Sermão do Mandato (1655): diferenças entre revisões

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Parte 4
Linha 53:
É o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: ''Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit''<ref>"''Em nenhum lugar tomou aos anjos, mas tomou a descendência de Abraão (Hebr 2, 16).''"</ref>, cujo fundo e energia não acho tão declarada nos expositores como ele pede. Dizem que nusquam é o mesmo que nunquam ou nequaquam, mas nusquam não é simples negação, nem advérbio de tempo, senão de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo que não tomou Deus a natureza angélica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha Deus nove partes em que a tomar: três na primeira hierarquia, três na segunda e três na terceira. E essa foi a maravilha do mistério da Encarnação, que por tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a angélica. Na primeira hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades, principados, dominações; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no homem, que era o décimo, último e ínfimo lugar, onde jazia Jacó, ali tomou a nossa natureza caída, para a levantar, e enferma, para lhe dar saúde, que foi o fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaías a vida em nome de Deus; e em testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no céu, que o sol tornaria atrás dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: ''Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat''<ref>"''E retrocedeu o sol dez linhas pelos graus por onde tinha descido (Is 38, 8).''"</ref>. E por que tornou o sol atrás dez linhas, ou dez degraus, e não onze, ou nove, senão dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodígio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o da Encarnação do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no zênite - que não podia ser de outra sorte - tornou atrás dez linhas, até se pôr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas até se pôr na última e ínfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodígio por amor de Ezequias, e em benefício da sua saúde, assim obrou o da Encarnação muito mais estupendo, por amor dos homens e para saúde dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est.
 
== § IV ==
 
O pasmo e o horror dos discípulos de Cristo no Cenáculo. O assombro de Jacó e a reverência de Pedro. Quando se fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metáforas ou comparações de São Paulo. Por que diz o apóstolo do terceiro céu que quando Cristo se fez servo não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua?
 
Isto é o que neste dia se obrou em Nazaré. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenáculo de Jerusalém, e veremos com quanta maior razão se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste <ref>"''Quão terrível é este lugar (Gên 27, 17)!''"</ref>! Despe-se Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita água em uma bacia com suas próprias mãos: entende-se destas ações, que quer lavar os pés aos discípulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que as mesmas paredes do Cenáculo parece que tremiam? Não estava aqui Jacó, mas estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)? Vós, Senhor, a mim lavar os pés? - Eternamente não consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo 13, 8). Já neste primeiro movimento se vê quanto vai de dia a dia, e de mistério a mistério. Comparai-me a S. Pedro com Jacó. Jacó, depois que viu a escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum <ref>"''Até que venha o desejo dos outeiros eternos (Gên 49, 26).
''"</ref>. Pelo contrário, Pedro, vendo que Cristo lhe quer lavar os pés, não sofre nem consente em tal ação, antes diz resolutamente que a não consentirá por toda a eternidade: Non lavabis mihi pedes in aeternum. - Se isto era amor e reverência de Cristo em Pedro, também Jacó o reverenciava e arnava muito. Pois, se Jacó deseja que Deus desça e se abata a se fazer homem, por que não consente Pedro que se abata a lhe lavar os pés? Por isso mesmo. Porque tanto vai de um abatimento a outro abatimento. Encarnar Deus, era fazer-se homem; lavar os pés aos homens era fazer-se servo; encarnar era vestir-se da nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era despir-se da sua divindade.
 
Não me atrevera a dizer tanto se S. Paulo o não tivera dito, e ainda muito mais. É passo muitas vezes ouvido, mas que terá que explicar até o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo <ref>"''0 qual, tendo a natureza de Deus, não julgou que fosse nele uma usurpação o ser igual a Deus; mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo, fazendo-se semelhante aos homens, e sendo reconhecido na condição como homem (Flp 2, 6 s).''"</ref>. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez homem: ln similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo? Fez-se homem na Encarnação, e fez-se servo no lavatório dos pés. Logo, na Encarnação se fez e no lavatório se desfez. Muitos autores entendem todo este texto só da Encarnação, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se servo. Mas esta interpretação é imprópria, por não dizer injuriosa à natureza humana. O ser homem é indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e Cristo, enquanto homem, não só foi Senhor, senão grande Senhor. Assim o disse o anjo no mesmo dia da Encarnação, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do Altíssimo, e, enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta suposição falou sempre o mesmo Cristo: Non est servus major domino suo. Si me persecuti sunt, et vos persequentur <ref>"''Não é o servo maior do que seu senhor. Se eles me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós (Jo 15, 20).''"</ref>; e hoje, depois do mesmo ato do lavatório: Vos vocatis me Magister et Domine, et bene dicitis: sum etenim <ref>"''Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou (Jo 13, 13).''"</ref>. Nem encontram, antes confirmam esta distinção as mesmas palavras de São Paulo, as quais dizem que tomou o Senhor a forma de servo, não fazendo-se, senão feito homem: Formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus - porque, feito homem na Encarnação, tomou a forma de servo, lavando os pés aos homens. Expressa e esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus Christus, Dominus et Deus apostolorum, cum accipisset ,formam servi, surgit a coena, et ponit vestimenta sua, et linteo praecinxit se: haec est forma servi. A baixeza do servo não é obra ou injúria da natureza, senão da fortuna. A natureza a todos os homens fez iguais: a fortuna é a que fez os altos, os baixos e os baixíssimos, quais são os servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje sobre a do dia e obra da Encarnação. Quando se fez homem tomou as condições da natureza; quando se fez servo e lavou os pés aos homens, tomou as baixezas da fortuna. Aquilo foi fazer-se, e isto desfazer-se: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens.
 
Com duas comparações ou metáforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metáfora da roupa que se veste e se despe, e com metáfora do vaso que se enche e se vaza. Com metáfora da roupa que se veste e se despe: Habitu inventus ut homo <ref>"''Sendo reconhecido na condição como homem (Flp 2, 7).''"</ref>; com metáfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum <ref>"''Mas ele se aniquilou a si mesmo (Flp 2, 7 ).''"</ref> e ambas as metáforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatório em que estamos. . A da roupa enquanto se despe: Ponit vestimenta sua <ref>"''Depôs suas vestiduras (Jo 13, 4).''"</ref> - e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim <ref>"''Lançou água numa bacia (Jo 13, 5).''"</ref>. E por que usou S. Paulo destas duas metáforas e destas duas comparações? Porque só com elas podia mostrar a diferença deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnação. No dia e ato da Encarnação, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de seu ser: Quia ín ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter <ref>"''Porque nele habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col. 2, 9).''"</ref>. E, sendo isto o que se fez no dia da Encarnação, tudo isto - quanto à vista dos olhos humanos - se desfez no dia e no ato de hoje. Porque, lançando-se Cristo aos pés dos homens, e tais homens, e fazendo-se servo seu, e servo em ministério tão vil e tão abatido, parece que Deus se despira outra vez da humanidade de que estava vestido, desunindo-se dela, e que a mesma humanidade, que estava cheia de Deus, perdida a união com a divindade, ficara totalmente vazia: Exinanivtt semetipsum, formam servi accipiens <ref>"''Mas ele se aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de servo (Flp 2, 7).''"</ref>. E foi isto assim como parece? Não. Mas, posto que a humanidade de Cristo por este ato não perdeu a união com a divindade, nem deixou de estar tão cheia de Deus como dantes estava, abaixar-se, porém, e pôr-se em estado tão abatido, que o parecesse ou pudesse parecer aos homens, foi uma diferença tão notável e tão estupenda, que só o mesmo S. Paulo a pode ponderar e encarecer. Agora entra o mais profundo pensamento das suas palavras.
 
Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam serv accipiens (Flp 2, 6 s). O fazer-se Cristo servo, sendo Deus - diz S.Paulo - não foi porque cuidasse ou tivesse para si o mesmo Cristo que a sua divindade não era sua, senão alheia, como se a tivesse roubado ao Padre. Pois Cristo podia cuidar nem ter para si que a sua divindade não era sua? Claro está que não podia ter para si uma coisa tão contrária à verdade, nem cuidar o que era tão alheio de todo o pensamento. Por que diz logo o Apóstolo do terceiro céu que, quando Cristo se fez servo, não cuidou nem teve para si que a sua divindade não era sua? Porque foi tal ato o de Cristo se abater aos pés dos homens, que podiam os mesmos homens cuidar que Cristo o cuidara assim. Homem que tanto se abate, ou não é Deus, ou, se foi Deus alguma hora, tem deixado de o ser, ou, se ainda é Deus, deve de cuidar sem dúvida que o não é, porque, sendo Deus, e tendo para si que é Deus, não se podia abater a coisa tão baixa. E como o ato foi alheio de quem o fazia, que os homens podiam entrar em tal pensamento, que, ou cuidassem que Cristo não era Deus, ou cuidassem que o mesmo Cristo cuidou que o não era, por isso pondera e adverte S. Paulo primeiro que tudo que, quando Cristo se abateu à baixeza de servo, não foi porque cuidasse ou tivesse para si que não era Deus: Non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens.É o que também advertiu e ponderou o nosso evangelista, na prefação com que entrou a narrar este mesmo ato. Por isso disse que, quando o Senhor começou a lavar os pés dos discípulos, sabia que era Deus, e que nas mesmas mãos com que lhes lavava os pés, tinha o poder de tudo: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit, et quia omnia dedit ei Pater in manus, caepit lavare pedes discipolorum <ref>"''Sabendo que ele saíra de Deus, e ia para Deus, e que o Pai depositara em suas mãos todas as coisas, começou a lavar os pés aos discípulos (Jo 13, 3. 5).''"</ref>. Crendo pois S. Pedro firmissimamente esta verdade - que por isso disse: Domine, tu mihi <ref>"''Senhor, tu a mim (Jo 13, 6)?''"</ref>? que muito é que, sendo aquele grande piloto, que nunca perdeu o tino nas maiores tempestades, e se atreveu a caminhar a pé sobre as mesmas ondas do mar, agora areasse e se afogasse em tão pouca água, como a daquela bacia, e não pudesse tomar pé na profundidade imensa de tão tremendo mistério?
 
== Notas ==