Eneida Brazileira/II: diferenças entre revisões

Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Giro720 (discussão | contribs)
mSem resumo de edição
Linha 7:
|notas=[[Eneida Brazileira/Notas ao Livro II|Notas ao Livro II]]
}}
 
<div style="width:35em; text-align:justify; margin:0px auto;">
<h2 style="text-align:center">LIVRO II.</h2>
<poem>
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/38|num=40}}
Promptos, á escuta, emmudeceram todos,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/39|num=41}}
Ao passo que exordia o padre Enéas
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/40|num=42}}
Do excelso tóro: - Mandas-me, ó raínha,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/41|num=43}}
Renove a dôr infanda; o como os Danaos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="5">5</span>
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/42|num=44}}
D’Ilio a pujança e o reino lamentavel
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/43|num=45}}
Derrocaram; miserias que eu vi mesmo
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/44|num=46}}
E em que fui grande parte. Ao relatal-as,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/45|num=47}}
Dolope ou Myrmidon, de Ulysses duro
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/46|num=48}}
Ha soldado que as lagrimas estanque?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="10">10</span>
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/47|num=49}}
E humida a noite já do céo descamba,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/48|num=50}}
E as estrellas cahindo ao somno induzem:
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/49|num=51}}
Mas, se he teu gôsto ouvir os nossos casos,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/50|num=52}}
E em breve o extremo afã saber de Troia,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/51|num=53}}
Bem que á lembrança lucto e horror me esquivam,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="15">15</span>
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/52|num=54}}
Narral-os vou. Repulsos, quebrantados,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/53|num=55}}
Pós tantos annos de fataes revezes,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/54|num=56}}
Os Danaos um cavallo em ar de monte,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/55|num=57}}
Divina arte de Pallas, edificam,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/56|num=58}}
Lavram de abeto as intecidas costas:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="20">20</span>
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/57|num=59}}
Ser da tornada um voto á surda espalham.
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/58|num=60}}
No cego lado, os bravos sorteando,
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/59|num=61}}
A escolha incluem, de hoste armada enchendo
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/60|num=62}}
O antro profundo e lobregas entranhas.
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/61|num=63}}
Jaz Tenedos á vista, ilha famosa,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="25">25</span>
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/62|num=64}}
Próspera á sombra do priameo sceptro;
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/63|num=65}}
Hoje ermo pôrto, ás quilhas mal seguro:
{{Página|Eneida Brazileira.djvu/64|num=66}}
N’uma abra alli se escondem. Nós os cremos
Velejando na róta de Mycenas.
Teucria do largo nojo emfim respira:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="30">30</span>
Abrem-se as portas, vai-se ao dorio campo;
Grato he vêl-o deserto e a praia nua:
"Os Dolopes aqui, Pelides fero
Se abarracava; aqui das naus a estancia;
Combatia-se aqui." Mirando a turba<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="35">35</span>
A offerta exicial da innupta deusa,
A mole a espanta: e lembra-nos Thymetes,
Ou fôsse dolo ou sina já de Troia,
Dos muros pôl-o dentro e no castello;
Mas Capys aconselha, e os de mais tino,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="40">40</span>
Que ao pégo o dom suspeito e grega insídia
Se atire ou queime em sotopostas chammas,
Ou se broque e tentêe o bôjo escuro.
Emquanto incerto e vário alterca o vulgo,
Ardendo Laocoon da cidadella<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="45">45</span>
Corre com basto sequito, e de longe:
"Miseros cidadãos, que tanta insania!
De vólta os Gregos ou de engano exemptos
Seus dons julgais? desconheceis Ulysses?
Ou este lenho he couto de inimigos,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="50">50</span>
Ou máchina que, armada contra os muros,
Vem cimeira espiar e acommetter-nos.
Teucros, seja o que fôr, ha damno occulto:
No bruto não fieis. Mesmo em seus brindes
Temo os Danaos." De esguelha, assim fallando,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="55">55</span>
A’ curva liação do ventre equino
Com braço válido hasta ingente arroja:
Pregada está tremendo, e ao rijo encontro
Longo geme e retumba a atra caverna.
E, a não ser o destino e a mente avessa,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="60">60</span>
Nos movera os argolicos recantos
Com ferro a devassar: e inda em pé Troia,
Inda, alcaçar de Priamo, estarias.
Eis atrás maniatado alguns pastores
Ao rei com vozeria um moço trazem;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="65">65</span>
Que arteiro, ignoto, adrede os encontrara,
De animo firme em dar aos Gregos Troia,
Ou na empresa acabar. Curiosa acode,
E ávida se atropela e o cérca e apupa
A rapazia. Agora ouve a tramoia,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="70">70</span>
Por um crime avalia os Danaos todos.
Perante a multidão, turbado, inerme,
Pára, e olhando circumda as phrygias turmas:
"Que mar, grita, ou que terra ha de acolher-me?
Ai! que me resta? A patria proscreveu-me,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="75">75</span>
E os Dardanos meu sangue infensos pedem!"
Tal pranto nos demove e o furor quebra:
Sua estirpe o exhortamos a contar-nos;
Que intento o conduziu, que fé mereça.
Perde o susto o captivo, e assim responde:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="80">80</span>
"Toda a verdade, ó rei, sincero expendo.
D’antemão que sou Grego não t’o nego:
Tornar pode a Sinon fortuna escassa
Misero sim, mas embusteiro nunca.
Talvez já te soasse o nome e a glória<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="85">85</span>
Do afamado Belídes Palamedes;
Que, sendo opposto á guerra, atroz calúmnia
O accusou de traição, e hoje os Pelasgos
Com tardio pezar extincto o choram:
Pobre meu pae, com elle seu parente,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="90">90</span>
Mandou-me inda novel seguir as armas.
Quando o reino o attendia e assim medrava,
De algum nome e esplendor tambem gozámos:
Depois que a inveja do manhoso Ulysses,
Deste mundo o tirou, como he notorio,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="95">95</span>
Mesto arrastando a vida em treva e lucto,
O supplício traguei do insonte amigo;
Té que, insano a bramir, vingal-o juro,
Se vencedor voltasse ao gremio de Argos,
E asperos odios imprudente afio.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="100">100</span>
Daqui mana meu mal; daqui terrivel
Sempre a assacar-me Ulysses novos crimes,
A espargir pelo vulgo ambiguas vozes;
Sempre em remorsos e a tecer meu damno.
Não descansou, sem que o ministro Calchas...<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="105">105</span>
Mas que importuna historia em vão recórdo?
Porque detêr-me? Se os Achivos todos
Tendes na mesma conta, assás ouvistes,
Em mim puni-os: o Ithaco o deseja,
Pagal-o-ão por bom preço os dous Atridas."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="110">110</span>
Do ardil pelasgo e infamia tanta ignaros,
Com ardor á porfia o interrogámos.
Pavido o gesto, o perfido prosegue:
"Lassos da guerra, o assedio erguer tentaram...
Oxalá que os Argivos o acabassem!<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="115">115</span>
Mas, no abalar, os retiveram sempre
Crespas tormentas, carrancudos austros.
Prompta essa mole de tecidos lenhos,
Mais borrascoso trovejou. Perplexos,
Ao delio templo Eurypilo enviámos;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="120">120</span>
Que este oraculo triste annunciou-nos:
"Com sangue, ó Danaos, de immolada virgem,
Ao vir a Troia, os ventos aplacastes;
Sangue requer a vólta, e de hostia grega.
Divulgada a sentença, o espanto cala,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="125">125</span>
Gêlo os ossos traspassa, e tremem todos
Sôbre a quem busque a Parca e o deus condemne.
Então com grande estrondo ao campo Ulysses
Traz Calchas, e insta que o mysterio aclare:
Muitos, já do perverso lendo n’alma,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="130">130</span>
Em silencio o porvir me adivinhavam.
Dez dias encerrado, o vate abstêm-se
De delatar alguem e á morte expôl-o.
Do Laercio ao clamor, como por fôrça,
A voz desata emfim, me fada ás aras.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="135">135</span>
O assenso foi geral: cada um tolera
Que a sorte que temia em mim recaia.
Negreja o dia infausto: o rito encetam,
Cingem-me a venda, o salso farro aprestam.
Rompo as cordas, confesso, a morte evito;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="140">140</span>
Nos juncos de um paul me abriga a noite,
Emquanto ás vélas davam, se he que as deram.
Nem mais espero vêr meu ninho antigo,
Nem meu querido pae, meus doces filhos,
Que víctimas quiçá por mim padeçam,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="145">145</span>
Esta fuga expiando. Pelos deuses
Que attesto, exoro, se entre humanos inda
Ha limpa fé, tem mágoa de ancias tantas,
Perseguida innocencia te commova."
De puro dó a vida lhe outorgámos;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="150">150</span>
E o mesmo rei, mandando allivial-o
De algemas e prisões, lhe dice affavel:
"Qual sejas, serás nosso, os teus deslembra.
Quem, falla-me a verdade, o immano vulto
Fabricou desse monstro? a que o destinam?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="155">155</span>
He religião? he máchina de guerra?"
Imbuído o falsario em dolo argivo,
Sôltas palmas levanta, e aos astros clama:
"Eternos fogos, inviolavel nume,
Aras, cutellos, que evadi, nefandos,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="160">160</span>
Mortal banda que a fronte me adornavas,
Testemunhas me sêde: os meus renego;
Trahido eu possa ao claro descobril-os:
Juramento nem lei me liga á patria.
Se alto arcano revelo, em ti fiado,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="165">165</span>
Tu, salvada por mim, salva-me ó Troia.
Sempre a Grecia no auxílio de Tritonia
Estribou seu triumpho, até que ousaram
Impio Tydides, sceleroso Ulysses,
Matando os guardas, o fatal palladio<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="170">170</span>
Roubar do santuario, e á deusa as fitas
Virgineas profanar com mão cruenta.
Os Danaos, da esperança decahidos,
Afrouxam de energia. Bem mostraram
Varios prodigios a aversão de Pallas:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="175">175</span>
Posta a effigie entre nós, dos hirtos lumes
Fuzis desprega, em salso humor escorre,
Do chão tres vezes, oh milagre! pula,
E a rodela desfere e a lança trémula.
Que o mar se tente asinha o canta o vate:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="180">180</span>
Que em vão dardejam Troia, se indo em Argos
O auspicio renovar, não reconduzem
O em curvos bojos transportado nume.
E, se á patria Mycenas já navegam,
Vam refazer-se e grangear os deuses;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="185">185</span>
Mas, repassando o pelago, improvisos
Serão comvosco: a profecia he esta.
Da diva em desaggravo<ref>No original, "desaggavo", erro tipográfico corrigido na segunda edição.</ref>, amoesta-o Calchas,
De ligneas traves, em lugar da estatua,
Esta mole estupenda construíram;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="190">190</span>
Que pelas portas, altaneira ás nuvens,
Nem possa entrar na praça, nem do povo,
Segundo a crença antiga, ser custodia:
Pois, se braço troiano o dom violasse...
(Antes ao vate o agouro os céos convertam)<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="195">195</span>
Raso iria este imperio; e, se vós mesmos
Dentro o mettesseis, desceria armada
Asia em pêso ás muralhas pelopéas,
Fado que abarcaria os nossos netos."
Do perjuro Sinon foi crido o engano;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="200">200</span>
E aos que Tydides, nem o Larysseu,
Dez annos, quilhas mil, nunca domaram,
Vencem dolos e lagrimas traidoras.
Nisto, o monstro maior, mais formidavel,
Impróvidos nos turba. A’ sorte eleito,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="205">205</span>
O antiste Laocoon com sacra pompa
A Neptuno immolava um touro ingente.
De Tenedos (refiro horrorisado)
Juntas, direito á praia, eis duas serpes
Des espiras cento ao pelago se deitam:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="210">210</span>
Acima os peitos e as sanguineas cristas
Entonam; sulca o resto o mar tranquillo,
E se encurva engrossando o immenso tergo.
Soa espumoso o páramo salgado:
Já tomam terra; e, em sangue e fogo tintos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="215">215</span>
Fulmineos olhos, com vibradas linguas
Vinham lambendo as sibilantes bôcas.
Tudo exsangue se espalha. O par medonho
Marchando a Laocoon, primeiro os corpos
Dos dous filhinhos seus abrange e enreda,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="220">220</span>
Morde-os e come as descosidas carnes:
E ao pae, que armado occorre, eil-as saltando
Atam-no em largas vóltas; e enroscadas
Duas vezes á cintura, ao collo duas,
O enlaçam todo os escamosos dorsos,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="225">225</span>
E por cima os pescoços lhes sobejam.
De baba e atro veneno untada a faxa,
Elle em trincar os nós co’as mãos forceja,
E de horrendo bramido aturde os ares:
Qual muge a rez ferida ao fugir d’ara,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="230">230</span>
Da cerviz sacudindo o golpe incerto.
Vam-se os dragões serpeando ao santuario,
E aos pés da seva deusa, ennovelados,
Sob a egide rotunda ambos se asylam.
Cresce o pavor, os corações retremem:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="235">235</span>
Pregoam justa a pena ao temerario
Que a ponta de impia lança no costado
Fincou do sacro roble; e o simulacro
Bradam que se recolha e se ore a Pallas.
Ferve a gente; a muralha e as portas rasga,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="240">240</span>
Leves rodas por baixo e ao collo ageita
Cabos tendidos. Prenhe de armas, sobe
A máchina fatal: em tôrno a coros
Cantam meninos e devotas virgens,
De tocarem na corda mui contentes.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="245">245</span>
Atravez da cidade ella suberba
Vai minaz resvalando. O’ patria! ó Ilio!
Invictos muros, divinal estancia!
Berço de heroes! A’ entrada quatro vezes
Pára, e quatro restruge um rumor de armas.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="250">250</span>
Surdos, cegos instando, o monstro infausto
Ah! no augusto recinto o collocamos.
Fadada a não ser crida, então Cassandra
Abre o futuro; e os templos nós dementes
Naquelle de Dardania último dia,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="255">255</span>
De virentes festões velando fomos.
Vira o céo, no oceano a noite cahe,
E em basta sombra involve a terra e o pólo
E a myrmidonia astucia: ante as muralhas
Derramada em silencio, a troica gente<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="260">260</span>
Em modorra ensopava os lassos membros.
Já, da tacita Lua ao mudo amparo,
De Tenedos partia ás notas praias
A instructa armada, e a capitânea régia
Sinal flammeo iça á ré. De iniquos deuses<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="265">265</span>
Sinon valído, a furto os pineos claustros
Laxa; e o cavallo, devassado, ás auras
Rende as phalanges que no ventre aloja.
Por um calabre escorregando, alegres
Baixam do cavo seio os cabos Thoas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="270">270</span>
Tissandro e Sthenelo, o maldito Ulysses,
Athamante e Pelídes Neoptolemo,
E Macaon primeiro e Menelao,
E autor da máchina o engenheiro Epeu.
Troia invadem sepulta em somno e vinho:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="275">275</span>
Matam a guarda, os seus na brecha esperam,
E os batalhões de accôrdo se encorporam.
Era quando aos mortaes começa e côa,
Divino dom, gratissimo descanso:
Tetrico Heitor em sonhos se me antolha,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="280">280</span>
Debulhando-se em pranto; como outrora,
Negro do pó cruento a biga o arrasta,
Os loros arrochando os pés tumentes.
Ai quam mudado! Aquelle Heitor não era
Que no espólio volveu do proprio Achilles,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="285">285</span>
E lançou teucra flamma ás pôpas graias.
Pegada a grenha em sangue, a barba esquálida,
Crivam-no golpes cem, que junto aos muros
Paternos recebeu. Chorando eu mesmo
Parecia arguíl-o em mesto accento:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="290">290</span>
"O’ luz dardania, segurança e apoio!
Donde vens? que detença! Em tal estado
Só te avistámos, caro Heitor, agora
Que a cidade agoniza e os teus perecem?
Que acto indigno afeiou teu rosto ameno?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="295">295</span>
Que feridas sam essas?" Elle nada,
De vãs queixas não cura, e grave arranca
Fundo suspiro: "Hui! foge, o incendio medra,
Foge, filho da deusa: em prêa aos Danaos
Rue do fastigio Troia. Assás fizemos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="300">300</span>
Pelo rei, pela patria. Esta só dextra,
A haver defensa, defendera Pérgamo.
Seu culto Ilio te fia e seus penates:
Toma-os comtigo; o pelago discorram,
Té que lhes fundes majestoso alcaçar."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="305">305</span>
Dice, e tirou dos penetraes as fitas
E a poderosa Vesta e o fogo eterno.
A cidade se afunde em grita e pranto;
E, indaque n’um retiro entre arvoredos
Meu pae habite, mais clarêa o estrondo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="310">310</span>
Recresce mais e mais o horror das armas.
Sacudo o somno, ao pincaro da tôrre
Trepo, ouvidos apuro. Tal, se a queima
Soprando o bravo sul cahe na seara;
Tal, se grossa torrente despenhada<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="315">315</span>
Arrasa o campo e as ledas sementeiras,
Prostra o lavor dos bois, aluídas selvas
Arrebatando; lá do saxeo cume
Pasma nescio o pastor que o ruído escuta.
Eil-a a fé grega manifesta, e nua<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="320">320</span>
A traição: de Vulcano ao vivo impulso
A ampla casa a Deiphóbo já desaba;
Já proximo arde Ucalegon; ao largo
Nos fretos do Sigeu reluz a flamma:
Clangor de tubas e alaridos soam.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="325">325</span>
Das armas ferro, desatino, e em armas
Doudo onde vá não sei; mas na ancia fervo
De soccorrer com gente a fortaleza:
A ira me precipita; e quanto he bello
O morrer pelejando á mente occorre.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="330">330</span>
Eis Pantho escapo d’entre achivas lanças,
Pantho, filho de Otreu, de Phebo antiste,
Com sacro espólio, com vencidos numes,
Do alcaçar pela mão traz um netinho,
Fóra de si vem vindo á estancia minha.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="335">335</span>
"Ah! Pantho, que he da patria? onde o conflicto?
A que posto acudir?" E elle em soluços:
"O termo veio, o ineluctavel dia;
Já fomos, Troia foi-se e a gloria sua:
A Argos transferiu tudo o fero Jove;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="340">340</span>
Na cidade combusta a Grecia impera.
Assuberbando a praça, o monstro equino
Batalhões verte; e ufano atêa incendios
O insultante Sinon: da gran’ Mycenas
Quantos jamais vieram, se apinhoam<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="345">345</span>
Nas bipatentes portas, e aos milhares
As gargantas e ruas pejam de armas:
O gume do aço agudo a ferir prestes
Nu lampeja: o combate apenas tentam
Das portas as primeiras sentinellas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="350">350</span>
E em cego marte resistir se atrevem<ref>No original, "atravem", erro corrigido na segunda edição.</ref>."
O Otriades me instiga e ethereo influxo:
Vôo, entre o ferro e o fogo, onde a sinistra
Erynnis por mim chama, onde o bramido,
Onde o clamor nos astros retroando.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="355">355</span>
Com Ripheu se me aggrega o extrenuo Iphito,
E em refôrço ao luar Dymas e Hypanis
Reconheço, e o Mygdonides Corebo;
Joven que, por Cassandra insano ardendo,
A Ilion pouco havia era chegado<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="360">360</span>
Em auxílio do sogro e do seu povo:
Ai! que a presaga voz descreu da espôsa.
Ao vêr tam nobre audacia: "O’ peitos, brado,
Fortissimos em vão, se a todo o extremo
Vosso anhêlo he seguir-me, o torvo aspecto<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="365">365</span>
Olhai das cousas. Deste imperio esteios,
Os deuses, desertando aras e templos,
Foram-se todos: á cidade accesa
Tarde accorreis: morramos, pelas armas
Rompamos. Salvação para os vencidos<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="370">370</span>
Uma, esperarem salvação nenhuma."
Isto os provoca e atiça. Quaes rapaces
Lobos que, cegos de faminta raiva,
Sahem por nevoa escura, ávidas crias
De guelas sêccas nos covis deixando;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="375">375</span>
De morrer certos, por dardos, por hostes,
Troia, abrindo caminho, atravessamos:
Circumvoa atra noite em ouca sombra.
Quem poderá contar o estrago horrendo,
Quem dessa noite as funebres tragedias,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="380">380</span>
Ou lagrimas terá que a pena igualem?
A soberana antiga das cidades
Baquêa; e de cadaveres sem conto
Ruas, casas, vestibulos sagrados
Se alastram. Nem só mana o teucro sangue;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="385">385</span>
Brio innato os vigora: a terra mordem
Os vencidos de involta e os vencedores:
Tudo he lucto e pavor, crueza he tudo;
Multiplica-se a morte em vária fórma.
Cópia a guiar de Acheus, primeiro Andrógeos,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="390">390</span>
Do seu bando nos crendo: "Avante, amigos,
Avante ó bravos; que molleza e inercia!
Outros saquêam Pergamo abrazada;
Vós de alterosas naus desceis agora?"
Dice, e a resposta ambigua o desengana;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="395">395</span>
Em laço hostil sentiu-se: estupefacto
Reprime o passo e a lingua. O viandante,
Que entre aspero sarçal em cobra occulta
Senta o pesado pé, trépido salta,
Foge ao reptil, que desenrola as iras<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="400">400</span>
E incha o ceruleo collo: assim tremendo
Recúa Andrógeos. Pela ferrea mata
Arremettemos, e aos montões prostramos
Gente ignara do sítio e espavorida.
Deste ensaio e bafejo da fortuna<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="405">405</span>
Animado Corebo, exulta e grita:
"Por onde, ó socios, fado amigo aponta,
Eia, sigamos. Os broquéis mudemos,
E insignias graias adaptemos. Vença
Manha ou valor, quem do inimigo o exige?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="410">410</span>
Elles armas nos dem." Logo o de Andrógeos
Luzido escudo enfia, e o elmo enlaça
Comante, e ajusta ao lado argiva espada.
Ripheu, Dymas, o imita; os moços folgam;
Do recente despôjo armam-se todos.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="415">415</span>
Entre a caterva hostil, sem fausto nume,
Por cega noite prelios mil travamos;
Remettemos ao Orco infindos Gregos.
Uns ás praias fiéis e ás naus se acolhem;
Parte com torpe medo o bruto escalam,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="420">420</span>
E entram de novo o conhecido bôjo.
Ah! sem querer divino o que he seguro?
Do adyto de Minerva eis desgrenhada
Cassandra arrastam priameia virgem,
De balde ao céo levando ardentes olhos;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="425">425</span>
Olhos, que as tenras mãos lhe atavam cordas.
Não o soffreu Corebo, e em fogo e sanha
Perecedouro aos esquadrões se atira;
E após vamos forçando um bosque de armas.
Do summo templo os nossos, enganados<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="430">430</span>
Pela armadura e argolicos pennachos,
Nos despedem chuveiros de arremessos,
E miserrima clade se origina.
N’um corpo os Danaos, retomada a virgem,
De ira a gemer, daqui dalli carregam;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="435">435</span>
Acerrimo insta Ajax e os dous Atridas,
E a hoste dolopeia. Assim contendem
Sôltos n’um turbilhão Zephyro e Nôto,
E o Euro ovante nos frisões da Aurora:
Zune a selva; Nereu braveja e espuma,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="440">440</span>
De tridente remexe o equoreo seio.
Quantos pela cidade afugentámos
Entre a nocturna treva, outravez surdem;
Por nosso estranho accento o embuste e as armas
Descobrem. Turba immensa nos esmaga:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="445">445</span>
Primeiro, ás mãos de Peneleu, Corebo
De bruços ante a deusa armipotente
Tomba, e succumbe o espelho dos Troianos,
O unico justo, equissimo Ripheu:
Divino alto juizo! O mortal trago<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="450">450</span>
Bebe a golpes dos seus Dymas e Hypanis:
Nem singular piedade, nem te vale
Na quéda, ó Pantho, a infula de Apollo.
Dos meus última flamma e patrias cinzas,
Testemunhai que nunca em vosso occaso<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="455">455</span>
Dardo ou risco evadi; que, a ser meu fado
Morrer então, meu braço o merecia.
Eu dalli me desprendo, e Iphito e Pelias,
Pesado e annoso Iphito, e Pelias tardo
De Ulysses vulnerado. A’ estancia régia<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="460">460</span>
Nos tira o ruído: a guerra se encruece,
Qual se, o restante em paz, lá só reinasse
Toda a matança e horror: o infrene Marte
Compelle os Danaos, que o palacio atacam
E a testudem cerrando as portas cercam.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="465">465</span>
Arduas escadas fixam nas paredes,
E junto aos postes nos degraus se estribam;
A sinistra no escudo apara os tiros,
Cimalha e capitéis a dextra aferra.
Os Dardanos de cima, as cumieiras<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="470">470</span>
E as tôrres demolindo, com taes armas,
Vendo-se já no extremo, se defendem;
E aureas traves, de avós decoro e pompa,
Devolvem; densa intrepida cohorte
Dentro a fios de espada o ingresso embarga.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="475">475</span>
De soccorrer o paço o ardor nos toma,
De esforçar os vencidos e ajudal-os.
Atrás communicava os edificios
Postigo innóto e corredor escuso,
Por onde, ai della! aos sogros vir sohia,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="480">480</span>
Durante o reino, Andrómacha sózinha,
Seu Astianaz ao caro avô trazendo.
Lá monto ao cimo, e estavam pobres Teucros
Sem fructo a dardejar. Tôrre em declive
Pendente, ás nuvens sôbre o tecto alçada,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="485">485</span>
Troia estendida, a frota e arraial grego
Descortinava: em cêrco das junturas,
Onde as vigas do solho a enfraqueciam,
A investimos a ferro, e do alto assento
Destroncada impellimol-a. De chofre<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="490">490</span>
O baque estronda: a ruína ao longe abafa
Turmas de Argivos; mas succedem outras:
Nem dardo ou pedra cessa, he tudo tiros.
Pyrrho á entrada no portico ufanêa,
Com aço e brilho aheneo relumbrando:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="495">495</span>
Tal, cevada em má grama, á luz a cobra,
Que prenhe o brumal frio a soterrava,
Nova a pelle, se empina, e môça e nedia,
Lúbrico dorso enrola, ardua o Sol mira,
Fulge e vibra a trisulca ardente lingua.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="500">500</span>
Com Periphas membrudo e a flor dos Scyrios,
Assalta o paço Automedonte o pagem,
Que os de Achilles picava ardegos brutos;
Lançam fachos ao cume. A’ frente Pyrrho
A machadadas racha os umbraes duros,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="505">505</span>
E ereos portões descrava da couceira;
Traves descose, firmes robles fende,
E cava ampla abertura. O interno centro
Apparece, e atrios longos patentêa;
Apparecem de Priamo os retretes,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="510">510</span>
Mansões de priscos rêis; e um corpo em armas
Cobre o limiar. Invôlta a casa em prantos
Longo ecchoa; as abobadas ululam
Com femineo gemer, triste alarido,
Que aureas estrellas fere. Apavoradas<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="515">515</span>
Andam mães pelas vastas galerias,
E osculos pregam nos portaes que abraçam.
Pyrrho, emulando o pae, no ataque insiste;
Nem ha barreira ou guardas que o sustenham.
Do crebro ariete abolada a porta,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="520">520</span>
Rue dos gonzos rendida. A’ fôrça rompem;
No ádito em postas aos primeiros talham,
E tudo enchem de tropas e de estragos.
Bem menos, quando inchado o espumeo rio
Marachões quebra e vallos sobrepuja,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="525">525</span>
Agros furioso inunda, e na torrente
Roja armento e curraes de campo em campo.
Eu vi Pyrrho na brecha encarniçado
E os dous Atridas; Hecuba e as cem noras,
E o rei no altar vi mesmo com seu sangue<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="530">530</span>
Maculando os que alli sagrara fogos.
Os thalamos cincoenta, em que esperava
Tantos netos, magnificas portadas
De ouro e espólio barbarico, arruínam:
Possue o Danao quanto poupa a chamma.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="535">535</span>
Talvez de Priamo o destino inquiras.
Troia em destroço, o paço contemplando
Derruído e hostilmente profanado,
De ociosa armadura o velho os hombros
Tremulos veste, inutil ferro á cinta,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="540">540</span>
Entre basto inimigo a morrer parte.
N’um pateo, exposto ao eixo nu celeste,
Louro antigo os penates obumbrava,
Sôbre ara ingente os ramos espalmando.
Qual da borrasca fugitivas pombas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="545">545</span>
N’um grupo alli pousando, Hecuba e as filhas
Comsigo em vão seus divos apertavam.
Sob armas juvenis ao rei que assoma:
"Que dira insania! diz; misero espôso!
Onde em bellico apresto assim caminhas?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="550">550</span>
Tal defensa não basta e humano auxílio;
Nem que o meu proprio Heitor surgisse agora.
Vem nesta ara abrigar-te, ou vem comnosco
Morrer." Nisto, ao longevo a mão pegando,
Em sagrada cadeira a par o assenta.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="555">555</span>
Fugindo á morte um filho seu, Polites,
Eis ferido, entre lanças, entre imigos,
Por atrios longos, porticos desertos,
Gyra: de golpe feito, o acossa, o apanha
Já já Pyrrho feroz, de um bote o aterra:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="560">560</span>
Ao tempo que ante os paes ia chegando
Baquêa, e dessangrado a vida exhala.
A sua o rei sentiu no extremo fio,
Mas reprimir não poude a voz e a ira:
"Pelo attentado, exclama, e audacia tanta,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="565">565</span>
Se ha no céo providencia e piedade,
Pague-te o céo com merecido premio,
A ti que o matas ás paternas barbas,
E estas cãs me funestas e enxovalhas!
Não, tal não se houve Achilles, meu contrario,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="570">570</span>
De quem te finges prole: ao supplicar-lhe
Enrubeceu, direito e fé guardou-me;
Sepultar permittiu-me Heitor exsangue,
Revêr meus reinos." Dice, e arroja o velho
Dardo imbelle sem gume, que repulso<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="575">575</span>
Pelo rouco metal, á superficie
Do embigo do broquel frustrado pende.
"Pois vai contal-o ao genitor Pelides;
Nuncio narrar te lembre estas baixezas,
E o quanto o degenero. He tempo, morre."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="580">580</span>
Fallando Neoptolemo o arrasta ás aras
Tremebundo, e do filho em quente sangue
A resvalar: na esquerda a coma enleia;
Com a dextra saca a lamina fulgente,
No vasio lh’a embebe até aos copos.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="585">585</span>
De Priamo este o fado, assim finou-se
Troia arder vendo e Pergamo assolar-se:
Quem d’Asia em povos cem reinou suberbo
He cadaver; na praia o tronco informe
Jaz sem nome, e a cabeça decepada.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="590">590</span>
Pasmei de horror, confesso: o pae querido,
No equevo rei que derramava o alento
Pela crua estocada, eu me figuro;
Figuro ao desamparo o tenro Ascanio,
Creusa em pranto, os lares saqueados.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="595">595</span>
Olho atrás, e procuro os companheiros,
Todos lassos e em dôr me abandonaram,
Despenhando-se em terra ou sôbre as chammas.
Já só de amigos, ao clarão do incendio
Érro, e em tôrno espreitando a cada passo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="600">600</span>
No santuario escondida e taciturna
A Tyndarida enxergo aos pés de Vesta:
Dos nossos pela quéda exasperados,
Dos seus medrosa, do offendido espôso,
Essa Erynnis commum de Grecia e Troia,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="605">605</span>
Execrada, entre as aras se acoutava.
A alma abrazou-se-me; iracundo anceio
Vingar na infame a patria agonizante.
"Que! soberana ir esta á sua Espartha?
Incolume, em triumpho, entrar Mycenas?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="610">610</span>
Vêr a casa, o marido, e os paes e os filhos?...
E ornem-lhe a pompa iliacas escravas!
E a ferro acabe o rei, queime-se Troia,
E suem teucro sangue as teucras praias!...
Não: se he nulla a victoria, se he desdouro<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="615">615</span>
Punir de morte a feminil fraqueza,
Louvor seja extinguir este impio aborto;
Farto ao menos a sanha e ardente sêde,
Saciarei de prazer dos meus as cinzas."
De furias transportado isto profiro,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="620">620</span>
Quando a meus olhos, como nunca, pura
A alma Venus, a noite alumiando,
Em divindade manifesta brilha,
Tal qual sohe aos celícolas mostrar-se;
E segurando em mim, com rosea bôca<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="625">625</span>
Me atalha a genitriz: "Que mágoa, ó filho,
Que indomita paixão te desatina?
Que he dos nossos penhores? onde o idoso
Cansado pae largaste? onde o filhinho?
Vive ainda Creusa? Atroz caterva<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="630">630</span>
Lhes voltêa em redor; sem meus desvelos
Já tragado os houvera ou gladio ou fogo.
Páris não culpes e a Lacena odiosa;
Dos deuses sim, dos deuses a inclemencia
He que abate e subverte a excelsa Troia.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="635">635</span>
Repara: a nuvem que ora os mortaes visos
Te embota humida e baça, eu vou tirar-t’a:
Sem temor obedece á voz materna.
Lá onde esparsas moles e arrancadas
Rochas e rochas vês, e undante fumo<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="640">640</span>
E ennovelado pó, Neptuno a golpes
Do gran’tridente os muros e alisserces
Alue, e do orbe desarreiga Troia.
Sevissima e em furor, de aceiro e malha,
Convoca Juno, alli nas portas Scéas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="645">645</span>
Das naus os batalhões. Já sôbre as tôrres,
Nota, sentada em lampejante nuvem,
Tritonia agita a Gorgona terrivel.
Jove mesmo acorçoa e esforça os Gregos,
Suscita os immortaes contra Dardania.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="650">650</span>
Foge, anda, filho meu, põe termo ás lidas.
Em salvo ao pae te guio, eu não me aparto."
Dice, e na sombra involve-se. Apparecem
De infensos numes cataduras torvas:
Ilio esboroar em cinzas se me antolha,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="655">655</span>
Fundir-se toda a neptunina Troia.
Assim nos altos montes orno antigo,
Se extirpal-o a machado em crebro assalto
Lenhadores porfiam, nuta, ameaça,
Trémula a coma, sacudido o cume,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="660">660</span>
Té que aos poucos cerceado, alfim gemendo,
Cahe dos cabeços com ruidoso estrago.
Côo entre o ferro e o fogo, a par de Venus;
Recúa o fogo e se desvia o ferro.
Chego á patria morada, ao velho corro,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="665">665</span>
No Ida amparal-o mais que tudo anhélo;
Nega-se elle ao destêrro, a vida enjeita
Sem Troia: "O’ vós, nos clama, a quem robora
Viçoso inteiro sangue, afervorai-vos,
Parti. Se os deuses me quizessem vivo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="670">670</span>
Conservavam-me agora o avito assento.
Sobra uma vez remanecido termos
Da captiva cidade após o excidio.
Dizei-me o adeus supremo, ah! despedi-vos
De um cadaver. A morte eu mesmo a apresso,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="675">675</span>
Ou dê-m’a compassivo e me despoje
Qualquer Danao: que importa a sepultura?
Pêso inutil, ha muito o céo me odeia,
Dês que o divino padre, o rei dos homens,
Assombrou-me e tocou-me com seu raio."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="680">680</span>
Com tal dicurso, pertinaz resiste
A’s lagrimas de Ascanio e de Creusa,
A’s da familia inteira, que lhe instamos
Pae não ajude a sorte a aniquilar-nos:
Quedo á tenção se amarra. Eu tórno ás armas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="685">685</span>
Meu desejo he morrer. Que mais conselho,
Que alternativa ha mais? "Oh! crime... e cuidas
Que eu possa arredar pé, que te abandone?
Tu blasfemas, senhor? Se he lei superna
Que d’Ilio nada fique, e os teus pretendes<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="690">690</span>
Juntar comtigo á moribunda Troia,
A estrada franca tens: não tarda Pyrrho,
Que, o sangue regio gottejando, á face
Do pae degole o filho e o pae nas aras.
Que? de lanças, de incendios me resguardas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="695">695</span>
Porque, ó madre, em meus lares o inimigo
Ante mim proprio immole a espôsa minha,
E um no sangue do outro Iulo e Anchises?
Armas, armas, varões: para os vencidos
Acena o último dia: ah! consenti-me<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="700">700</span>
Que volte aos Danaos, que a peleja instaure:
Nem todos hoje inultos morreremos."
De novo empunho a espada, embraço o escudo,
E no acto de sahir se me atravessa
A’ soleira Creusa, os pés me abraça,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="705">705</span>
E o meu tenrinho Ascanio me apresenta:
"Vais perecer? a transe igual nos leva;
Se inda em pericia e esfôrço te confias,
O que primeiro cumpre he defender-nos.
A quem teu pae, a quem teu filho entregas,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="710">710</span>
E esta que nomeavas tua espôsa?"
Quando esturgia o tecto em ais desfeita,
Oh prodigio estupendo! estando Iulo
De afflictos paes entre osculos e abraços,
Um resplendor subtil, igneo turbante,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="715">715</span>
Lhe coroa a cabeça, e em molle tacto
A’s fontes se apascenta e lambe as comas
A innocua flamma. Trepidos de medo,
O flagrante cabello sacudimos,
Jorros d’agua a deitar no sacro lume.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="720">720</span>
Mas ledo o genitor na etherea côrte
Fita os olhos, e orando as palmas tende:
"Jupiter summo, se te abrandam preces,
Attende ao menos; se á piedade es grato,
Auxilia-nos, padre, o agouro assella."<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="725">725</span>
Com subito fragor, mal finda o velho,
Toa á esquerda, e nas sombras deslisando
Pelo céo alva estrella accende a cauda;
Vemol-a escorregar pelos telhados,
Na selva idéa, a esteira assinalando,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="730">730</span>
Sumir-se: longo sulco abre em centelhas,
A’ larga odor sulfureo exhala e estende.
Meu pae rendido se ergue, invoca os deuses,
E adora o astro santo: "O’ patrios numes,
Presto vos sigo o acêno; impulso he vosso:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="735">735</span>
Protegei, resalvai-me o neto e a casa:
Troia está sob a vossa potestade.
Nem mais recuso, filho, eu vou comtigo."
Nos muros claro então crepita o fogo,
De perto volve am ala e o esto esparge.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="740">740</span>
"Sus, meu pae, eu te ajudo, ás nossas costas
Sobe-te, ó caro, não me aggrava o pêso:
Em successo qualquer, teremos ambos
A mesma salvação, commum perigo.
Ladêe-me o filhinho, e atrás Creusa<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="745">745</span>
Não se afaste de mim. Sentido, ó servos:
Ao sahir, n’um outeiro está de Ceres
Velho templo deserto, ao pé de antigo
Cypreste, com respeito religioso
Dos avós longamente conservado:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="750">750</span>
Por diverso caminho alli seremos.
Tu, padre, o que ha sagrado e os patrios divos
Toma: tinto em matança, impio he tocal-os,
Sem que eu me expurgue em vívida corrente."
Nisto, o vestido pelos hombros dóbro,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="755">755</span>
Envergo de um leão a fulva pelle,
Curvo-me e o pae carrégo: o tenro Iulo
Trava-me a dextra, amiuda os curtos passos
Por alcançar os meus; não longe, a espôsa
Nos vai na trilha por opacos sitios:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="760">760</span>
E eu, que ha pouco arrostava hostes e dardos,
De um sôpro agora tremo, um som me espanta,
Pela companha e carga temeroso.
Propinquo ás portas, já me conto livre;
De repente um tropel ouvir cuidamos;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="765">765</span>
Na treva Anchises lobrigando: "Filho!
Grita; apressa-te, filho; eil-os: deviso
Broquéis ardentes, fulgurantes malhas."
Não sei que nume infausto hallucinou-me:
Por dévia estranha róta extraviado,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="770">770</span>
Ai! misero perdi minha Creusa:
Se o fado m’a roubou, se errou a estrada,
Ou lassa recostou-se, he duvidoso:
Nunca mais a avistei. Inadvertido
Pela ausencia não dou, senão no outeiro,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="775">775</span>
Proximo ao templo já da prisca Ceres:
Ahi feita a resenha, ella só falta,
Mallogrando o marido e o filho e os socios.
Que homem, que deus não accusei demente?
Que houve de mais cruel no excidio horrivel?<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="780">780</span>
N’um fundo valle escondo, e aos companheiros
Os divos encommendo e Ascanio e Anchises.
Corro á cidade em refulgentes armas,
Firme em revirar Troia e em novas luctas
Pôr a cabeça na arriscada empresa.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="785">785</span>
Lesto ás muralhas, ao limiar escuro
Da porta vólto que me deu passagem;
Retrocedendo<ref>O original traz "retrocendo", que a segunda edição corrige.</ref>, pela noite apalpo,
Os olhos canso em busca das pégadas:
Tudo aterra, o silencio o pavor dobra.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="790">790</span>
Talvez, talvez regressaria á casa;
E lá me envio: os Danaos a invadiram,
Dominavam-na toda: o voraz fogo,
Dos ventos irritado, os altos ganha,
Rolando em labareda os ares cresta.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="795">795</span>
Prosigo; á régia e á cidadella passo:
E já nos vacuos porticos, no asylo
De Juno, eleitos a velar na presa,
Se postam Fenix e o nefando Ulysses:
Os thesouros de Troia em montões vejo,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="800">800</span>
De accesos tectos, saqueados templos,
Vasos de ouro massiço, alfaias, mesas,
Vestes sacerdotaes: á roda em fila
Estam pavidas mães, tenros meninos.
Ousei bradar na treva, e mesto as ruas<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="805">805</span>
Enchi de vozes; por demais gemendo,
Chamei, chamei e rechamei Creusa.
Furente as casas lustro, e saio e tórno,
Quando a sombra da espôsa, imagem triste,
Maior que d’antes se me avulta aos olhos.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="810">810</span>
Pasmo, hirta a coma, a voz se apega ás fauces.
Eil-a affavel me alenta e assim me acalma:
"Que vale a dôr sobeja, ó doce expôso?
Sem nume isto não he: levar Creusa
Te veda o fado, o regedor sublime<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="815">815</span>
Do Olympo o não consente. Em longo exilio
Tens de arar vasto pégo até á Hesperia,
Onde entre pingues populosos campos
O lydio manso Tibre inclina a vêa.
Com saudades não chores da consorte:<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="820">820</span>
Um reino alli te espera e uma princeza.
Nem eu, Dardanida e de Venus nora,
Irei servir as Téssalas altivas,
Nem dolopeias damas: cá me impede
A grande mãe Cybele. Adeus, Enéas;<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="825">825</span>
Todo na prenda nossa o amor emprega."
Nisto, o fallar me corta, e ás minhas lagrimas
Se furta, e se esvaece em tenues auras.
Tres vezes fui lançar ao collo os braços;
Tres presa em balde se desfez a imagem,<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="830">830</span>
Igual ao vento leve ou somno alado.
Os socios, gasta a noite, emfim revisto;
Dos que acho novos a affluencia admiro:
Velhos e moços, donas e donzellas,
Vulgo infeliz, concorrem para o exilio<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="835">835</span>
Com quanto salvam, pressurosos querem
Peregrinar comigo o mar e a terra.
A Alva, dos cimos do Ida resurgindo,
Já traz o dia, e occupa o Grego as portas;
Nem ha mais de esperança um só vislumbre.<span style="font-size:90%;color:666;float:right" id="840">840</span>
Cedo, e aos hombros meu pae, subo a montanha.
</poem>
</div>
==Notas==