao Bispo Camus: Aprés Ia mort les papes deviennent papillons et les sires deviennent cirons (Depois da morte tornam-se os papas borboletas, e os reis.)

A Velha Língua do Mar

Os marinheiros das Channel-Islands são puros gauleses. Estas ilhas, que se vão fazendo inglêsas, conservaram-se muito tempo autóctones.
0 camponês de Serk fala a língua de Luís XIV.
Há quarenta anos, achava-se ainda na boca dos marinheiros de Jersey e de Aurigny o idioma marítimo clássico. Fazia crer que estávamos em plena marinha do século XVII. Um arqueólogo especialista poderia ir estudar ali a antiga linguagem de manobra e de batalha esbravejada por Jean Bart naquele porta-voz que aterrava o Almirante Hidde.
0 vocabulário marítimo dos nossos pais, quase inteiramente renovado hoje, era ainda usado em Guemesey, em 1820. 0 navio que suporta o vento era bom boulinier (bom de bolina); dizia-se do navio que se afeiçoa ao vento, por si mesmo, apesar das velas de proa e do leme, vaisseau ardent (navio que se aguça); entrar em movimento era prendre aire (tomar o vento); pôr-se à capa era capeyer (capear); apanhar o vento por cima eràfaire chapelle (tocar em vento); agüentar bem sâbjre a amarra erafaire teste; estar em confusão a bordo era etre en pantenne; ter o vento nas velas era porter-plain (levar em cheio).
Hoje nada disto se diz. Diz-se hoje louvoyer (bolinar); dizia-se leauvoyer, diz-se naviguer (navegar), dizia-se nager; diz-se virer vent devant (virar por davante), dizia-se vidonner vent devant; diz-se aller de ávant (seguir avante), dizia-se taMer de 1 ávant, diz-se tirer d áccord (alar à uma), dizia-se haller d áccord, diz-se déraper (arrancar o ferro), dizia-se déplanter; diz-se embraquer (tesar), dizia-se abraquer, diz-se taquets (cunhas), dizia-se billons; diz-se burins (passadores), dizia-se tappes; diz-se balancines (amantilhos), dizia-se valancines; diz-se tribord (estibordo), diz-se stribord, diz-se les hommes de quart à Mbord (homens de quarto a bombordo), dizia-se les basbourdis.
Tourville escrevia a Hocquincourt: Nous avons single (singramos). Em vez de Ia-rafale (a lufada), le raqffal; em vez de bossoir (turcos), boussoir; em vez de drosse (bossa), drousse; em vez de loffer (arribar), faire une olofée; em vez de elonger (alongar), alonger, em vez deforte brise (vento fresco), survent, em vez de sout (paiol),fosse; em vez dejouail (cepo de âncora), jas; tal era, no começo deste século, a língua de bordo nas ilhas da Mancha. Ouvindo falar um marinheiro de Jersey, Ango ficaria abalado. Em quanto no resto do mundo as velasfaseyaint (panejavam), barbeyaient nas ilhas da Mancha. Saute-de-vent (cambar o vento) era folle-vente. Só ali se empregavam os dois modos góticos de amarração, a valturre e a portuguesa. Só ali se davam ordens destas: Tour-et-choque! - Bosse et Bitte! - Já um marinheiro de Granville dizia le clan (o gorne); e ainda o marinheiro de Saint-Aubin ou de Saint-Sampson dizia lè canal de pouliot. O que era bout-dálonge (postura) em Saint-Malo, era em Saint-Hélier oreille dâne. Mess Lethierry, como o duque de Vivonne, chamava o tosado de convés Ia tonture.
Foi com Este idioma extravagante que Duquesne bateu Ruyter, que Duguay Trouin bateu Wasnaer, e Tourville em 1681 atravessou em pleno dia a primeira galera que bombardeou Argel. Hoje é língua morta. A gíria do mar é outra. Duperré não poderia entender Suffren. Não menos se transformou a língua dos sinais; e há grande distância entre as flâmulas encarnada, branca, azul e amarela de Labourquedonnaye e os dezoito pavilhões de hoje, arvorados dois a dois, tres a tres e quatro a quatro, dão para as necessidades da combinação distante, 70 000 combinações, suprem tudo, e, por assim dizer, prevêem o imprevisto.

Vulnerabilidade por Amor

Mess Lethierry tinha o coração nas mãos; mãos largas e coração grande. 0 defeito dele era a admirável qualidade da confiança. Tinha uma maneira especial de contrair uma obrigação; era solene: Dou a minha palavra de honra a Deus. Dito isto, cumpria a promessa. Acreditava em Deus, e nada mais. Ia poucas vezes à igreja, e isso mesmo, por cortesia. No mar, era supersticioso.
Nunca houve, porém, tempestade que o fizesse recuar; é que ele era pouco acessível à contradição. Não a tolerava, nem num homem, nem no oceano. Queria ser obedecido; tanto pior para o mar se resistia; tinha de lutar com ele. Mess Lethierry não cedia nunca. Vaga que se empinasse, vizinho que contendesse, nada lhe detinha a mão. 0 que dizia estava dito, o que planeava estava feito. Não se curvava, nem diante de uma objeção, nem diante de uma tempestade. Não, para ele, era palavra que não existia, nem na boca de um homem, nem no ribombo de uma nuvem. Passava adiante. Não consentia que se lhe recusasse nada. Daí vinha a sua pertinácia na vida e a sua intrepidez no oceano.
Era ele próprio quem temperava a sua sopa de peixe; sabia que porção de sal, pimenta e ervas era preciso, e gostava tanto de fazê-la como de come-la.
Criatura que um riso transfigura, e um casaco embrutece, assemelhando-se, com os cabelos soltos, a Jean Bart, e, com o chapéu redondo, a Jocrisse, acanhado na cidade, estranho e temível no mar, espádua de carregador, sem imprecações, quase sem cólera, voz doce e meiga que o porta-voz transforma em trovão, campônio que leu a Enciclopédia, guernesiano que viu a revolução, ignorante instruído, ermo de carolice, dado às visões, mais fé na Dama Branca que na Santa Virgem, lógica de ventoinha, vontade de Cristóvão Colombo, um tanto de touro e um tanto de criança, nariz quase rombo, faces grossas, boca com todos os dentes, rosto enrugado, cara que parece ter sido feita pelo mar, beijada pelos ventos durante quarenta anos, ar de tempestade na fronte, carnação de rocha em pleno mar; põe agora um olhar* bom neste rosto agreste, e terás Mess Lethierry.
Mess Lethierry tinha dois amores: Durande e Déruchette.

<Os Trabalhadores do Mar