Eneida Brazileira/I: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Giro720 (discussão | contribs)
m Desfeita a edição 75941 de Giro720 (Discussão)
Giro720 (discussão | contribs)
mSem resumo de edição
Linha 8:
}}
<div style="width:35em; text-align:justify; margin:0px auto;">
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/7}}
<poem>
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/8}}
Eu, que entoava na delgada avena
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/9}}
Rudes canções, e egresso das florestas,
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/10}}
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/11}}
A avidez do colono, empresa grata<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="5">5</span>
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/12}}
Aos aldeãos; de Marte ora as horriveis
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/13}}
Armas canto, e o varão que, lá de Troia
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/14}}
Prófugo, á Italia e de Lavino ás praias
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/15}}
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/16}}
Muito o agitou violenta mão suprema,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="10">10</span>
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/17}}
E o lembrado rancor da seva Juno;
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/18}}
Muito em guerras soffreu, na Ausonia quando
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/18}}
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/20}}
Donde a nação latina e albanos padres,
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/21}}
E os muros vem da sublimada Roma.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="15">15</span>
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/22}}
Musa, as causas me aponta, o offenso nume,
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/23}}
Ou por que mágoa a soberana déa
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/24}}
Compelliu na piedade o heroe famoso
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/25}}
A lances taes passar, volver taes casos.
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/26}}
Pois tantas iras em celestes peitos!<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="20">20</span>
{{Página:Eneida Brazileira.djvu/27}}
Colonia tyria no ultramar, Carthago,
Do ítalo Tibre contraposta ás fozes,
Houve, possante emporio, antigo, asperrimo
N’arte da guerra; ao qual, se conta, Juno
Até pospoz a predilecta Samos:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="25">25</span>
Lá coche, armas lá teve; e annúa o fado,
No orbe enthronal-a então já traça e tenta.
Porêm de Teucro ouvira que a progenie,
Dos Penos subvertendo as fortalezas,
Viria a ser, desmoronada a Libya,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="30">30</span>
A’ larga rei bellipotente povo:
Que assim no fuso as Parcas o fiavam.
Saturnia o teme, e a pró dos seus Achivos
Recorda as lides que excitara em Troia;
Nem d’alma aggravos risca, dôres cruas:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="35">35</span>
No íntimo impressa a decisão de Páris,
A injúria da belleza em menoscabo,
E a raça detestada e as honras duram
Do rapto Ganymedes. Nestes odios
Sôbre-accesa, os da Grecia e immite Achilles<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="40">40</span>
Salvos Troas, do Lacio ia alongando,
Por todo o plaino undísono atirados;
E, em derredor vagando annos e annos,
De mar em mar a sorte os repulsava.
Tam grave era plantar de Roma a gente!<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="45">45</span>
De Sicilia, amarando, mal velejam
Ledos e o cobre rompe a salsa espuma,
Juno, dentro guardada eterna chaga:
"Eu, diz comsigo, desistir vencida!
Nem vedar posso a Italia ao rei dos Teucros!<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="50">50</span>
Ah! tolhe-me o destino. A esquadra argiva
Não queimou Pallas mesma, submergindo-os
Só de um Ajax Oileu por culpa e furias?
Do Tonante o corisco ella das nuvens
Darda, os baixéis desgarra, o ponto assanha;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="55">55</span>
Ao triste, que varado expira chammas,
N’um torvelinho em rocha aguda o crava:
E eu, que raínha marcho ante as deidades,
Mulher e irmã de Jove, tantos annos
Guerreio um povo! E a Juno ha quem adore,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="60">60</span>
Ou súpplice inda a incense, a invoque e honre?"
No âmago isto fermenta, e a deusa á patria
De austros furentes, de chuveiros prenhe,
A’ Eolia parte. Aqui n’um antro immenso
O rei preme, encarcera, algema, enfreia<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="65">65</span>
Luctantes ventos, roncas tempestades.
Em tôrno aos claustros de indignados fremem
Com gran’rumor do monte. Em celsa roca
Sentado Eolo, arvora o sceptro, e as iras
Tempera e os amacia. Que o não faça,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="70">70</span>
Varridos mar e terra e o céo profundo
Lá se vam pelos ares. Cauto, em negras
Furnas o omnipotente os aferrolha,
E, um cargo de montanhas sobrepondo,
Lhes deu rei, que mandado a ponto as bridas<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="75">75</span>
Suster saiba ou laxar. Dest’arte Juno
O exora humilde: "Eolo, o pae dos divos
E rei dos homens te concede as ondas
Sublevar e amainal-as; gente imiga
Me sulca as do Tyrrheno, Ilio e os domados<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="80">80</span>
Penates para Italia transportando:
Ventos açula, as pôpas mette a pique,
Ou dispersas no ponto as espedaça.
Quatorze esbeltas nymphas me cortejam,
Das quaes a mais formosa, Deiopeia,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="85">85</span>
Prometto unir comtigo em jugo estavel;
Que em paga para sempre a ti se vote,
Meiga te procreando egregia prole."
A quem Eolo: "Que o desejes basta;
Meu, raínha, he servir-te. Quanto valho<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="90">90</span>
Tu m’o grangêas, e este sceptro e Jove;
Tu dás-me á diva mesa o recostar-me,
Ser em tufões potente e em tempestades."
Dice; e um revez do conto a cava serra
A um lado impelle: em turbilhão, cerrados<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="95">95</span>
N’um grupo os ventos, dada a porta, ruem,
As terras varejando. Ao mar carregam,
E horrísonos revolvem-lhe as entranhas
Nôto mais Euro, e de borrascas fertil
Africo; ás praias vastas ondas rolam.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="100">100</span>
Homens gritam, zunindo a enxarcia ringe.
Some-se ao nauta o céo, tolda-se o dia;
Pousa no pelago atra noite; os polos
Toam, o ether fuzila em crebros raios:
Tudo ameaça aos varões presente a morte.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="105">105</span>
Frígido, arripiado, Enéas geme,
E alça as palmas e exclama: "Afortunados
Oh! tres e quatro vezes, d’Ilio ás abas,
Os que aos olhos paternos feneceram!
O’ dos Danaos fortissimo Tydides,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="110">110</span>
A alma em Troia vertendo-me essa dextra,
Não ficar eu nos campos, onde o bravo
Heitor d’Eacide ás lançadas, onde
Sarpédon jaz magnanimo, onde o Simois
Corpos e elmos de heroes e escudos tantos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="115">115</span>
Arrebatados na corrente volve!"
Bradava; e a sibilar ponteiro Bóreas
Rasga o panno, e a mareta aos astros joga.
Remos estalam; cruza a proa, e o bórdo
Rende; escarpado fluido monte empina-se.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="120">120</span>
As naus já no escarcéo pendem, já descem
N’um sorvedouro á terra entre marouços:
Remoínha o esto na revôlta arêa.
Tres rouba Nôto e avexa n’uns abrolhos,
Abrolhos sob o mar, que Italos aras<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="125">125</span>
Nomêam, dorso horrendo ao lume d’agua;
Tres no parcel (que lastima!) Euro esbarra,
Encalha em vaos, de marachões rodêa.
Uma, em que Oronte fido e os Lycios vinham,
Ante Enéas, d’avante humido rôlo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="130">130</span>
Do maior pino desabando, em pôpa
Fere-a; do baque o prono mestre vôlto
Cahe de cabeça. O vagalhão tres vezes
Torce-a, revira, um vortice a devora.
Raros no vasto pégo a nadar surdem;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="135">135</span>
Taboas e armas viris e alfaias troicas,
Prêa das ondas. A tormenta escala
A nau robusta de Ilioneu, de Abante,
As de Alethes grandevo e Achates forte:
Todas, frouxadas as junturas, sorvem<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="140">140</span>
A inimiga torrente, e em fendas gretam.
Mugir seu reino e o temporal desfeito,
Caixões do imo a brotar, sentiu Neptuno,
Torvo, abalado, e acode acima e exalta
A placida cabeça. A frota esparsa<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="145">145</span>
Vê sossobrando, oppressos os Troianos
Da marejada e do ruído ethereo.
De Juno irosa o dolo o irmão percebe;
Euro e Zephyro chama: "Herdastes, ventos,
Tal presumpção, que sem meu nume, ousados,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="150">150</span>
Terra e céo confundis e equoreas brenhas?
Eu vos... Mas insta abonançar as vagas:
Caro m’o pagareis, guardo o castigo.
Ao rei vosso intimai, já já, que em sorte
Não lhe coube este imperio, que o tridente<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="155">155</span>
Fero he só meu. Tem elle enormes fragas,
Euro, vossas mansões: nessa aula ufano
Sôbre enclaustrados ventos reine Eolo."
Nem cessa, e o mar se lança, o tempo alimpa
E abre o Sol. Finca a espadoa, e com Cymóthoe<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="160">160</span>
As naus Tritão do escolho dsengasga;
Mesmo o padre as alliva com seu sceptro,
Amplas syrtes afunda, aplaca os mares,
Por cima em rodas se deslisa leves.
Como, enraivado em popular tumulto,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="165">165</span>
Despara ignobil vulgo, e o facho e o canto
Já voa, as armas o furor ministra;
Mas, se um pio ancião preclaro assoma,
Calam, para escutar o ouvido afiam;
Elle os convence e os animos abranda:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="170">170</span>
Assim baixa o fragor e o pégo amansa,
Quando olha o deus, que os brutos no ar sereno
Dobra, e dá loros ao ligeiro carro.
Da costa proxima em demanda, á Libya
Os cansados Eneadas aproam.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="175">175</span>
N’um golpho alli secreto, com seus braços
Faz barra ilha fronteira, onde a mareta
Quebra e se escoa em sinuosas rugas:
Penedia em redondo, e ao céo minazes
Ha dous picos irmãos, a cujo abrigo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="180">180</span>
Dorme diffuso o mar; de coruscantes
Selvas prolonga-se eminente scena,
Descahe de atra espessura horrida sombra;
No tôpo ha gruta em pêndulos cachopos,
Com doce fonte, e em viva rocha bancos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="185">185</span>
Das nymphas séde: aqui não prende amarra
Nem mordaz ferro adunco as lassas quilhas.
Com sete naus ao todo arriba Enéas;
E amorosos da terra, alvoroçados
Saltando os seus, do sal tabidos membros<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="190">190</span>
Na arêa espraiam. Lume eis fere Achates,
Toma em folhas, e em roda as accendalhas,
Nutre a faisca, e em lenha a chamma atêa.
Mareados pães e cereaes aprestos
Já desembarca a trabalhada chusma,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="195">195</span>
E os grãos põe-se a torrar e em pedra os pisa.
Trepa emtanto um penhasco, e ao largo Enéas
Regyra, a vêr se undívagos alcança
Antheu ou Capys, as biremes phrygias,
Ou armas de Caíco em altas pôpas.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="200">200</span>
Baixel nenhum; avista só tres cervos
Na praia errantes; segue atrás o armento,
E enfileirado pelos valles pasta.
Retem-se, e o arco aferra e as settas ageis
Que armam Achates fido, e os guias logo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="205">205</span>
De arboreas pontas entonados, prostra;
Embrenha a demais turba e acossa a tiros,
Té que derriba sete ingentes corpos,
E iguala as naus. De vólta, elle os divide.
E os barris que, á partida, o heroe trinacrio<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="210">210</span>
Bom de vinho atestara, aos seus larguêa;
Dulcíloquo os mitiga: "Os males, socios,
Nada estranhamos; oh! mais agros foram:
Deus porá termo a estes. Vós de Scylla
De perto a raiva e escolhos resonantes,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="215">215</span>
Vós cyclopeos rochedos affrontastes:
Animo! esse temor bani tristonho;
Talvez isto com gôsto inda nos lembre.
Por varios casos, transes mil, nos vamos
Ao Lacio onde o repouso os fados mostram:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="220">220</span>
Resurgir deve alli de Troia o reino.
Tende-vos duros, da bonança á espera."
Tal discursa, e affectando um ar seguro,
N’alma inferma suffoca a dôr profunda.
Lestos á presa atiram-se: este esfola,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="225">225</span>
Aquele desentranha, outro esposteja;
Qual trementes no espeto enrosca os lombos,
Qual fogo atiça aos caldeirões na praia.
Fartos, na relva espalham-se, refeitos
De velho baccho e veação opíma.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="230">230</span>
Repleta a fome, e as mesas removidas,
Dubios indagam, sôbre os seus praticam
Entre medo e esperança: estam com vida?
Ou na extrema agonia ao brado surdos?
Mormente o pio rei de Amyco chora<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="235">235</span>
Ou de Lyco o desastre, o ardido Oronte,
E o forte Gyas e Cloantho forte.
Das alturas, no fim, Jove esguardando
O mar velívolo e as jacentes plagas
E amplas nações, no vertice do Olympo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="240">240</span>
Quedo, os olhos fitou nos lybios reinos.
Quando o absorviam taes cuidados, Venus
Triste, os gentis luzeiros orvalhando:
"O’ tu, queixou-se, que os mortaes e os deuses
Reges eterno e horrísono fulminas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="245">245</span>
O que te fez meu filho, o que os Troianos,
Que após tragos lethaes, não só d’Italia,
Do universo os cancellos se lhes fecham?
Roma delles tirar, delles os cabos
Que, eras volvendo, restaurado o sangue<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="250">250</span>
De Teucro, o mar e a terra sofreiassem,
Nos prometteste: quem mudou-te, ó padre?
Do occaso ao menos e desgraças d’Ilio
Isto, uns fados com outros compensando,
Me consolava. Igual fortuna arrasta<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="255">255</span>
Ora os varões a riscos e a trabalhos:
Quando os findas, gran’rei? De Acheus escapo,
Entrar salvo Antenor d’Illyria o seio
E internar-se em Liburnia, e a fonte obteve
De Timavo transpôr, donde por bôcas<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="260">260</span>
Nove, a montanha a rimbombar, despenha-se
Ruidoso mar que empola e o campo alaga.
Sentou Patavio aqui, deu casa a Teucros,
Nome á gente, e os brasões fixou de Troia;
Descansa em doce paz. Nós tua estirpe,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="265">265</span>
Nós da celeste côrte, as naus submersas,
Ah! de uma por furor, victimas somos,
Longe expulsos d’Italia? Deste modo
Se honra a piedade, os sceptros nos reservas?"
Sorrindo-se o autor de homens e numes,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="270">270</span>
C’um gesto que a tormenta e o céo serena,
Da filha osculos liba, e assim pondera:
"Poupa esse medo, Cypria; immotos jazem
Dos teus os fados: nas lavinias tôrres
Has de revêr-te, e alar sôbre as estrellas<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="275">275</span>
Teu grande Enéas. Jupiter não muda.
O heroe na Italia (esta ancia te remorde,
Vou rasgar-te os arcanos do futuro)
Guerras tem de mover e amansar povos,
E instituir cidades e costumes,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="280">280</span>
Ao passo que reinando o vir no Lacio
Terceiro estio, e os Rutulos domados,
Forem-se tres invernos. Posto ao leme
Ascanio, que hoje Iulo cognominam
(Ilo, em quanto florente Ilion se teve),<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="285">285</span>
Cerrando os mezes trinta largos gyros,
Ha-de, a séde lavinia trasladada,
Alba longa munir e abastecel-a.
Os Hectoreos aqui trezentos annos
Já reinarão, quando a vestal princeza<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="290">290</span>
Ilia parir a Marte gemea prole.
Da nutriz loba em fulva pelle ovante,
Romulo ha de erigir mavorcios muros,
E á recebida gente impôr seu nome.
Métas nem tempos aos de Roma assino;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="295">295</span>
O imperio dei sem fim. Té Juno acerba,
Que o mar ciosa e a terra e o céo fatiga,
Transmudada em melhor, tem de amparar-me
Do orbe os senhores e a nação togada.
Praz-me assim. Manem lustros, que inda a casa<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="300">300</span>
De Assaraco ha de ser de Phthia e de Argos
Senhora, e agrilhoar Mycenas clara.
D’Iulo garfo egregio, em nome e glória
Succedendo, as conquistas no oceano
Cesar teminará, nos céos a fama.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="305">305</span>
Nos astros sim, de espolios do oriente
Onusto, o acolherás; e humanas preces
Tem de invocal-o. Então, deposta a guerra,
Se amolgue a ferrea idade; a encanecida
Fé com Vesta, os irmãos Quirino e Rhemo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="310">310</span>
Dictem leis; Jano trave as diras portas
Com trancas e aldrabões; sôbre armas cruas
Dentro o impio Furor sentado, e roxos
Atrás os pulsos em cem nós de bronze,
Hediondo ruja com sanguinea bôca."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="315">315</span>
Não mais; e expede o génito de Maia,
Porque a recem Carthago hospicio aos Teucros
Franquêe, nem, do fado inscia, a raínha
Os extermine. O deus pelo ar patente
De azas remando, em Libya o vôo abate;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="320">320</span>
Fiel ás ordens, a fereza aos Penos
Despe; e Dido primeira em pró dos Phrygios
Brandos affectos placidos concebe.
Toda a noite pensoso o heroe velando,
A alma luz mal branqueja, onde arribara<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="325">325</span>
Dispõe sondar; e vendo incultas margens,
Inquirir quem as tem, se homens, se feras,
E aos seus noticial-o. As naus mettidas
N’abra de uns bosques sob cavada penha,
Entre verde espessura e negras sombras,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="330">330</span>
Elle só, mais Achates, sahe brandindo
Duas hastes que empunha de ancho ferro.
Da selva em meio a mãe se lhe apresenta,
Virgem no trajo e aspecto, em armas virgem
Lacena; ou qual Harpálice a threícia<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="335">335</span>
Cansa os corseis e o Euro vence alífugo: 325
Pois do hombro o arco destro, á caçadora,
Pendura, e ás auras a madeixa entrega,
Dos joelhos nua e a falda em nó colhida.
Eil-a: "O’ jovens, errante aqui topastes<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="340">340</span>
Irmã minha, a gritar quiçá no encalço 340
De javali sanhudo? A cinta aljava
Tem sobre a pelle de um manchado lynce."
Isto Venus; e o filho assim responde:
"Nenhuma ouvi nem vi das irmãs tuas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="345">345</span>
O’... quem direi? Não tens mortal semblante 345
Nem voz de humano som; es deusa, ó virgem:
Irmã de Phebo ou nympha? As nossas penas
Tu, por quem es, minora: e nos ensina,
Pois vagueâmos sem saber por onde,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="350">350</span>
O paiz, clima ou povo, a que arrojou-nos 350
Vento e escarcéo medonho. Hostias sem conto
Havemos de immolar nas aras tuas."
"Não mereço honras taes, replíca Venus;
Usam de aljava, e ao bucho as virgens tyrias<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="355">355</span>
Atar das pernas borzeguim purpúreo. 355
Punicos reinos e agenorios muros
Vês, nos confins da indomita e guerreira
Libyca raça. O imperio atêm-se a Dido,
Que, por fugir do irmão, fugiu de Tyro.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="360">360</span>
He longa a injúria, tem rodeios longos; 360
Mas traçarei seu curso em breve summa.
Sicheu, Phenicio em lavras opulento,
Foi da misera espôso, e müito amado:
Com bom preságio o pae lha dera intacta.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="365">365</span>
Pygmalion, façanhoso entre os malvados, 365
Barbaro irmão, do estado se empossara.
Interveio o furor: de fome de ouro
Cego, e á paixão fraterna sem respeito,
Perfido, impio, a Sicheu nas aras mata;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="370">370</span>
O facto encobre, e a credula esperança 370
Da amante afflicta largo espaço illude
Com mil simulações. Mas do inhumado
Consorte, com esgares espantosos,
Pallida em sonhos lhe apparece a imagem:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="375">375</span>
Da casa o crime e trama desenleia; 375
A ara homecida, os retalhados peitos
Desnuda, e á patria intíma-lhe que fuja:
Prata immensa e ouro velho, soterrados,
Para o exilio descobre. Ella, inquieta,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="380">380</span>
Apressa a fuga, e attrahe os descontentes 380
Que ou rancor ao tyranno ou medo instiga;
Acaso prestes naus, manda assaltal-as;
Dos thesouros do avaro carregadas
Empégam-se: a mulher conduz a empresa!<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="385">385</span>
Chegam d’alta Carthago onde o castello 385
Verás medrando agora e ingentes muros:
Mercam solo (do feito o alcunham Byrsa)
Quanto um coiro taurino abranja em tiras.
Mas vós-outros quem sois? donde he que vindes?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="390">390</span>
Que regiões buscais?" Elle ás perguntas 390
Esta resposta suspirando arranca:
"O’ déa, se recorro á prima origem,
E annaes de angústias não te pejam, Vesper
No Olympo encerra o dia antesque eu finde.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="395">395</span>
Da antiga Troia (se has notícia della), 395
Vagos no equoreo campo, arremessou-nos
Casual tempestade ás libyas costas.
Enéas sou, com fama alèm dos astros,
Que livrei de hostil garra os meus penates,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="400">400</span>
E piedoso os transporto á patria Ausonia; 400
Do summo Jove a geração procuro.
Por guia a deusa mãe, submisso aos fados,
Em vinte naus commetto o phrygio ponto;
Rôtas do Euro e das ondas, restam sete.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="405">405</span>
Pobre, ignoto, percorro africos ermos, 405
D’Asia e d’Europa excluso..." Nem mais Venus
Lamentos comportou, na dôr o atalha:
"Quem sejas, creio, não do céo malquisto,
Gozas d’aura vital, que a Tyro aportas.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="410">410</span>
Eia, ao regio palacio te encaminha. 410
Sem risco os socios, ancorada a frota,
Com o rondar dos áquilos, te auguro,
Se em arte vã meus paes não me instruiram.
Attenta cysnes doze em bando alegres:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="415">415</span>
No espaço, o ether fendendo, os perseguia 415
A ave de Jove; n’um cordão agora
Ou tem no pouso a mira, ou vam pousando;
Juntos batendo as estridentes azas,
Brincam cingindo o pólo, a salvo cantam:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="420">420</span>
Bem como os teus as pôpas atracaram, 420
Ou de véla enfunada a foz embocam.
Sus, alli te dirige, a estrada he esta."
Dá costas, e a cerviz rosada fulge,
De ambrosia odor celeste a coma expira;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="425">425</span>
A veste escoa aos pés; no andar se ostenta 425
Vera deusa. Elle atrás da mãe fuginte,
Reconhecendo-a, brada: "Porque o filho
Com taes ficções, cruel, enganas tanto?
Ligar dextra com dextra, ouvir-te ás claras,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="430">430</span>
Conversar-te em pessoa me he defeso?" 430
Tal a argúe, e ás muralhas se endereça.
Ella porêm de ar fusco os viandantes
Tapa e os embuça em nevoa, que enxergal-os
Ou tocar ninguem possa, nem detel-os<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="435">435</span>
Ou da vinda informar-se. A deusa a Paphos 435
Remonta, a espairecer no sítio ameno
Onde o sabeu perfume arde em cem aras,
E recentes festões seu templo aromam.
Eis da azinhaga pela trilha cortam,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="440">440</span>
E um teso galgam já, que olha imminente 440
A fronteira torrígera cidade.
Palhaes d’antes, a mole admira Enéas,
Admira o estrondo e as portas e as calçadas.
Tyro aferventa-se, a lançar os muros,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="445">445</span>
A avultar o castello, e a rolar pedras. 445
Parte com sulcos marca os edificios;
Santo augusto senado, e o foro e a curia,
Se cria e elege: aqui se escavam portos;
Fundam-se alli magnificos theatros,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="450">450</span>
De marmor collossaes talham columnas, 450
Pompa e decoro das futuras scenas.
Quaes abelhas ao sol por floreos prados
Lidam na primavera, quando ensaiam
O adulto enxame; ou doce fluido espessam,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="455">455</span>
Do nectar flavo retesando as cellas; 455
Ou quando a carga das que vem recebem;
Ou em batalha expulsam da colmêa
Os zangãos, gente ignava. A obra ferve,
E a tomilho recende o mel fragrante.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="460">460</span>
"Ditoso quem seus tectos já levanta!" 460
Exclama o heroe, e os coruchéos contempla.
Na cidade não visto, oh maravilha!
Se mistura ennublado. Em meio havia
Luco umbroso e fresquissimo, onde os Penos,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="465">465</span>
De ondas jogados e tufões, cavaram 465
O tésto de um corsel, de Juno régia
Mostra e penhor que o povo, asado á glória,
Pugnaz e duro, insultaria os evos:
Lá punha Dido a Juno insigne templo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="470">470</span>
Que dons e a rica effigie realçavam: 470
No bronzeo limiar da<ref>No original, consta ''dá''.</ref> bronzea escada,
Craveja o bronze as traves, e a couceira
Range em portões de bronze. Um novo objeto
N’este bosque a lenir entra os receios;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="475">475</span>
Aqui primeiro ousou fiar-se Enéas 475
E prometter-se allívio em seus pezares:
Pois quando, á espera da raínha, o templo
Nota peça por peça, quando o enlevam
De Carthago a fortuna, o gôsto fino,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="480">480</span>
O artificio, o primor, acha em pintura 480
A fio as guerras d’Ilion, pelo orbe
Já soadas; o Atrida, o rei troiano,
E terror de ambos sebresahe<ref>'Sebresahe'' está por ''sobresahe'', erro tipográfico corrigido na segunda edição.</ref> Achilles.
Pára, e em lagrimas diz: "Que sítio ou clima<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="485">485</span>
Cheio, Achates, não he dos nossos males? 485
Eis Priamo! o louvor tem cá seus premios,
Doe mágoa alheia, e remanece o pranto.
Coragem! que em teu bem conspira a fama."
Dice, e em vãos quadros se apascenta, e as faces<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="490">490</span>
Gemebundo humedece em largo arroio. 490
Vê de Pérgamo em roda a hoste graia
Do phrygio ardor fugir, fugir a teucra
Do instante carro do emplumado Achilles.
Ai! perto a Rheso por traição Tydides,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="495">495</span>
No primo somno, arrasa as niveas tendas, 495
De carnagem cruento; e os acres brutos
Volve ao seu campo, sem gostado haverem
De Troia os pastos, nem bebido o Xantho.
Triste! as armas perdendo, alêm, Troílo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="500">500</span>
Que arrostou-se menino ao proprio Achilles, 500
He dos corséis tirado, e resupino,
Mas tendo os loros, do vazio carro
Pende; e a cerviz no pó, de rojo a coma,
Virada a lança hostil na arêa escreve.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="505">505</span>
Em cabello, as Iliades afflictas 505
Ao templo iam tambem da iniqua Pallas,
O peplo humildes offertando, e os peitos
Com punhadas ferindo: aversa a déa
Olhos no chão pregava. A Heitor Pelides<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="510">510</span>
Tres vezes arrastara em tôrno aos muros, 510
De ouro a pêso vendia-lhe o cadaver.
Do imo um gemido grande Enéas sólta,
No olhar o espólio, o coche, o amigo exanime,
E a Priamo estendendo as mãos inermes.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="515">515</span>
A si se reconhece entre os mais chefes. 515
Do negro rei do eôo a turma e as armas
A’ testa de milhares de Amazonas
Com lunados broquéis, Penthesiléa
Se abraza em furia, bellicosa atando<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="520">520</span>
Sob a despida mama um cinto de ouro, 520
E virgem com varões brigar se atreve.
Quando extatico o heroe se embebe e enleia,
Ao templo a formosissima raínha
Marcha, de jovens com loução cortejo.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="525">525</span>
Qual nas ribas do Eurotas ou do Cyntho 525
Pelos serros Diana exerce os coros,
E, de infindas Oreadas seguida,
Carcaz ao hombro, em garbo as sobreleva;
Rega-se em gôzo tacito Latona:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="530">530</span>
Tal era Dido, airosa e prazenteira, 530
Do seu reino a grandeza apressurando.
No adyto sacro, em meio do zimborio,
De armas cercada, em solio majestoso
Senta-se. Os pleitos julga e leis prescreve,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="535">535</span>
Regra ou sortêa os publicos trabalhos. 535
Subito Enéas no tropel devisa
A Cloantho brioso, Antheu, Sergesto,
E os mais que atra borrasca a longes costas
Remessara dispersos. Elle e Achates<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="540">540</span>
Varados ficam de alegria e susto, 540
Avidos ardem por travar as dextras;
Fôrça ignota os perturba. Dissimulam;
Qual a sorte dos seus do encêrro espreitam
Nebuloso, e onde surta a frota seja,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="545">545</span>
E com que fim das naus os mais conspicuos 545
Clamando, a pedir venia, ao templo acodem.
Introduzidos, quando a vez tiveram,
Rompe o idoso Ilioneu, facundo e grave:
"Raínha, ó tu que por favor supremo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="550">550</span>
Ergues nova cidade, e justa enfreias 550
Suberbas gentes, os Troianos ouve,
Que, dos ventos ludíbrio, os mares cruzam:
Livra do infando incendio a pia armada,
Poupa innocentes, nossa causa attende.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="555">555</span>
Nem vimos nós talar com ferro e fogo, 555
Nem saquear os lybicos penates:
A vencidos não cabe audacia tanta.
Paíz antigo existe, em grego Hesperia,
Armipotente e uberrimo, colonia<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="560">560</span>
Já de enotrios varões; agora he fama 560
Que, de um seu capitão, se diz Italia:
Esta era a nossa róta; eis que em vaos cegos
Deu comnosco de salto Orion chuvoso,
E, em sanha o pelago e os protervos austros,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="565">565</span>
Nos derramou por ondas e ínvias fragas: 565
Poucos ganhámos pé nas vossas praias.
Patria e raça feroz! barbara usança!
Pisar em terra mãos hostis vedam;
Da arêa o asylo a náufragos prohibem.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="570">570</span>
Se as armas desprezais e as leis humanas, 570
O céo mede as acções, premeia e pune.
Rei nosso Enéas he, que a ninguem cede,
Pio e inteiro, valente e bellicoso:
Se aura ethérea o sustenta e o guarda o fado,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="575">575</span>
Se os manes o não tem, sem medo somos, 575
De o penhorar primeira não te pezes.
Cidades em Sicilia e campos temos,
E do sangue troiano o claro Acestes.
Amarrar nos permitte a lassa frota,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="580">580</span>
Mastros, remos cortar, falcar antenas; 580
Com que ledos, se Italia nos espera,
Os socios e o rei salvo, ao Lacio vamos:
Mas, se te ha consumido o lybio pégo,
Optimo pae dos Teucros, nem d’Iulo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="585">585</span>
Nos resta a segurança, ao pôrto embora, 585
Donde arribámos, a lograr voltemos
A apercebida sicula hospedagem,
E o regio amparo." O Dárdano termina:
Lavra entre os seus approvador sussurro.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="590">590</span>
O rosto abaixa Dido, e foi succinta: 590
"Sus, Teucros, esforçai. Recente o estado
Ao rigor me constrange, e a defender-nos
Guarnecendo as fronteiras. Quem de Enéas
Desconhece a prosapia, e as guerras d’Ilio,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="595">595</span>
Seu valor, seus heroes, seu vasto incendio? 595
Nem somos nós tam broncos, nem de Tyro
Tam desviado o Sol junge os cavallos.
Quer da saturnia Hesperia, quer as margens
D’Erix opteis, em que domina Acestes,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="600">600</span>
Contai com meu auxílio e salvaguarda. 600
Folgais de aqui ficar? Esta cidade
Que erijo, he vossa; as naus que se approximem:
Não farei destincção de Phrygio a Peno.
Fôsse o rei vosso á Libya compellido<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="605">605</span>
Do mesmo Nôto! O litoral já mando 605
E os sertões perlustrar; se he que o naufragio
Em povoado ou brenha o traz perdido."
Ambos álerta, o padre e o companheiro
Ha müito almejam por quebrar a nuvem.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="610">610</span>
A Enéas se antecipa o forte Achates: 610
"Nado de Venus, que tenção meditas?
Tens a frota em seguro, os teus bemquistos;
Um só que falta, sossobrar o vimos:
Ao que a mãe te esboçou quadra o mais tudo."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="615">615</span>
Mal acabava, a nuvem circumfusa 615
Se rompe e funde nos delgados ares.
Um deus na espalda e vulto, á claridade
Resplende Enéas; que n’um sôpro a deusa
Ao filho a cabelleira em fulgor banha,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="620">620</span>
Em luz purpúrea o juvenil semblante, 620
Em vivo terno agrado os olhos bellos:
Qual, pela indústria, com entalhos de ouro
Pário marmore, ou prata, ou marfim brilha.
De improviso á raínha e a todos clama:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="625">625</span>
"Eis quem buscais, dos libyos vaos escapo, 625
Enéas sou. O’ tu que só tens mágoa
De tanto horror, que a nós de Troia restos,
Da Grecia escarneo, em terra e mar batidos,
Falhos de tudo, exhaustos, em teu reino,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="630">630</span>
Em casa, nos recolhes e associas! 630
Nem pagar-te as finezas dignamente
Podêmos, Dido, nem os Phrygios todos
Quantos pelo universo peregrinam.
Se para os bons ha numes, he justiça,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="635">635</span>
Pague-te o céo e a propria consciencia. 635
Que seculo feliz, que paes ditosos
Te houveram filha? Em quanto os vagos rios
Forem-se ao mar, em quanto em gyro a sombra
Vier do monte ao valle, em quanto o pólo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="640">640</span>
Pascer os astros, onde quer que eu viva 640
Vivirá com louvor teu nome e fama."
Dice; a dextra offerece ao velho amigo,
A sinistra a Seresto, e uns após outros,
A Gyas, a Cloantho, e aos mais guerreiros.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="645">645</span>
Da presença do heroe pasma a Phenissa, 645
Tal successo a commove, e assim se exprime:
"Que fado te urge, ó filho da alma Venus,
A arduos perigos e a bravias plagas?
Es o Enéas que a deusa ao nobre Anchises<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="650">650</span>
Gerou de Simoente ás phrygias margens? 650
Bem me lembra que Teucro, expatriado,
Veio a Sidonia, para um novo assento,
Pedir a Belo ajuda: a opima Chypre
Já vencedor meu pae vastara e tinha.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="655">655</span>
De Troia os casos desde então conheço, 655
Teu nome, e os rêis pelasgos. Sempre ufano
Da anciã linhagem teucra, elle ofendido
Com enthusiasmo elogiava os Teucros.
Eia, á minha morada, ó moços, vinde.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="660">660</span>
Por transes mil trazida, iguaes destinos 660
Cá me fixaram. Não do mal ignara
A socorrer os miseros aprendo."
Isto a Enéas memora, e o guia aos paços,
E em solemne festejo occupa as aras.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="665">665</span>
Nem de enviar aos nautas se descuida 665
Touros vinte, co’as mães cem gordos anhos,
Cem corpulentos sedeúdos porcos,
E o doce mimo do jocoso Bromio.
Luxo esplende real no interno alcaçar,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="670">670</span>
E opiparos banquetes se adereçam: 670
Primoroso o tapiz, de ostro suberbo;
Nas mesas prataria; em ouro a historia
Patria esculpida, successão longuissima
De uns a outros varões desde alta origem.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="675">675</span>
Saudoso, impaciente, o pae de Ascanio 675
Todo em seu filho está; para informal-o
E o conduzir de bórdo, expede Achates.
De troico exicio as preservadas prendas
Venham tambem: de escamas de ouro um manto<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="680">680</span>
Brocado, um véo com orlas e recamos 680
De croceo acantho, ornatos peregrinos.
Dons maternos de Leda á bella Argiva,
Que a Pérgamo os trouxera de Mycenas
A’ incasta boda; e o sceptro que Ilione,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="685">685</span>
Filha a maior de Priamo, hastiava, 685
E engranzado collar de perlas finas,
E aurea coroa de engastadas gemmas.
Executivo ás naus caminha Achates.
Nova traça urde a Cypria, alvitres novos;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="690">690</span>
Que Amor, no meigo Iulo transformado, 690
Com os dons nos ossos á raínha infiltre
Insano fogo. A estancia ambigua, os Tyrios
Bilingues teme; Juno atroz a inflamma;
Tresnoitada a pensar, por fim conjura<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="695">695</span>
O alígero Cupido: "O’ filho, esteio 695
Unico e meu poder, filho, que em pouco
Tens as typhéas soberanas armas,
Es meu refúgio, teu socorro imploro.
Sabes que a teu irmão de praia em praia<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="700">700</span>
Fluctívago arremessa a iniqua Juno, 700
E doe-te a nossa dôr. Com mil caricias
Tem-no a Sidonia Dido; e o paradeiro
Dos junonios hospicios mal enxergo:
O ensejo he de tental-a. Eu receosa<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="705">705</span>
Previno os dolos, accender projecto 705
A raínha; que um nume a não trastorne,
Mas firme, quanto eu mesma, a Enéas ame.
Ouve o como ha de ser. O infante regio,
Desvelo meu, do genitor chamado,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="710">710</span>
Levar a Byrsa as dadivas propõe-se, 710
Das vagas restos e das teucras chammas.
Sopito em somno o esconderei no idalio
Jardim sacro, ou nos bosques de Cythera,
Porque os ardis não turbe inopinado.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="715">715</span>
Tu nelle te disfarça uma só noite, 715
Do menino as feições veste menino;
E, entre o lieu licor e as reaes mesas,
Quando em seu gremio Dido, em cabo leda,
Amplexos te imprimir e doces beijos,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="720">720</span>
Fogo lhe inspires e subtil veneno." 720
A’ voz da cara mãe depondo azas,
Finge gozoso Amor de Iulo o porte.
Ella em somno abebera o neto amado;
No collo amima e o sobe ao luco idalio,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="725">725</span>
Onde molle e suave mangerona, 725
Entre flores o abraça e fresca sombra.
E obediente os regios dons Cupido
Leva aos Tyrios, folgando após Achates.
Já d’aurea tela em sumptuoso leito<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="730">730</span>
Acha a Dido, bizarra entre os magnatas. 730
Com sequito luzido o heroe concorre;
Tomam seu posto em purpura excellente.
Dá-se agua ás mãos, em canistréis vem Ceres,
Toalhas servem de tosada felpa.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="735">735</span>
Cincoenta moças frutas e viandas 735
Arrumam dentro, aos divos thurificam;
Cem outras e iguaes moços põem nas mesas
A baixella, a bebida e as iguarias.
Em mó nas salas festivaes, os Tyrios<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="740">740</span>
De ordem recostam-se em coxins lavrados. 740
O padre, o falso Ascanio, o vulto admiram
Flagrante e a voz do deus; o manto, as joias,
De croceo acantho o véo. Não farta a mente
A misera Phenissa, á mortal peste<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="745">745</span>
Votada, e mais e mais se abraza olhando 745
O menino e seus dons. Do pae fingido
Elle nos braços, do pescoço appenso,
Mal sacia-lhe o amor, vai-se á raínha.
Com olhos e alma se lhe apega Dido,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="750">750</span>
No collo o assenta, sem saber, coitada! 750
Que deus afaga. O alumno de Acidalia
Sicheu aos poucos remover começa,
E intenso ardor insinuar procura
N’um coração já frio e ha müito esquivo.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="755">755</span>
A primeira coberta alçada, os vinhos 755
Bolham, coroados, em bojudas copas.
Retumba o tecto, o estrepito por amplos
Atrios reboa; de aureas architraves
Pendentes lustres e os brandões accesos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="760">760</span>
A noite vencem. Grave de ouro e gemmas 760
Pede-a logo a raínha, e do mais puro
Enche a taça, que desde Belo usaram
Seus avós. Nos salões tudo em silencio:
"Jupiter, se he que aos hóspedes legislas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="765">765</span>
Tam fausto alegre dia aos meus e aos Phrygios 765
Faze aos vindouros memoravel: Baccho
Porta-jubilo assista, e a boa Juno;
Vós o convite celebrai-me, ó Tyrios."
Em honra então na mesa o vinho entorna,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="770">770</span>
Com seus labios o toca, e o dá libado 770
A Bycias provocando: elle aguçoso
Empina a espumea taça, em transbordante
Ouro se ensopa: toda a côrte o imita.
Logo entoa as lições do sabio Atlante<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="775">775</span>
Em aurea cithara o crinito Iopas: 775
Canta a solar fadiga, a Lua instavel;
Donde homens e animaes, bulcões e raios;
Donde o nimboso Arcturo, e os Triões gemeos
E as Hyadas provêm; como apressados<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="780">780</span>
Se tingem no aceano os soes hybernos, 780
Ou que demora estorva as tardas noites.
Penos e Troas á porfia o applaudem.
O serão entretida ia estirando
A infeliz Dido, e longo o amor bebia,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="785">785</span>
Müito de Priamo, inquirindo müito 785
De Heitor; que armas da Aurora o filho tinha,
Diomedes que frisões; que jando Achilles.
"Do princípio antes, hóspede, as insidias
Graias, dice, nos conta, e o patrio excidio,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="790">790</span>
E errores teus; que já seteno estio 790
De praia em praia todo o mar voltêas."<ref>No original de Odorico, faltam estas aspas, óbvio erro tipográfico.</ref>
</poem>
</div>
==Notas==