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|obra=O Uraguai
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==Canto primeiro==
 
<poem>
 
Fumam ainda nas desertas praias
 
Lagos de sangue tépidos e impuros
 
Em que ondeiam cadáveres despidos,
 
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
 
O rouco som da irada artilheria.
 
Musa, honremos o Herói que o povo rude
 
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
 
Dos decretos reais lavou a afronta.
 
Ai tanto custas, ambição de império!
 
E Vós, por quem o Maranhão pendura
 
Rotas cadeias e grilhões pesados,
 
Herói e irmão de heróis, saudosa e triste
 
Se ao longe a vossa América vos lembra,
 
Protegei os meus versos. Possa entanto
 
Acostumar ao vôo as novas asas
 
Em que um dia vos leve. Desta sorte
 
Medrosa deixa o ninho a vez primeira
 
Águia, que depois foge à humilde terra
 
E vai ver de mais perto no ar vazio
 
O espaço azul, onde não chega o raio.
 
Já dos olhos o véu tinha rasgado
 
A enganada Madri, e ao Novo Mundo
 
Da vontade do Rei núncio severo
 
Aportava Catâneo: e ao grande Andrade
 
Avisa que tem prontos os socorros
 
E que em breve saía ao campo armado.
 
Não podia marchar por um deserto
 
O nosso General, sem que chegassem
 
As conduções, que há muito tempo espera.
 
Já por dilatadíssimos caminhos
 
Tinha mandado de remotas partes
 
Conduzir os petrechos para a guerra.
 
Mas entretanto cuidadoso e triste
 
Muitas cousas a um tempo revolvia
 
No inquieto agitado pensamento.
 
Quando pelos seus guardas conduzido
 
Um índio, com insígnias de correio,
 
Com cerimônia estranha lhe apresenta
 
Humilde as cartas, que primeiro toca
 
Levemente na boca e na cabeça.
 
Conhece a fiel mão e já descansa
 
O ilustre General, que viu, rasgando,
 
Que na cera encarnada impressa vinha
 
A águia real do generoso Almeida.
 
Diz-lhe que está vizinho e traz consigo,
 
Prontos para o caminho e para a guerra,
 
Os fogosos cavalos e os robustos
 
E tardos bois que hão de sofrer o jugo
 
No pesado exercício das carretas.
 
Não tem mais que esperar, e sem demora
 
Responde ao castelhano que partia,
 
E lhe determinou lugar e tempo
 
Para unir os socorros ao seu campo.
 
Juntos enfim, e um corpo do outro à vista,
 
Fez desfilar as tropas pelo plano,
 
Por que visse o espanhol em campo largo
 
A nobre gente e as armas que trazia.
 
Vão passando as esquadras: ele entanto
 
Tudo nota de parte e tudo observa
 
Encostado ao bastão. Ligeira e leve
 
Passou primeiro a guarda, que na guerra
 
É primeira a marchar, e que a seu cargo
 
Tem descobrir e segurar o campo.
 
Depois desta se segue a que descreve
 
E dá ao campo a ordem e a figura,
 
E transporta e edifica em um momento
 
O leve teto e as movediças casas,
 
E a praça e as ruas da cidade errante.
 
Atrás dos forçosíssimos cavalos
 
Quentes sonoros eixos vão gemendo
 
Co peso da funesta artilheria.
 
Vinha logo de guardas rodeado
 
- Fontes de crimes - militar tesouro,
 
Por quem deixa no rego o curvo arado
 
O lavrador, que não conhece a glória;
 
E vendendo a vil preço o sangue e a vida
 
Move, e nem sabe por que move, a guerra.
 
Intrépidos e imóveis nas fileiras,
 
Com grandes passos, firme a testa e os olhos
 
Vão marchando os mitrados granadeiros,
 
Sobre ligeiras rodas conduzindo
 
Novas espécies de fundidos bronzes
 
Que amiúdam, de prontas mãos servidos,
 
E multiplicam pelo campo a morte.
 
Que é este, Catâneo perguntava,
 
Das brancas plumas e de azul e branco
 
Vestido, e de galões coberto e cheio,
 
Que traz a rica cruz no largo peito?
 
Geraldo, que os conhece, lhe responde:
 
É o ilustre Meneses, mais que todos
 
Forte de braço e forte de conselho.
 
Toda essa guerreira infanteria,
 
A flor da mocidade e da nobreza
 
 
Como ele azul e branco e ouro vestem.
 
Quem é, continuava o castelhano,
 
Aquele velho vigoroso e forte,
 
Que de branco e amarelo e de ouro ornado
 
Vem os seus artilheiros conduzindo?
 
Vês o grande alpoim. Este o primeiro
 
 
Ensinou entre nós por que caminho
 
Se eleva aos céus a curva e grave bomba
 
Prenhe de fogo; e com que força do alto
 
Abate os tetos da cidade e lança
 
Do roto seio envolta em fumo a morte.
 
Seguiam juntos o paterno exemplo
 
Dignos do grande pai ambos os filhos.
 
Justos céus! E é forçoso, ilustre Vasco,
 
Que te preparem as soberbas ondas,
 
Longe de mim, a morte e a sepultura?
 
Ninfas do amor, que vistes, se é que vistes,
 
O rosto esmorecido e os frios braços,
 
Sobre os olhos soltai as verdes tranças.
 
Triste objeto de mágoa e de saudade,
 
Como em meu coração, vive em meus versos.
 
Com os teus encarnados granadeiros
 
Também te viu naquele dia o campo,
 
Famoso Mascarenhas, tu, que agora
 
Em doce paz, nos menos firmes anos,
 
Igualmente servindo ao rei e à pátria,
 
Ditas as leis ao público sossego,
 
Honra de Toga e glória do Senado.
 
Nem tu, Castro fortíssimo, escolheste
 
O descanso da pátria: o campo e as armas
 
Fizeram renovar no ínclito peito
 
Todo o heróico valor dos teus passados.
 
Os últimos que em campo se mostraram
 
Foram fortes dragões de duros peitos,
 
Prontos para dous gêneros de guerra,
 
Que pelejam a pé sobre as montanhas,
 
Quando o pede o terreno; e quando o pede
 
Erguem nuvens de pó por todo o campo
 
Co tropel dos magnânimos cavalos.
 
Convida o General depois da mostra,
 
Pago da militar guerreira imagem,
 
Os seus e os espanhóis; e já recebe
 
No pavilhão purpúreo, em largo giro,
 
Os capitães a alegre e rica mesa.
 
Desterram-se os cuidados, derramando
 
Os vinhos europeus nas taças de ouro.
 
Ao som da ebúrnea cítara sonora
 
Arrebatado de furor divino
 
Do seu herói, Matúsio celebrava
 
Altas empresas dignas de memória.
 
Honras futuras lhe promete, e canta
 
Os seus brasões, e sobre o forte escudo
 
Já de então lhe afigura e lhe descreve
 
As pérolas e o título de Grande.
 
Levantadas as mesas, entretinham
 
O congresso de heróis discursos vários.
 
Ali Catâneo ao General pedia
 
Que do princípio lhe dissesse as causas
 
Da nova guerra e do fatal tumulto.
 
Se aos Padres seguem os rebeldes povos?
 
Quem os governa em paz e na peleja?
 
Que do premeditado oculto Império
 
Vagamente na Europa se falava
 
Nos seus lugares cada qual imóvel
 
Pende da sua boca: atende em roda
 
Tudo em silêncio, e dá princípio Andrade:
 
O nosso último rei e o rei de Espanha
 
Determinaram, por cortar de um golpe,
 
Como sabeis, neste ângulo da terra,
 
As desordens de povos confinantes,
 
Que mais certos sinais nos dividissem
 
Tirando a linha de onde a estéril costa,
 
E o cerro de Castilhos o mar lava
 
Ao monte mais vizinho, e que as vertentes
 
Os termos do domínio assinalassem.
 
Vossa fica a Colônia, e ficam nossos
 
Sete povos, que os Bárbaros habitam
 
Naquela oriental vasta campina
 
Que o fértil Uraguai discorre e banha.
 
Quem podia esperar que uns índios rudes,
 
Sem disciplina, sem valor, sem armas,
 
Se atravessassem no caminho aos nossos,
 
E que lhes disputassem o terreno!
 
Enfim não lhes dei ordens para a guerra:
 
Frustrada a expedição, enfim voltaram.
 
Co vosso general me determino
 
A entrar no campo juntos, em chegando
 
A doce volta da estação das flores.
 
Não sofrem tanto os índios atrevidos:
 
Juntos um nosso forte entanto assaltam.
 
E os padres os incitam e acompanham.
 
Que, à sua discrição, só eles podem
 
Aqui mover ou sossegar a guerra.
 
Os índios que ficaram prisioneiros
 
Ainda os podeis ver neste meu campo.
 
Deixados os quartéis, enfim partimos
 
Por diversas estradas, procurando
 
Tomar no meio os rebelados povos.
 
Por muitas léguas de áspero caminho,
 
Por lagos, bosques, vales e montanhas,
 
Chegamos onde nos impede o passo
 
Arrebatado e caudaloso rio.
 
Por toda a oposta margem se descobre
 
De bárbaros o número infinito
 
Que ao longe nos insulta e nos espera.
 
Preparo curvas balsas e pelotas,
 
E em uma parte de passar aceno,
 
Enquanto em outra passo oculto as tropas.
 
Quase tocava o fim da empresa, quando
 
Do vosso general um mensageiro
 
Me afirma que se havia retirado:
 
A disciplina militar dos índios
 
Tinha esterilizado aqueles campos.
 
Que eu também me retire, me aconselha,
 
Até que o tempo mostre outro caminho.
 
Irado, não o nego, lhe respondo:
 
Que para trás não sei mover um passo.
 
Venha quando puder, que eu firme o espero.
 
Porém o rio e a forma do terreno
 
Nos faz não vista e nunca usada guerra.
 
Sai furioso do seu seio, e toda
 
Vai alagando com o desmedido
 
Peso das águas a planície imensa.
 
As tendas levantei, primeiro aos troncos,
 
Depois aos altos ramos: pouco a pouco
 
Fomos tomar na região do vento
 
A habitação aos leves passarinhos.
 
Tece o emaranhadíssimo arvoredo
 
Verdes, irregulares, e torcidas
 
Ruas e praças, de uma e de outra banda
 
Cruzadas de canoas. Tais podemos
 
Co a mistura das luzes, e das sombras
 
Ver por meio de um vidro transplantados
 
Ao seio de Ádria os nobres edifícios,
 
E os jardins, que produz outro elemento.
 
E batidas do remo, e navegáveis
 
As ruas da marítima Veneza.
 
Duas vezes a lua prateada
 
Curvou no céu sereno os alvos cornos,
 
E inda continuava a grossa enchente.
 
Tudo nos falta no país deserto.
 
Tardar devia o espanhol socorro.
 
E de si nos lançava o rio e o tempo.
 
Cedi, e retirei-me às nossas terras.
 
Deu fim à narração o invicto Andrade
 
E antes de se soltar o ajuntamento,
 
Com os régios poderes, que ocultara,
 
Surpreende os seus, e os ânimos alegra,
 
Enchendo os postos todos do seu campo.
 
O corpo de dragões a Almeida entrega,
 
E Campo das Mercês o lugar chama.
</poem>
 
 
 
 
==Canto segundo==
 
<poem>
 
Depois de haver marchado muitos dias
 
Enfim junto a um ribeiro, que atravessa
 
Sereno e manso um curvo e fresco vale,
 
Acharam, os que o campo descobriram,
 
Um cavalo anelante, e o peito e as ancas
 
Coberto de suor e branca escuma.
 
Temos perto o inimigo: aos seus dizia
 
O esperto General: Sei que costumam
 
Trazer os índios um volúvel laço,
 
Com o qual tomam no espaçoso campo
 
Os cavalos que encontram; e rendidos
 
Aqui e ali com o continuado
 
Galopear, a quem primeiro os segue
 
Deixam os seus, que entanto se restauram.
 
Nem se enganou; porque ao terceiro dia
 
Formados os achou sobre uma larga
 
Ventajosa colina, que de um lado
 
É coberta de um bosque e do outro lado
 
Corre escarpada e sobranceira a um rio.
 
Notava o General o sítio forte,
 
Quando Meneses, que vizinho estava,
 
Lhe diz: Nestes desertos encontramos
 
Mais do que se esperava, e me parece
 
Que só por força de armas poderemos
 
Inteiramente sujeitar os povos.
 
Torna-lhe o General: Tentem-se os meios
 
De brandura e de amor; se isto não basta,
 
Farei a meu pesar o último esforço.
 
Mandou, dizendo assim, que os índios todos
 
Que tinha prisioneiros no seu campo
 
Fossem vestidos das formosas cores,
 
Que a inculta gente simples tanto adora.
 
Abraçou-os a todos, como filhos,
 
E deu a todos liberdade. Alegres
 
Vão buscar os parentes e os amigos,
 
E a uns e a outros contam a grandeza
 
Do excelso coração e peito nobre
 
Do General famoso, invicto Andrade.
 
Já para o nosso campo vêm descendo,
 
Por mandado dos seus, dous dos mais nobres.
 
Sem arcos, sem aljavas; mas as testas
 
De várias e altas penas coroadas,
 
E cercadas de penas as cinturas,
 
E os pés, e os braços e o pescoço. Entrara
 
Sem mostras nem sinal de cortesia
 
Sepé no pavilhão. Porém Cacambo
 
Fez, ao seu modo, cortesia estranha,
 
E começou: Ó General famoso,
 
Tu tens à vista quanta gente bebe
 
Do soberbo Uraguai a esquerda margem.
 
Bem que os nossos avôs fossem despojo
 
Da perfídia de Europa, e daqui mesmo
 
Co’s não vingados ossos dos parentes
 
Se vejam branquejar ao longe os vales,
 
Eu, desarmado e só, buscar-te venho.
 
Tanto espero de ti. E enquanto as armas
 
Dão lugar à razão, senhor, vejamos
 
Se se pode salvar a vida e o sangue
 
De tantos desgraçados. Muito tempo
 
Pode ainda tardar-nos o recurso
 
Com o largo oceano de permeio,
 
Em que os suspiros dos vexados povos
 
Perdem o alento. O dilatar-se a entrega
 
Está nas nossas mãos, até que um dia
 
Informados os reis nos restituam
 
A doce antiga paz. Se o rei de Espanha
 
Ao teu rei quer dar terras com mão larga
 
Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes
 
E outras, que tem por estes vastos climas;
 
Porém não pode dar-lhes os nossos povos.
 
E inda no caso que pudesse dá-los,
 
Eu não sei se o teu rei sabe o que troca
 
Porém tenho receio que o não saiba.
 
Eu já vi a Colônia portuguesa
 
Na tenra idade dos primeiros anos,
 
Quando o meu velho pai cos nossos arcos
 
Às sitiadoras tropas castelhanas
 
Deu socorro, e mediu convosco as armas.
 
E quererão deixar os portugueses
 
A praça, que avassala e que domina
 
O gigante das águas, e com ela
 
Toda a navegação do largo rio,
 
Que parece que pôs a natureza
 
Para servir-vos de limite e raia?
 
Será; mas não o creio. E depois disto
 
As campinas que vês e a nossa terra
 
Sem o nosso suor e os nossos braços,
 
De que serve ao teu rei? Aqui não temos
 
Nem altas minas, nem caudalosos
 
Aqui não temos. Os padres faziam crer aos índios que os
 
portugueses eram gente sem lei, que adoravam o ouro.
 
Rios de areias de ouro. Essa riqueza
 
Que cobre os templos dos benditos padres,
 
Fruto da sua indústria e do comércio
 
Da folha e peles, é riqueza sua.
 
Com o arbítrio dos corpos e das almas
 
O céu lha deu em sorte. A nós somente
 
Nos toca arar e cultivar a terra,
 
Sem outra paga mais que o repartido
 
Por mãos escassas mísero sustento.
 
Podres choupanas, e algodões tecidos,
 
E o arco, e as setas, e as vistosas penas
 
São as nossas fantásticas riquezas.
 
Muito suor, e pouco ou nenhum fasto.
 
Volta, senhor, não passes adiante.
 
Que mais queres de nós? Não nos obrigues
 
A resistir-te em campo aberto. Pode
 
Custar-te muito sangue o dar um passo.
 
Não queiras ver se cortam nossas frechas.
 
Vê que o nome dos reis não nos assusta.
 
O teu está muito longe; e nós os índios
 
Não temos outro rei mais do que os padres.
 
Acabou de falar; e assim responde
 
O ilustre General: Ó alma grande,
 
Digna de combater por melhor causa,
 
Vê que te enganam: risca da memória
 
Vãs, funestas imagens, que alimentam
 
Envelhecidos mal fundados ódios.
 
Por mim te fala o rei: ouve-me, atende,
 
E verás uma vez nua a verdade.
 
Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres
 
Era viver errantes e dispersos,
 
Sem companheiros, sem amigos, sempre
 
Com as armas na mão em dura guerra,
 
Ter por justiça a força, e pelos bosques
 
Viver do acaso, eu julgo que inda fora
 
Melhor a escravidão que a liberdade.
 
Mas nem a escravidão, nem a miséria
 
Quer o benigno rei que o fruto seja
 
Da sua proteção. Esse absoluto
 
Império ilimitado, que exercitam
 
Em vós os padres, como vós, vassalos,
 
É império tirânico, que usurpam.
 
Nem são senhores, nem vós sois escravos.
 
O rei é vosso pai: quer-vos felices.
 
Sois livres, como eu sou; e sereis livres,
 
Não sendo aqui, em outra qualquer parte.
 
Mas deveis entregar-nos estas terras.
 
Ao bem público cede o bem privado.
 
O sossego de Europa assim o pede.
 
Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,
 
Se não obedeceis; mas os rebeldes,
 
Eu sei que não sois vós, são os bons padres,
 
Que vos dizem a todos que sois livres,
 
E se servem de vós como de escravos.
 
Armados de orações vos põem no campo
 
Contra o fero trovão da artilheria,
 
Que os muros arrebata; e se contentam
 
De ver de longe a guerra: sacrificam,
 
Avarentos do seu, o vosso sangue.
 
Eu quero à vossa vista despojá-los
 
Do tirano domínio destes climas,
 
De que a vossa inocência os fez senhores.
 
Dizem-vos que não tendes rei? Cacique,
 
E o juramento de fidelidade?
 
Porque está longe, julgas que não pode
 
Castigar-vos a vós, e castigá-los?
 
Generoso inimigo, é tudo engano.
 
Os reis estão na Europa; mas adverte
 
Que estes braços, que vês, são os seus braços.
 
Dentro de pouco tempo um meu aceno
 
Vai cobrir este monte e essas campinas
 
De semivivos palpitantes corpos
 
De míseros mortais, que inda não sabem
 
Por que causa o seu sangue vai agora
 
Lavar a terra e recolher-se em lagos.
 
Não me chames cruel: enquanto é tempo
 
Pensa e resolve, e, pela mão tomando
 
Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade
 
Intenta reduzi-lo por brandura.
 
E o índio, um pouco pensativo, o braço
 
E a mão retira; e, suspirando, disse:
 
Gentes de Europa, nunca vos trouxera
 
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde
 
Estendeu entre nós a natureza
 
Todo esse plano espaço imenso de águas.
 
Prosseguia talvez; mas o interrompe
 
Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo
 
Fez mais do que devia; e todos sabem
 
Que estas terras, que pisas, o céu livres
 
Deu aos nossos avôs; nós também livres
 
As recebemos dos antepassados.
 
Livres as hão de herdar os nossos filhos.
 
Desconhecemos, detestamos jugo
 
Que não seja o do céu, por mão dos padres.
 
As frechas partirão nossas contendas
 
Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo,
 
Se nele um resto houver de humanidade,
 
Julgará entre nós; se defendemos
 
Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria.
 
Enfim quereis a guerra, e tereis guerra.
 
Lhe torna o General: Podeis partir-vos,
 
Que tendes livres o passo. Assim dizendo,
 
Manda dar a Cacambo rica espada
 
De tortas guarnições de prata e ouro,
 
A que inda mais valor dera o trabalho.
 
Um bordado chapéu e larga cinta
 
Verde, e capa de verde e fino pano,
 
Com bandas amarelas e encarnadas.
 
E mandou que a Sepé se desse um arco
 
De pontas de marfim; e ornada e cheia
 
De novas setas a famosa aljava:
 
A mesma aljava que deixara um dia,
 
Quando envolto em seu sangue, e vivo apenas,
 
Sem arco e sem cavalo, foi trazido
 
Prisioneiro de guerra ao nosso campo.
 
Lembrou-se o índio da passada injúria
 
E sobraçando a conhecida aljava
 
Lhe disse: Ó General, eu te agradeço
 
As setas que me dás e te prometo
 
Mandar-tas bem depressa uma por uma
 
Entre nuvens de pós no ardor da guerra.
 
Tu as conhecerás pelas feridas,
 
Ou porque rompem com mais força os ares.
 
Despediram-se os índios, e as esquadras
 
Se vão dispondo em ordem de peleja,
 
Como mandava o General. Os lados
 
Cobrem as tropas de cavaleria,
 
E estão no centro firmes os infantes.
 
Qual fera boca de libréu raivoso,
 
De lisos e alvos dentes guarnecida,
 
Os índios ameaça a nossa frente
 
De agudas baionetas rodeada.
 
Fez a trombeta o som da guerra. Ouviram
 
Aqueles montes pela vez primeira
 
O som da caixa portuguesa; e viram
 
Pela primeira vez aqueles ares
 
Desenroladas as reais bandeiras.
 
Saem das grutas pelo chão cavadas,
 
Em que até li de indústria se escondiam.
 
Nuvens de índios, e a vista duvidava
 
Se o terreno os bárbaros nasciam.
 
Qual já no tempo antigo o errante Cadmo
 
Dizem que vira da fecunda terra
 
Brotar a cruelíssima seara.
 
Erguem todos um bárbaro alarido,
 
E sobre os nossos cada qual encurva
 
Mil vezes, e mil vezes sota o arco,
 
Um chuveiro de setas despedindo.
 
Gentil mancebo presumido e néscio,
 
A quem a popular lisonja engana,
 
Vaidoso pelo campo discorria,
 
Fazendo ostentação dos seus penachos.
 
Impertinente e de família escura,
 
Mas que tinha o favor dos santos padres,
 
Contam, não sei se é certo, que o tivera
 
A estéril mãe por orações de Balda.
 
Chamaram-no Baldetta por memória.
 
Tinha um cavalo de manchada pele
 
Mais vistoso que forte: a natureza
 
Um ameno jardim por todo o corpo
 
Lhe debuxou, e era Jardim chamado.
 
O padre na saudosa despedida
 
Deu-lho em sinal de amor; e nele agora
 
Girando ao largo com incertos tiros
 
Muitos feria, e a todos inquietava.
 
Mas se então se cobriu de eterna infâmia,
 
A glória tua foi, nobre Gerardo.
 
Tornava o índio jactancioso, quando
 
Lhe sai Gerardo ao meio da carreira:
 
Disparou-lhe a pistola, e fez-lhe a um tempo
 
Co reflexo do sol luzir a espada.
 
Só de vê-lo se assusta o índio, e fica
 
Qual quem ouve o trovão e espera o raio.
 
Treme, e o cavalo aos seus volta, e pendente
 
A um lado e a outro de cair acena.
 
Deixando aqui e ali por todo o campo
 
Entornadas as setas; pelas costas,
 
Flutuavam as penas; e fugindo
 
Soltas da mão as rédeas ondeavam.
 
Insta Gerardo, e quase o ferro o alcança,
 
Quando Tatu-Guaçu, o mais valente
 
De quantos índios viu a nossa idade,
 
Armado o peito da escamosa pele
 
De um jacaré disforme, que matara,
 
Se atravessa diante. Intenta o nosso
 
Com a outra pistola abrir caminho,
 
E em vão o intenta: a verde-negra pele,
 
Que ao índio o largo peito orna e defende,
 
Formou a natureza impenetrável.
 
Co’a espada o fere no ombro e na cabeça
 
E as penas corta, de que o campo espalha.
 
Separa os dous fortíssimos guerreiros
 
A multidão dos nossos, que atropela
 
Os índios fugitivos: tão depressa
 
Cobrem o campo os mortos e os feridos,
 
E por nós a vitória se declara.
 
Precipitadamente as armas deixam,
 
Nem resistem mais tempo às espingardas.
 
Vale-lhe a costumada ligeireza,
 
Debaixo lhe desaparece a terra
 
E voam, que o temor aos pés põe asas,
 
Clamando ao céu e encomendando a vida
 
Às orações dos padres. Desta sorte
 
Talvez, em outro clima, quando soltam
 
A branca neve eterna os velhos Alpes,
 
Arrebata a corrente impetuosa
 
Co’as choupanas o gado. Aflito e triste
 
Se salva o lavrador nos altos ramos,
 
E vê levar-lhe a cheia os bois e o arado.
 
Poucos índios no campo mais famosos,
 
Servindo de reparo aos fugitivos,
 
Sustentam todo o peso da batalha,
 
Apesar da fortuna.De uma parte
 
Tatu-Guaçu mais forte na desgraça
 
Já banhado em seu sangue pretendia
 
Por seu braço ele só pôr ermo à guerra
 
Caitutu de outra parte altivo forte
 
Opunha o peito à fúria do inimigo
 
E servia de muro à sua gente
 
Fez proezas Sepé naquele dia
 
Conhecido de todos, no perigo
 
Mostrava descoberto o peito e o rosto
 
Forçando os seus co exemplo e côas palavras.
 
Já tinha despejado a aljava toda,
 
E destro em atirar, e irado e forte
 
Quantas setas na mão voar fazia
 
Tantas na nossa gente ensangüentava
 
Setas de novo agora recebia,
 
Para dar outra vez princípio
 
Quando o ilustre espanhol que governava
 
Montevidio, alegre, airoso e pronto
 
As rédeas volta ao rápido cavalo
 
E por cima de mortos e feridos,
 
Que lutavam co a morte, o índio afronta.
 
Sepé, que o viu, tinha tomado a lança
 
E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço
 
A despediu. Por entre o braço e o corpo
 
Ao ligeiro espanhol o ferro passa:
 
Rompe, sem fazer dano, a terra dura
 
E treme fora muito tempo a hástea.
 
Mas de um golpe a Sepé na testa e peito
 
Fere o governador, e as rédeas corta
 
Ao cavalo feroz. Foge o cavalo,
 
E leva involuntário e ardendo em ira
 
Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse
 
Que regada de sangue aos pés cedia
 
A terra, ou que pusesse as mãos em falso,
 
Rodou sobre si mesmo, e na caída
 
Lançou longe a Sepé. Rende-te, ou morre,
 
Grita o governador; e o tape altivo,
 
Sem responder, encurva o arco, e a seta
 
Despede, e nela lhe prepara a morte.
 
Enganou-se esta vez. A seta um pouco
 
Declina, e açouta o rosto a leve pluma.
 
Não quis deixar o vencimento incerto
 
Por mais tempo o espanhol, e arrebatado
 
Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.
 
Era pequeno o espaço, e fez o tiro
 
No corpo desarmado estrago horrendo.
 
Viam-se dentro pelas rotas costas
 
Palpitar as entranhas. Quis três vezes
 
Levantar-se do chão: caiu três vezes,
 
E os olhos já nadando em fria morte
 
Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.
 
Morto o grande Sepé, já não resistem
 
As tímidas esquadras. Não conhece
 
Leis o temor. Debalde está diante,
 
E anima os seus o rápido Cacambo.
 
Tinha-se retirado da peleja
 
Caitutu mal ferido; e do seu corpo
 
Deixa Tatu-Guaçu por onde passa
 
Rios de sangue. Os outros mais valentes
 
Ou eram mortos, ou feridos. Pende
 
O ferro vencedor sobre os vencidos.
 
Ao número, ao valor cede Cacambo:
 
Salva os índios que pode, e se retira.
</poem>
 
 
 
==Canto terceiro==
 
<poem>
 
Já a nossa do mundo Última Parte
 
Tinha voltado a ensangüentada fronte
 
Ao centro luminar quando a campanha
 
Semeada de mortos e insepultos
 
Viu desfazer-se a um tempo a vila errante
 
Ao som das caixas. Descontente e triste
 
Marchava o General: não sofre o peito
 
Compadecido e generoso a vista
 
Daqueles frios e sangrados corpos,
 
Vítimas da ambição de injusto império.
 
Foram ganhando e descobrindo terra
 
 
Inimiga e infiel; até que um dia
 
Fizeram alto e se acamparam onde
 
Incultas várgeas, por espaço imenso,
 
Enfadonhas e estéreis acompanham
 
Ambas as margens de um profundo rio.
 
Todas estas vastíssimas campinas
 
Cobrem palustres e tecidas canas
 
E leves juncos do calor tostados,
 
Pronta matéria de voraz incêndio.
 
O índio habitador de quando em quando
 
Com estranha cultura entrega ao fogo;
 
Muitas léguas de campo: o incêndio dura,
 
Enquanto dura e o favorece o vento.
 
Da erva, que renasce, se apascenta
 
O imenso gado, que dos montes desce;
 
E renovando incêndios desta sorte
 
A Arte emenda a Natureza, e podem
 
Ter sempre nédio o gado, e o campo verde.
 
Mas agora sabendo por espias
 
As nossas marchas, conservavam sempre
 
Secas as torradíssimas campinas;
 
Nem consentiam, por fazer-nos guerra,
 
Que a chama benfeitora e a cinza fria
 
Fertilizasse o árido terreno.
 
O cavalo até li forte e brioso,
 
E costumado a não ter mais sustento,
 
Naqueles climas, do que a verde relva
 
Da mimosa campina, desfalece.
 
Nem mais, se o seu senhor o afaga, encurva
 
Os pés, e cava o chão co’as mãos, e o vale
 
Rinchando atroa, e açouta o ar co’as clinas.
 
Era alta noite, e carrancudo e triste
 
Negava o céu envolto em pobre manto
 
A luz ao mundo, e murmurar se ouvia
 
Ao longe o rio, e menear-se o vento.
 
Respirava descanso a natureza.
 
Só na outra margem não podia entanto
 
O inquieto Cacambo achar sossego.
 
No perturbado interrompido sono
 
(Talvez fosse ilusão) se lhe apresenta
 
A triste imagem de Sepé despido,
 
Pintado o rosto do temor da morte,
 
Banhado em negro sangue, que corria
 
Do peito aberto, e nos pisados braços
 
Inda os sinais da mísera caída.
 
Sem adorno a cabeça, e aos pés calcada
 
A rota aljava e as descompostas penas.
 
Quanto diverso do Sepé valente,
 
Que no meio dos nossos espalhava,
 
De pó, de sangue e de suor coberto,
 
O espanto, a morte! E diz-lhe em tristes vozes:
 
Foge, foge, Cacambo. E tu descansas,
 
Tendo tão perto os inimigos? Torna,
 
Torna aos teus bosques, e nas pátrias grutas
 
Tua fraqueza e desventura encobre.
 
Ou, se acaso inda vivem no teu peito
 
Os desejos de glória, ao duro passo
 
Resiste valeroso; ah tu, que podes!
 
E tu, que podes, põe a mão nos peitos
 
À fortuna de Europa: agora é tempo,
 
Que descuidados da outra parte dormem.
 
Envolve em fogo e fumo o campo, e paguem
 
O teu sangue e o meu sangue. Assim dizendo
 
Se perdeu entre as nuvens, sacudindo
 
Sobre as tendas, no ar, fumante tocha;
 
E assinala com chamas o caminho.
 
Acorda o índio valeroso, e salta
 
Longe da curva rede, e sem demora
 
O arco e as setas arrebata, e fere
 
O chão com o pé: quer sobre o largo rio
 
Ir peito a peito a contrastar co’a morte.
 
Tem diante dos olhos a figura
 
Do caro amigo, e inda lhe escuta as vozes.
 
Pendura a um verde tronco as várias penas,
 
E o arco, e as setas, e a sonora aljava;
 
E onde mais manso e mais quieto o rio
 
Se estende e espraia sobre a ruiva areia
 
Pensativo e turbado entra; e com água
 
Já por cima do peito as mãos e os olhos
 
Levanta ao céu, que ele não via, e às ondas
 
O corpo entrega. Já sabia entanto
 
A nova empresa na limosa gruta
 
O pátrio rio; e dando um jeito à urna
 
Fez que as águas corressem mais serenas;
 
E o índio afortunado a praia oposta
 
Tocou sem ser sentido. Aqui se aparta
 
Da margem guarnecida e mansamente
 
Pelo silêncio vai da noite escura
 
Buscando a parte donde vinha o vento.
 
Lá, como é uso do país, roçando
 
Dous lenhos entre si, desperta a chama,
 
Que já se ateia nas ligeiras palhas,
 
E velozmente se propaga. Ao vento
 
Deixa Cacambo o resto e foge a tempo
 
Da perigosa luz; porém na margem
 
Do rio, quando a chama abrasadora
 
Começa a alumiar a noite escura,
 
Já sentido dos guardas não se assusta
 
E temerária e venturosamente,
 
Fiando a vida aos animosos braços,
 
De um alto precipício às negras ondas
 
Outra vez se lançou e foi de um salto
 
Ao fundo rio a visitar a areia.
 
Debalde gritam, e debalde às margens
 
Corre a gente apressada. Ele entretanto
 
Sacode as pernas e os nervosos braços:
 
Rompe as escumas assoprando, e a um tempo
 
Suspendido nas mãos, voltando o rosto,
 
Via nas águas trêmulas a imagem
 
Do arrebatado incêndio, e se alegrava...
 
Não de outra sorte o cauteloso Ulisses,
 
Vaidoso da ruína, que causara,
 
Viu abrasar de Tróia os altos muros,
 
E a perjura cidade envolta em fumo
 
Encostar-se no chão e pouco a pouco
 
Desmaiar sobre as cinzas. Cresce entanto
 
O incêndio furioso, e o irado vento
 
Arrebata às mãos cheias vivas chamas,
 
Que aqui e ali pela campina espalha.
 
Comunica-se a um tempo ao largo campo
 
A chama abrasadora e em breve espaço
 
Cerca as barracas da confusa gente.
 
Armado o General, como se achava,
 
Saiu do pavilhão e pronto atalha,
 
Que não prossiga o voador incêndio.
 
Poucas tendas entrega ao fogo e manda,
 
Sem mais demora, abrir largo caminho
 
Que os separe das chamas. Uns já cortam
 
As combustíveis palhas, outros trazem
 
Nos prontos vasos as vizinhas ondas.
 
Mas não espera o bárbaro atrevido.
 
A todos se adianta; e desejoso
 
De levar a notícia ao grande Balda
 
Naquela mesma noite o passo estende.
 
Tanto se apressa que na quarta aurora
 
Por veredas ocultas viu de longe
 
A doce pátria, e os conhecidos montes,
 
E o templo, que tocava o céu co as grimpas.
 
Mas não sabia que a fortuna entanto
 
Lhe preparava a última ruína.
 
Quanto seria mais ditoso! Quanto
 
Melhor lhe fora o acabar a vida
 
Na frente do inimigo, em campo aberto,
 
Ou sobre os restos de abrasadas tendas,
 
Obra do seu valor! Tinha Cacambo
 
Real esposa, a senhoril Lindóia,
 
De costumes suavíssimos e honestos,
 
Em verdes anos: com ditosos laços
 
Amor os tinha unido; mas apenas
 
Os tinha unido, quando ao som primeiro
 
Das trombetas lho arrebatou dos braços
 
A glória enganadora. Ou foi que Balda,
 
Engenhoso e sutil, quis desfazer-se
 
Da presença importuna e perigosa
 
Do índio generoso; e desde aquela
 
Saudosa manhã, que a despedida
 
Presenciou dos dous amantes, nunca
 
Consentiu que outra vez tornasse aos braços
 
Da formosa Lindóia e descobria
 
Sempre novos pretextos da demora.
 
Tornar não esperado e vitorioso
 
Foi todo o seu delito. Não consente
 
O cauteloso Balda que Lindóia
 
Chegue a falar ao seu esposo; e manda
 
Que uma escura prisão o esconda e aparte
 
Da luz do sol. Nem os reais parentes,
 
Nem dos amigos a piedade, e o pranto
 
Da enternecida esposa abranda o peito
 
Do obstinado juiz: até que à força
 
De desgostos, de mágoa e de saudade,
 
Por meio de um licor desconhecido,
 
Que lhe deu compassivo o santo padre,
 
Jaz o ilustre Cacambo - entre os gentios
 
Único que na paz e em dura guerra
 
De virtude e valor deu claro exemplo.
 
 
Chorado ocultamente e sem as honras
 
De régio funeral, desconhecida
 
Pouca terra os honrados ossos cobre.
 
Se é que os seus ossos cobre alguma terra.
 
Cruéis ministros, encobri ao menos
 
A funesta notícia. Ai que já sabe
 
A assustada amantíssima Lindóia
 
O sucesso infeliz. Quem a socorre!
 
Que aborrecida de viver procura
 
Todos os meios de encontrar a morte.
 
Nem quer que o esposo longamente a espere
 
No reino escuro, aonde se não ama.
 
Mas a enrugada Tanajura, que era
 
Prudente e exprimentada (e que a seus peitos
 
Tinha criado em mais ditosa idade
 
A mãe da mãe da mísera Lindóia),
 
E lia pela história do futuro,
 
Visionária, supersticiosa,
 
Que de abertos sepulcros recolhia
 
Nuas caveiras e esburgados ossos,
 
A uma medonha gruta, onde ardem sempre
 
Verdes candeias, conduziu chorando
 
Lindóia, a quem amava como filha;
 
E em ferrugento vaso licor puro
 
De viva fonte recolheu. Três vezes
 
Girou em roda, e murmurou três vezes
 
Co’a carcomida boca ímpias palavras,
 
E as águas assoprou: depois com o dedo
 
Lhe impõe silêncio e faz que as águas note.
 
Como no mar azul, quando recolhe
 
 
A lisonjeira viração as asas,
 
Adormecem as ondas e retratam
 
Ao natural as debruçadas penhas,
 
O copado arvoredo e as nuvens altas:
 
Não de outra sorte à tímida Lindóia
 
Aquelas águas fielmente pintam
 
O rio, a praia o vale e os montes onde
 
Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa
 
Entre despedaçados edifícios,
 
Com o solto cabelo descomposto,
 
Tropeçando em ruínas encostar-se.
 
Desamparada dos habitadores
 
A Rainha do Tejo, e solitária,
 
No meio de sepulcros procurava
 
Com seus olhos socorro; e com seus olhos
 
Só descobria de um e de outro lado
 
Pendentes muros e inclinadas torres.
 
Vê mais o Luso Atlante, que forceja
 
Por sustentar o peso desmedido
 
Nos roxos ombros. Mas do céu sereno
 
Em branca nuvem Próvida Donzela
 
Rapidamente desce e lhe apresenta,
 
De sua mão, Espírito Constante,
 
Gênio de Alcides, que de negros monstros
 
Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria.
 
Tem por despojos cabeludas peles
 
De ensangüentados e famintos lobos
 
E fingidas raposas. Manda, e logo
 
O incêndio lhe obedece; e de repente
 
Por onde quer que ele encaminha os passos
Dão lugar as ruínas. Viu Lindóia
 
Do meio delas, só a um seu aceno,
 
Sair da terra feitos e acabados
 
Vistosos edifícios. Já mais bela
 
Nasce Lisboa de entre as cinzas - glória
 
Do grande conde, que co’a mão robusta
 
Lhe firmou na alta testa os vacilantes
 
Mal seguros castelos. Mais ao longe
 
Prontas no Tejo, e ao curvo ferro atadas
 
Aos olhos dão de si terrível mostra,
 
Ameaçando o mar, as poderosas
 
Soberbas naus. Por entre as cordas negras
 
Alvejam as bandeiras: geme atado
 
Na popa o vento; e alegres e vistosas
 
Descem das nuvens a beijar os mares
 
As flâmulas guerreiras. No horizonte
 
Já sobre o mar azul aparecia
 
A pintada Serpente, obra e trabalho
 
Do Novo Mundo, que de longe vinha
 
Buscar as nadadoras companheiras
 
E já de longe a fresca Sintra e os montes,
 
Que inda não conhecia, saudava.
 
Impacientes da fatal demora
 
Os lenhos mercenários junto à terra
 
Recebem no seu seio e a outros climas,
 
Longe dos doces ares de Lisboa,
 
 
Transportam a Ignorância e a magra Inveja,
 
E envolta em negros e compridos panos
 
A Discórdia, o Furor. A torpe e velha
 
Hipocrisia vagarosamente
 
Atrás deles caminha; e inda duvida
 
Que houvesse mão que se atrevesse a tanto.
 
 
O povo a mostra com o dedo; e ela,
 
Com os olhos no chão, da luz do dia
 
Foge, e cobrir o rosto inda procura
 
Com os pedaços do rasgado manto.
 
Vai, filha da ambição, onde te levam
 
O vento e os mares: possam teus alunos
 
Andar errando sobre as águas; possa
 
Negar-lhe a bela Europa abrigo e porto.
 
Alegre deixarei a luz do dia,
 
Se chegarem a ver meus olhos que Ádria
 
Da alta injúria se lembra e do seu seio
 
Te lança - e que te lançam do seu seio
 
Gália, Ibéria e o país belo que parte
 
 
O Apenino, e cinge o mar e os Alpes.
 
Pareceu a Lindóia que a partida
 
Destes monstros deixava mais serenos
 
E mais puros os ares. Já se mostra
 
Mais distinta a seus olhos a cidade.
 
Mas viu, ai vista lastimosa! a um lado
 
Ir a fidelidade portuguesa,
 
Manchados os puríssimos vestidos
 
De roxas nódoas. Mais ao longe estava
 
Com os olhos vendados, e escondido
 
Nas roupas um punhal banhado em sangue,
 
O Fanatismo, pela mão guiando
 
Um curvo e branco velho ao fogo e ao laço.
 
Geme ofendida a Natureza; e geme
 
Ai! Muito tarde, a crédula cidade.
 
Os olhos põe no chão a Igreja irada
 
E desconhece, e desaprova, e vinga
 
O delito cruel e a mão bastarda.
 
Embebida na mágica pintura
 
Goza as imagens vãs e não se atreve
 
Lindóia a perguntar. Vê destruída
 
A República infame, e bem vingada
 
A morte de Cacambo. E atenta e imóvel
 
Apascentava os olhos e o desejo,
 
E nem tudo entendia, quando a velha
 
Bateu co’a mão e fez tremer as águas.
 
Desaparecem as fingidas torres
 
E os verdes campos; nem já deles resta
 
Leve sinal. Debalde os olhos buscam
 
As naus: já não são naus, nem mar, nem montes,
 
Nem o lugar onde estiveram. Torna
 
Ao pranto a saudosíssima Lindóia
 
E de novo outra vez suspira e geme.
 
Até que a noite compassiva e atenta,
 
Que as magoadas lástimas lhe ouvira,
 
Ao partir sacudiu das fuscas asas,
 
Envolto em frio orvalho, um leve sono,
 
Suave esquecimento de seus males.
</poem>
 
 
 
==Canto quarto==
 
<poem>
 
Salvas as tropas do noturno incêndio,
 
Aos povos se avizinha o grande Andrade,
 
Depois de afugentar os índios fortes
 
Que a subida dos montes defendiam,
 
E rotos muitas vezes e espalhados
 
Os tapes cavaleiros, que arremessam
 
Duas causas de morte em uma lança
 
E em largo giro todo o campo escrevem.
 
 
Que negue agora a pérfida calúnia
 
Que se ensinava aos bárbaros gentios
 
A disciplina militar, e negue
 
Que mãos traidoras a distantes povos
 
Por ásperos desertos conduziam
 
O pó sulfúreo, e as sibilantes balas
 
E o bronze, que rugia nos seus muros.
 
Tu que viste e pisaste, ó Blasco insigne,
 
Todo aquele país, tu só pudeste,
 
Co’a mão que dirigia o ataque horrendo
 
E aplanava os caminhos à vitória,
 
Descrever ao teu rei o sítio e as armas,
 
E os ódios, e o furor, e a incrível guerra.
 
Pisaram finalmente os altos riscos
 
 
De escalvada montanha, que os infernos
 
Co’o peso oprime e a testa altiva esconde
 
Na região que não perturba o vento.
 
Qual vê quem foge à terra pouco a pouco
 
Ir crescendo o horizonte, que se encurva,
 
Até que com os céus o mar confina,
 
Nem tem à vista mais que o ar e as ondas:
 
Assim quem olha do escarpado cume
 
Não vê mais do que o céu, que o mais lhe encobre
 
A tarda e fria névoa, escura e densa.
 
Mas quando o Sol de lá do eterno e fixo
 
Purpúreo encosto de dourado assento,
 
Co’a criadora mão desfaz e corre
 
O véu cinzento de ondeadas nuvens,
 
Que alegre cena para os olhos! Podem
 
Daquela altura, por espaço imenso,
 
Ver as longas campinas retalhadas
 
De trêmulos ribeiros, claras fontes
 
E lagos cristalinos, onde molha
 
As leves asas o lascivo vento.
 
Engraçados outeiros, fundos vales
 
E arvoredos copados e confusos,
 
Verde teatro, onde se admira quanto
 
Produziu a supérflua Natureza.
 
A terra sofredora de cultura
 
Mostra o rasgado seio; e as várias plantas,
 
Dando as mãos entre si, tecem compridas
 
Ruas, por onde a vista saudosa
 
Se estende e perde. O vagaroso gado
 
Mal se move no campo, e se divisam
 
Por entre as sombras da verdura, ao longe,
 
As casas branquejando e os altos templos.
 
Ajuntavam-se os índios entretanto
 
No lugar mais vizinho, onde o bom padre
 
O bom padre. Balda.
 
Queria dar Lindóia por esposa
 
Ao seu Baldetta, e segurar-lhe o posto
 
E a régia autoridade de Cacambo.
 
Estão patentes as douradas portas
 
Do grande templo, e na vizinha praça
 
Se vão dispondo de uma e de outra banda
 
As vistosas esquadras diferentes.
 
Co’a chata frente de urucu tingida,
 
Vinha o índio Cobé disforme e feio,
 
Que sustenta nas mãos pesada maça,
 
Com que abate no campo os inimigos
 
Como abate a seara o rijo vento.
 
Traz consigo os salvages da montanha,
 
Que comem os seus mortos; nem consentem
 
Que jamais lhes esconda a dura terra
 
No seu avaro seio o frio corpo
 
Do doce pai, ou suspirado amigo.
 
Foi o segundo, que de si fez mostra,
 
O mancebo Pindó, que sucedera
 
A Sepé no lugar: inda em memória
 
Do não vingado irmão, que tanto amava,
 
Leva negros penachos na cabeça.
 
São vermelhas as outras penas todas,
 
Cor que Sepé usara sempre em guerra.
 
Vão com eles os seus tapes, que se afrontam
 
 
É que têm por injúria morrer velhos.
 
Segue-se Caitutu, de régio sangue
 
E de Lindóia irmão. Não muito fortes
 
São os que ele conduz; mas são tão destros
 
No exercício da frecha que arrebatam
 
Ao verde papagaio o curvo bico,
 
Voando pelo ar. Nem dos seus tiros
 
O peixe prateado está seguro
 
No fundo do ribeiro. Vinham logo
 
Alegres guaranis de amável gesto.
 
Esta foi de Cacambo a esquadra antiga.
 
Penas da cor do céu trazem vestidas,
 
Com cintas amarelas: e Baldetta
 
Desvanecido a bela esquadra ordena
 
No seu Jardim: até o meio a lança
 
Pintada de vermelho, e a testa e o corpo
 
Todo coberto de amarelas plumas.
 
Pendente a rica espada de Cacambo,
 
E pelos peitos ao través lançada
 
Por cima do ombro esquerdo a verde faixa
 
De donde ao lado oposto a aljava desce.
 
Num cavalo da cor da noite escura
 
Entrou na grande praça derradeiro
 
Tatu-Guaçu feroz, e vem guiando
 
Tropel confuso de cavaleria,
 
Que combate desordenadamente.
 
Trazem lanças nas mãos, e lhes defendem
 
Peles de monstros os seguros peitos.
 
Revia-se em Baldetta o santo padre;
 
E fazendo profunda reverência,
 
Fora da grande porta, recebia
 
O esperado Tedeu ativo e pronto,
 
A quem acompanhava vagaroso
 
Com as chaves no cinto o Irmão Patusca,
 
De pesada, enormíssima barriga.
 
Jamais a este o som da dura guerra
 
Tinha tirado as horas do descanso.
 
De indulgente moral e brando peito,
 
Que penetrado da fraqueza humana
 
Sofre em paz as delícias desta vida,
 
Tais e quais no-las dão. Gosta das cousas
 
Porque gosta, e contenta-se do efeito
 
E nem sabe nem quer saber as causas.
 
Ainda que talvez, em falta de outro,
 
Com grosseiras ações o povo exorte,
 
Gritando sempre, e sempre repetindo,
 
Que do bom Pai Adão a triste raça
 
Por degraus degenera, e que este mundo
 
Piorando envelhece. Não faltava,
 
Para se dar princípio à estranha festa,
 
Mais que Lindóia. Há muito lhe preparam
 
Todas de brancas penas revestidas
 
Festões de flores as gentis donzelas.
 
Cansados de esperar, ao seu retiro
 
Vão muitos impacientes a buscá-la.
 
Estes de crespa Tanajura aprendem
 
Que entrara no jardim triste e chorosa,
 
Sem consentir que alguém a acompanhasse.
 
Um frio susto corre pelas veias
 
De Caitutu, que deixa os seus no campo;
 
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
 
Busca co’a vista, e teme de encontrá-la.
 
Entram enfim na mais remota e interna
 
Parte de antigo bosque, escuro e negro,
 
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
 
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
 
Curva latada de jasmins e rosas.
 
Este lugar delicioso e triste,
 
Cansada de viver, tinha escolhido
 
Para morrer a mísera Lindóia.
 
Lá reclinada, como que dormia,
 
Na branda relva e nas mimosas flores,
 
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
 
De um fúnebre cipreste, que espalhava
 
 
Melancólica sombra. Mais de perto
 
Descobrem que se enrola no seu corpo
 
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
 
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
 
Fogem de a ver assim, sobressaltados,
 
E param cheios de temor ao longe;
 
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
 
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
 
E fuja, e apresse no fugir a morte.
 
Porém o destro Caitutu, que treme
 
Do perigo da irmã, sem mais demora
 
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
 
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
 
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
 
O arco e faz voar a aguda seta,
 
Que toca o peito de Lindóia, e fere
 
A serpente na testa, e a boca e os dentes
 
Deixou cravados no vizinho tronco.
 
Açouta o campo co’a ligeira cauda
 
O irado monstro, e em tortuosos giros
 
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
 
Em negro sangue o lívido veneno.
 
Leva nos braços a infeliz Lindóia
 
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
 
Conhece, com que dor! no frio rosto
 
Os sinais do veneno, e vê ferido
 
Pelo dente sutil o brando peito.
 
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
 
Cheios de morte; e muda aquela língua
 
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
 
 
Contou a larga história de seus males.
 
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
 
E rompe em profundíssimos suspiros,
 
Lendo na testa da fronteira gruta
 
De sua mão já trêmula gravado
 
O alheio crime e a voluntária morte.
 
E por todas as partes repetido
 
O suspirado nome de Cacambo.
 
Inda conserva o pálido semblante
 
Um não sei quê de magoado e triste,
 
Que os corações mais duros enternece
 
Tanto era bela no seu rosto a morte!
 
Indiferente admira o caso acerbo
 
Da estranha novidade ali trazido
 
O duro Balda; e os índios, que se achavam,
 
Corre co’a vista e os ânimos observa.
 
Quando pode o temor! Secou-se a um tempo
 
Em mais de um rosto o pranto; e em mais de um peito
 
Morreram sufocados os suspiros.
 
Ficou desamparada na espessura,
 
E exposta às feras e às famintas aves,
 
Sem que alguém se atrevesse a honrar seu corpo
 
De poucas flores e piedosa terra.
 
Fastosa egípcia, que o maior triunfo
 
Temeste honrar do vencedor Latino,
 
Se desceste inda livre ao escuro reino
 
Foi vaidosa talvez da imaginada
 
Bárbara pompa do real sepulcro.
 
Amável indiana, eu te prometo
 
Que em breve a iníqua pátria envolta em chamas
 
Te sirva de urna, e que misture e leve
 
A tua e a sua cinza o irado vento.
 
Confusamente murmurava entanto
 
Do caso atroz a lastimada gente.
 
Dizem que Tanajura lhes pintara
 
Suave aquele gênero de morte,
 
E talvez lhe mostrasse o sítio e os meios.
 
Balda, que há muito espera o tempo e o modo
 
De alta vingança, e encobre a dor no peito,
 
Excita os povos a exemplar castigo
 
Na desgraçada velha. Alegre em roda
 
Se ajunta a petulante mocidade
 
Co’as armas que o acaso lhe oferece.
 
Mas neste tempo um índio pelas ruas
 
Com gesto espavorido vem gritando,
 
Soltos e arrepiados os cabelos:
 
Fugi, fugi da mal segura terra,
 
Que estão já sobre nós os inimigos.
 
Eu mesmo os vi, que descem do alto monte,
 
E vêm cobrindo os campos; e se ainda
 
Vivo chego a trazer-vos a notícia,
 
Aos meus ligeiros pés a vida eu devo.
 
Debalde nos expomos neste sítio,
 
Diz o ativo Tedeu: melhor conselho
 
É ajuntar as tropas no outro povo:
 
Perca-se o mais, salvemos a cabeça.
 
Embora seja assim: faça-se em tudo
 
A vontade do céu; mas entretanto
 
Vejam os contumazes inimigos
 
Que não têm que esperar de nós despojos,
 
Falte-lhe a melhor parte ao seu triunfo.
 
Assim discorre Balda; e entanto ordena
 
Que todas as esquadras se retirem,
 
Dando as casas primeiro ao fogo, e o templo.
 
Parte, deixando atada a triste velha
 
Dentro de uma choupana, e vingativo
 
Quis que por ela começasse o incêndio.
 
Ouviam-se de longe os altos gritos
 
Da miserável Tanajura. Aos ares
 
Vão globos espessíssimos de fumo,
 
Que deixa ensangüentada a luz do dia.
 
Com as grossas camáldulas à porta,
 
Devoto e penitente os esperava
 
O Irmão Patusca, que ao rumor primeiro
 
Tinha sido o mais pronto a pôr-se em salvo
 
E a desertar da perigosa terra.
 
Por mais que o nosso General se apresse,
 
Não acha mais que as cinzas inda quentes
 
E um deserto onde há pouco era a cidade.
 
Tinham ardido as míseras choupanas
 
Dos pobres índios, e no chão caídos
 
Fumegavam os nobres edifícios,
 
Deliciosa habitação dos padres.
 
Entram no grande templo e vêem por terra
 
As imagens sagradas. O áureo trono,
 
O trono em que se adora um Deus imenso
 
Que o sofre, e não castiga os temerários,
 
Em pedaços no chão. Voltava os olhos
 
Turbado o General: aquela vista
 
Lhe encheu o peito de ira, e os olhos de água.
 
Em roda os seus fortíssimos guerreiros
 
Admiram, espalhados, a grandeza
 
Do rico templo e os desmedidos arcos,
 
As bases das firmíssimas colunas
 
E os vultos animados, que respiram
 
Na abóbeda o artífice famoso
 
Pintara... mas que intento! as roucas vozes
 
Seguir não podem do pincel os rasgos.
 
Gênio da inculta América, que inspiras
 
A meu peito o furor que me transporta,
 
Tu me levanta nas seguras asas.
 
Serás em paga ouvido no meu canto.
 
E te prometo que pendente um dia
 
Adorne a minha lira os teus altares.
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==Canto quinto==
 
<poem>
 
Na vasta e curva abóbeda pintara
 
A destra mão de artífice famoso,
 
Em breve espaço, e Vilas, e Cidades,
 
E Províncias e Reinos. No alto sólio
 
Estava dando leis ao mundo inteiro
 
A Companhia. Os Cetros, e as Coroas,
 
E as Tiaras, e as Púrpuras em torno
 
Semeadas no chão. Tinha de um lado
 
Dádivas corruptoras: do outro lado
 
Sobre os brancos altares suspendidos
 
Agudos ferros, que gotejam sangue.
 
Por esta mão ao pé dos altos muros
 
Um dos Henriques perde a vida e o reino.
 
E cai por esta mão, oh céus! debalde
 
Rodeado dos seus o outro Henrique,
 
Delícia do seu povo e dos humanos.
 
Príncipes, o seu sangue é vossa ofensa.
 
Novos crimes prepara o horrendo monstro.
 
Armai o braço vingador: descreva
 
Seus tortos sucos o luzente arado
 
Sobre o seu trono; nem aos tardos netos
 
O lugar, em que foi, mostrar-se possa.
 
Viam-se ao longe errantes e espalhados
 
Pelo mundo os seus filhos ir lançando
 
Os fundamentos do esperado Império
 
De dous em dous: ou sobre os coroados
 
Montes do Tejo; ou nas remotas praias,
 
Que habitam as pintadas Amazonas,
 
Por onde o rei das águas escumando
 
Foge da estreita terra e insulta os mares.
 
Ou no Ganges sagrado; ou nas escuras
 
Nunca de humanos pés trilhadas serras
 
Aonde o Nilo tem, se é que tem, fonte.
 
Com um gesto inocente aos pés do trono
 
Via-se a Liberdade Americana
 
Que arrastando enormíssimas cadeias
 
Suspira, e os olhos e a inclinada testa
 
Nem levanta, de humilde e de medrosa.
 
Tem diante riquíssimo tributo,
 
Brilhante pedraria, e prata, e ouro,
 
Funesto preço por que compra os ferros.
 
Ao longe o mar azul e as brancas velas
 
Com estranhas divisas nas bandeiras
 
Denotam que aspirava ao senhorio,
 
E da navegação e do comércio.
 
Outro tempo, outro clima, outros costumes.
 
Mais além tão diversa de si mesma,
 
Vestida em larga roupa flutuante
 
Que distinguem barbáricos lavores,
 
Respira no ar chinês o mole fasto
 
De asiática pompa; e grave e lenta
 
Permite aos bonzos, apesar de Roma,
 
Do seu Legislador o indigno culto.
 
Aqui entrando no Japão fomenta
 
Domésticas discórdias. Lá passeia
 
No meio dos estragos, ostentando
 
Orvalhadas de sangue as negras roupas.
 
Cá desterrada enfim dos ricos portos,
 
Voltando a vista às terras que perdera,
 
Quer pisar temerária e criminosa...
 
Oh céus! Que negro horror! Tinha ficado
 
Imperfeita a pintura, e envolta em sombras.
 
Tremeu a mão do artífice ao fingi-la,
 
E desmaiaram no pincel as cores.
 
Da parte oposta, nas soberbas praias
 
Da rica Londres trágica e funesta,
 
Ensangüentado o Tâmega esmorece.
 
Vendo a conjuração pérfida e negra
 
Que se prepara ao crime; e intenta e espera
 
Erguer aos céus nos inflamados ombros
 
E espalhar pelas nuvens denegridos
 
Todos os grandes e a famosa sala.
 
Por entre os troncos de umas plantas negras,
 
Por obra sua, viam-se arrastados
 
Às ardentes areias africanas
 
O valor e alta glória portuguesa.
 
Ai mal aconselhado quanto forte,
 
Generoso Mancebo! eternos lutos
 
Preparas à chorosa Lusitânia.
 
Desejado dos teus, a incertos climas
 
Vás mendigar a morte e a sepultura.
 
Já satisfeitos do fatal desígnio,
 
Por mão de um dos Felipes afogavam
 
Nos abismos do mar e emudeciam
 
Queixosas línguas e sagradas bocas
 
Em que ainda se ouvia a voz da pátria.
 
Crescia o seu poder e se firmava
 
Entre surdas vinganças. Ao mar largo
 
Lança do profanado oculto seio
 
O irado Tejo os frios nadadores.
 
E deixa o barco e foge para a praia
 
O pescador que atônito recolhe
 
Na longa rede o pálido cadáver
 
Privado de sepulcro. Enquanto os nossos
 
Apascentam a vista na pintura,
 
Nova empresa e outro gênero de guerra
 
Em si resolve o General famoso.
 
Apenas esperou que ao sol brilhante
 
Desse as costas de todo a opaca terra,
 
Precipitou a marcha e no outro povo
 
Foi sorprender os índios. O Cruzeiro,
 
Constelação dos europeus não vista,
 
As horas declinando lhe assinala.
 
A corada manhã serena e pura
 
Começava a bordar nos horizontes
 
O céu de brancas nuvens povoado
 
Quando, abertas as portas, se descobrem
 
Em trajes de caminho ambos os padres,
 
Que mansamente do lugar fugiam,
 
Desamparando os miseráveis índios
 
Depois de expostos ao furor das armas.
 
Lobo voraz que vai na sombra escura
 
Meditando traições ao manso gado,
 
Perseguido dos cães, e descoberto
 
Não arde em tanta cólera, como ardem
 
Balda e Tedeu. A soldadesca alegre
 
Cerca em roda o fleumático Patusca,
 
Que próvido de longe os acompanha
 
E mal se move no jumento tardo.
 
Pendem-se dos arções de um lado e de outro
 
Os paios saborosos e os vermelhos
 
Presuntos europeus; e a tiracolo,
 
Inseparável companheira antiga
 
De seus caminhos, a borracha pende.
 
Entra no povo e ao templo se encaminha
 
O invicto Andrade; e generoso, entanto,
 
Reprime a militar licença, e a todos
 
Co’a grande sombra ampara: alegre e brando
 
No meio da vitória. Em roda o cercam
 
(Nem se enganaram) procurando abrigo
 
Chorosas mães, e filhos inocentes,
 
E curvos pais e tímidas donzelas.
 
Sossegado o tumulto e conhecidas
 
As vis astúcias de Tedeu e Balda,
 
Cai a infame República por terra.
 
Aos pés do General as toscas armas
 
Já tem deposto o rude Americano,
 
Que reconhece as ordens e se humilha,
 
E a imagem do seu rei prostrado adora.
 
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos
 
Embora um dia a escura noite eterna.
 
Tu vive e goza a luz serena e pura.
 
Vai aos bosques de Arcádia: e não receies
 
Chegar desconhecido àquela areia.
 
Ali de fresco entre as sombrias murtas
 
Urna triste a Mireo não todo encerra.
 
Leva de estranho céu, sobre ela espalha
 
Co’a peregrina mão bárbaras flores.
 
E busca o sucessor, que te encaminhe
 
Ao teu lugar, que há muito que te espera.
</poem>
 
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'''Basílio da Gama, poema épico de 1769. Arcadismo'''
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