A Cidade e as Serras/XII: diferenças entre revisões

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Assim chegou Setembro, e com ele o meu natalício, que era a 3 e num Domingo. Toda essa semana a passara eu em Guiães, nos preparos da vindima - e de manhã cedo, nesse Domingo ilustre, me fui debruçar da varanda do quarto do saudoso tio Afonso, vigiando a estrada, pôr onde devia aparecer meu Príncipe, que enfim visitava a casa do seu Zé Fernandes. A tia Vicência, desde a madrugada, andava atarefada pela cozinha e pela copa, porque, desejando mostrar ao meu Príncipe “o pessoal” da serra, convidar para jantar algumas famílias amigas, dos arredores, as que tinham carruagens ou carroções, e podiam, pelas estradas mal seguras, recolher tarde, depois dum bailarico campestre, no pátio, já enfeitado para esse efeito de lanternas chinesas. Mas logo às dez horas me desesperei, ao receber, pôr um moço da Flor da Malva, uma carta da prima Joaninha, em que dizia “a pena de não poder vir porque o Papá estava desde a véspera com um leicenço, e ela não o queria abandonar”. Corri indignado à cozinha, onde a tia Vicência presidia a um violento bater de gemas de ovos dentro duma imensa terrina.
 
-A Joaninha não vem ! Sempre assim! Diz que o pai tem um incençoleicenço... Aquele tio Adrião escolhe sempre os grandes dias para Terter leicenços, ou para Terter a pontada...
 
A boa face redondinha e corada da tia Vicência enterneceu-se.
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Não o esquecera a tia Vicência! Ali tinha o seu pauzinho de canela! - Queria que ele, em Guiães, continuasse os seus hábitos como em Tormes... E aquele pau de canela foi o símbolo de adoção do meu Príncipe como novo sobrinho da tia Vicência.
 
Ela em breve recolheu à cozinha, aos preparativos do banquete. Nós fumamos um preguiçoso charuto no jardim, ao pé do repuxo, sob a recolhida sombra do cedro. Depois, inexoravelmente, como proprietário, mostrei ao meu Príncipe a propriedade toda, com desapiedada minuciosidade, sem lhe perdoar uma leira, um regueiro, uma árvore, um pé de vinha. Só quando a sua face começou a opar e a empalidecer, de cansaço, e que do entendimento totalmente atordoado só lhe escorria um vago - “muito bonito! Bela terra!” é que voltei os passos para casa, tornejando ainda numa volta larga para lhe mostrar o lagar, uma plantação de espargos, e o sítio onde existira a ruína dum velho castro romano. Ao penetrarmos de novo, pelo jardim, na fresca sala, ainda o empurrei, como uma rês, para a livraria do meu bom tio Afonso, para lhe mostrar as preciosidades, uma magnífica crônicacrónica de D. João I pôrpor Fernão Lopes, a primeira edição do Imperador Clarimundo, uma Henriada, com a assinatura de Voltaire, forais de El-Rei D. Manuel, e outras maravilhas. Ele respirava fechando o derradeiro pergaminho, quando eu o arrastei à adega, para que admirasse a famosa pipa, que tinha, em relevo, na madeira do tampo, as complicadas armas dos Sandes. Eram quatro horas. O meu Príncipe tinha o ar esgazeado e lívido. Cravando nele os olhos inexoráveis, olhos em que eu mesmo sentia reluzir a ferocidade, declarei “que iríamos agora ver a tulha”. Mas então, com as mãos nos rins, ele murmurou, humildemente, num murmúrio de criança:
 
-Não se me dava de me sentar um poucochinho!
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Consenti generosamente que ele adormecesse - e eu mesmo desci a verificar se a Gertrudes dispusera bem as escovas, as toalhas de renda, no quarto onde os convidados, em breve, ao chegar, lavariam as mãos, escovariam a poeira da estrada. E justamente, uma caleche rodava no pátio, a velha caleche do D. Teotônio, com a parelha ruça. Espreitando da janela descobri, com prazer, que chegava só, de gravata branca, sob o guarda-pó, sem a horrendíssima filha. Corri alegremente ao quarto da tia Vicência, que, ajudada pela Catarina, abrochava à pressa as suas pulseiras ricas de topázios.
 
-Tia Vicência! chegou o D. TeotônioTeotónio! Felizmente vem sem a filha... Não se demore, os outros não tardam. O Manuel que esteja bem penteado, de gravata bem tesa!... Vamos a ver como corre a festa!