A NOVELLA NACIONAL
MONTEIRO LOBATO
Os Negros






OS NEGROS






ILLUSTRAÇÕES DE
RUY FERREIRA
MONTEIRO LOBATO


OS NEGROS
OU “ELLE,," E O "OUTRO,,"


NOVELLA CINE-ROMANTICA, COM PIOS DE
CORUJA, NOITE TEMPESTUOSA, MORTES
TRAGICAS E OUTROS INGREDIENTES DE
TOMO; LEITURA PERIGOSA ÁS MENINAS
HYSTERICAS E AOS VELHOS CARDÍACOS
QUE CREEM EM ALMAS DO OUTRO MUNDO.


SOC. EDITORA OLEGARIO RIBEIRO
RUA DIREITA N, 27 - SOBR. — SÃO PAULO

José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté aos 18 de Abril de 1884, de antiga familia da localidade. Formou-se em direito pela Faculdade de São Paulo e foi promotor publico em Arêas, abandonando, porém, a carreira, não só da magistratura, como das letras juridicas, para se dedicar a ontras actividades. Iniciou-se como escriptor, publicamente, ainda como estudante, e quasi sempre sob o pseudonymo de Helio Bruma. Foi fazendeiro em Caçapava durante alguns annos. Hoje reparte seus labores entre a literatura e a empresa editora de que é chefe (a mesma empresa da «Revista do Brasil»). ) seu primeiro livro, de grande successo em todo Brasil, foi o dos «Urupês», que, lançado em 1918, ja está em 6.a edição e ainda terá muitas outras. Seguiram-se : «Idéas de Jéca Tatú», 1919; «Cidades mortas», 1919; «Problema vital, (serie de artigos publicados no «Estado de Sao Paulo»), 1919; «Negrinha», 1919; «A Menina do Narizinho Arrebitado», historia para crianças, 1920. Tem collaborado, entre ontros, nos seguintes jornaes e revistas : «Estado de São Paulo», «Correio da Manha», «Jornal», «Jornal do Brasil», «Revista do Brasil», «A Vida Moderna», etc. As suas primeiras armas, á parte algumas escapadas, foram feitas n'«O Minarete», brilhante jornalzinho que se publicou em Pindamonhaugaba, ha pouco mais de 15 annos, e de onde sahiu toda uma serie de moços que fizeram bella carreira.

I

 

Viajavamos uma vez pelas regiões desertas por onde o carro triumphal de Sua Magestade o Café passou, puxado pelo Negro, quando as nuvens do céo, rebojudas até alli, entraram a desmanchar-se. Signal infallivel de chuva. Para confirmal-o um vento brusco, raspante, veiu quebrar o mormaço. vascollejando a terra prevenil-a do imminente banho meteorico. Remoinhos de poeira sorviam folhas seccas, e gravetos, que la torvelinhavam em espiraes pelas alturas. Soffreando o animal, parei, a examinar o céo.

— Não ha duvida, disse ao meu companheiro, temol-a e boa! O remedio é acoutarmo-nos quanto antes ahi n’algum socavão, que agua vem, de rachar.

Circumvaguei os olhos em torno. Morraria aspera a perder-se de vista, sem uma casota de palha a acenar-nos com o “corre aqui” .

— E agora? exclamou desnorteado o Jonas, marinheiro de primeira viagem que tudo fiava da minha experiencia.

— Agora é galopar. Atrás deste espigão fica uma fazenda em ruinas, de má nota, mas unico oasis possivel nesta emergencia. Casa do Inferno, chama-lhe o povo.

— Pois tóca para o inferno já que o céo nos ameaça, retorquiu Jonas dando de esporas e seguindo-me por um atalho.

— Tens coragem? gritei-lhe. Olha que é casa mal assombrada!...

— Bemvinda seja. Annos ha que procuro uma sem topar cousa que preste. Correntes que se arrastam pela calada da noite?

— Dum preto velho que foi escravo do defunto capitão Aleixo, fundador da fazenda, ouvi coisas de arrepiar!...

Jonas, a creatura mais gabola deste mundo, não perdeu vasa duma pacholice:

— D’arrepiar a ti, que a mim, bem o sabes, só me arrepiam correntes de ar...

— Acredito, mas tóca, que o diluvio não tarda. O céo ennegrecera por igual. Um relampago fulgurou, seguido de formidarel ribombo que la se foi as cabeçadas pelos morros té perder-se distante. E os primeiros pingos vieram, escoteiros, pipocar no chão resecco.

— Espóra, espora!

Em minutos vingavamos o espigão, de cujo topo vimos a casaria maldita, tragada a meio por mataréo de tapera. Os pingoes mais e mais amiudavam e já eram agua de molhar quando a ferradura das bestas estrepito com faiscas no velho terreiro de pedra. Sururucados por elle a dentro, rumo dum telheiro em aberto, la apeamos afinal, esbaforidos, mas a salvo da molhadela.

E as bategas vieram, furiosas, em cordas d’aglia a prumo, como devia ser o chuveiro biblico do diluvio universal.

Examinei o couto. Telheiro de carros e tropa, derruido em parte. Os esteios, da cabiúna eterna, tinham os nabos á mostra —tantos enxurros correram por alli erodindo o solo. Por elles marinhava a Caetaninha, essa mimosa alcatifa dos tapumes, toda rosetada de flores ainarellas e pingentada de melõesinhos de bico, côr de canario. Tambem aboboreiras viçavam na tapera, trepando victoriosas pelos espeques, para enfolhar no alto, entremeio das ripas e caibros a nú. Suas Hores grandalhudas, tão caras ás mamangavas, manchavam d’amarello pallido o tom crú da folhagem verde-negra. Fóra, a pouca distancia do telheiro, a casa grande erguia-se, vislumbrada apenas, aquell’horax, através da cortina d’agua.

E agua a cair. E a trovoada a escalejar echos pela morraria intermina. E o meu amigo, tão calmo sempre, o alegre, a exasperar-se :

— Raio de peste de tempo desgraçado! Já não posso almoçar em Vassouras amanhã, como pretendia.

— Chuva de corda não dura hora, consolei-o.

— Sim, mas é possivel alcançar o tal] pouso do Alonso inda hoje ?

Consultei o patacão.

— Cinco e meia! É tarde. Em vez de Alonso temos que gramar o Aleixo. E dormir com as bruxas, mais a alma do capitão infernal.

— Inda é o que vale, philosophou’o impenitente Jonas. Que assim ao menos temos o que contar amanhå.

 

II

O temporal durou meia hora, e ao cabo amainou, os relampagos espacejados e os trovões a roncarem muito longe dalli. Apesar de proxima a noite inda tinhamos uma hora de luz para sondar o terreno.

— Ha de morar aqui por perto algum urumbeva, disse eu. Não existe tapera sem lacraia. Vamos a cata desse bemdito urupe.

Encavalgamos de novo e saimos a rodear a fazenda.

— Acertaste, amigo! exclamou de repente Jonas, divisando uma casinhola erguida entre moitas a duzentos passos de distancia.

— Bico-de-papagaio, pé de mamão, terreirinho limpo: é o urumbeva sonhado!..

Para lá nos dirigimos e já do terrei­ro gritamos o "ó de casa!” Uma porta abriu-se enquadrando o vulto d’um tio ve­lho de cabellos russos. Com que alegria o saudamos...

— Pae Adão, viva!

— Vassuncristo ! respon­deu.

Era dos legitimos...

— P’ra sempre, disse eu. Estamos aqui trancados pela chuva e impedidos de proseguir viagem. Tio Adão ha de...

— Tio Bento, p'ra servir os brancos.

— Tio Bento ha de arranjar-nos pouso por esta noite.

— E boia, accrescentou o Jonas, que tenho a caixa das empadas a dar horas.

O excellente negro sorriu-se, com a gengivada inteira á mostra e disse :

— Pois é apeiar. Casa de pobre mas de bom coração. Quanto a “de comer”, comidinha de negro velho, já sabe...

Apeamo-nos, alegremente.

— Angú ? chasqueou o Jonas.

0 negro riu-se:

— Já se foi o tempo do angú com “bacalhau”...

— E não deixou saudades, hein, tio Bento?

— Saudades não deixou, não, eh, eh...

— P’ra vocês, pretos, que entre os brancos muitos ha que choram esse tempinho de vaccas gordas. Não fosse o Treze e não estava agora eu aqui a arrebentar as unhas neste raio do latego que encrúou com a chuva e não ata nem desata. Era servicinho do pagem...

Desarreamos as bestas e depois de soltal-as penetramos na casa sobraçando a bugigangaria. Vimos, então, que era pequena demais para nos abrigar aos tres.

— Amigo Bento, olha: não cabemos aqui tanta gente. O melhor é accommodarmo-nos na casa grande, que isto não é casa do bicho-homem, é ninho de cuitelo...

— Os brancos querem dormir na casa mal assombrada? exclamou, admirado, o preto. Não aconselho, não. Alguém já fez isso, mas arrependeu-se depois.

— Arrepender-nos-emos também, depois, ama­nhã, mas já com a dormida no papo, disse Jonas.

E como o preto abrisse a bocca, concluiu :

— Você não sabe o que é coragem tio Ben­to ! Escoramos sete. E almas, então, uma duzia ! Vamos lá. Está aberta a casa ?

— A porta do meio emperrou, mas á força de hombros deve abrir.

— Abandonada ha muito tempo ?

— “Quizano”! Des' que morreu o ultimo fiho do capitão Aleixo ficou assim, ninho de morcego e suindara.

— E porque a abandonaram ?

— “Descabeçada” do moço. P’ra mim, castigo de Deus. Os filhos pagam a ruindade dos paes, e o capitão Aleixo, Deus que me perdoe, foi máo, máo, máo inteirado. Tinha fama ! Aqui em dez legoas de roda, quem queria ameaçar um negro reinador, era só dizer : «Espera, diabo, que te vendo p’r’o capitão Aleixo.» O negro ficava que nem uma seda !... Mas o que elle fez, os fi­lhos pagaram. Eram quatro : Sinhozinho, o mais velho, que morreu no trem, “masgaiado” ; Nha Zabelinha...

III

 

Emquanto o preto falava, insensivelmente fomos caminhando de rumo á casa maldita. Era o casarão clássico das antigas fazendas negrei­ras. Assobradado, erguia-se em alicerces e muramento de pedra até meia altura, e d’alli por deante de páo a pique. Esteios de cabreúva, entremostrando-se picados a enxó, nos trechos d’onde se esboroára o reboco. Janellas e portas em arco, de bandeiras em pandarecos. Pelos in­terstícios da pedra amoitavam-se as samambaias e, nas faces de noruega, avenquinhas rachiticas. Num cunhal crescia annosa figueira, enlaçando as pedras na terrivel cordoalha tentacular. A’ porta de entrada ia ter uma escadaria dupla, com alpendre em cima e parapeito esborcinado.

Puz-me a olhar para aquillo invadido da sau­dade que sempre me causam ruinas, e parece que em Jonas a sensação era a mesma, pois que o vi tornar-se sério, de olhar pregado na casa, como quem recorda. Perdeu o bom humor, o es­pirito brincalhão de inda ha pouco. Emmudeceu.

— Está vista, disse eu depois d’alguns minu­tos. Vamos agora á boia que não é sem tempo.

Voltamos. O negro, que não parára de falar, dizia agora de sua vida alli:

— Morreu tudo, meu branco, e fiquei eu só. Tenho umas plantas á beira do rio; palmito no mato e uma paquinha lá de vez em quando na ponta do chuço. Como sou só...

— Só, só, só?

— "Suzinho, suzinho!” A Merencia morreu, faz tres annos. Os filhos, não sei delles. Criança é como ave: cria penna, avôa. O mundo é grande andam pelo mundo, avoando...

— Pois, amigo Bento, saiba você que você é um heroe e um grande philosopho por cima, digno de ser memorado em prosa ou em verso pelos homens que escrevem nos jornaes. Mas philosopho, e de peior especie, está-me parecendo tambem aquelle sujeito... conclui referindo-me ao Jonas que se atrazara e parara de novo em contemplação da casa.

Gritei-lhe:

— Mexe-te, poeta, que ladras ás lagartixas! Olha que sacco vazio não se põe de pé, e temos dez legoas a engulir amanhã.

Respondeu-me com um gesto vago e ficou-se no logar, immovel.

Larguei mão do scismabundo e entrei na casinhola do preto, que, accendendo luz candieiro de azeite foi ao borralho buscar umas raizes de mandioca assada. Pol-as sobre um mocho, quentinhas, dizendo:

— E' o que ha. Isto, e um restico de paca moqueada. — E achas pouco, Bento ? disse eu, mettendo os dentes na raiz deliciosa. Não sabes que si não fosse a tua provideneial presença tinhamos que manducar viradinho de brisas com torresmos de zephiros até alcançar a venda do Alonso, amanhã ? Deus que te abençõe e te dê no céo um mandiocal plantado pelos anjos.

IV

Caira de todo a noite. Que céo! Alternava estrellas vivissimas com rebojos negros de nuvens acastelladas. Na terra, escuridào de breu, rasgada de piques de luz pelas estrellinhas avoantes. Uma coruja berrava longe num esgallho morto de perobeira.

Que solidão, que espessura de trevas é a de uma noite assim, no ermo ! Nesses momentos é que bem se comprehende a origem tenebrosa do Medo...

V

Acabada a magra refeição, disse ao preto:

— Agora, amigo, é agarrarmos estas mantas e pellegos, mais a luz, e irmo-nos á casa grande. Dormes lá comnosco, á guisa de para-raios de almas. Topas ?

Elle, contente de ser-nos util, sobraçou a quitanda e deu-me a levar o candieiro. E lá fomos pelo escuro da noite a chapinhar nas poças d'agua e nas gramas empapadas. Encontrei Jonas no mesmo logar, em frente á casa, immovel e absorto.

— Estás louco, rapaz? disse-lhe. Não comes, tu que estalavas de fome, e ficas assim como pereréca em face da cascavel ?

Jonas olhou-me d'um modo estranho e por toda a resposta esganiçou um "deixa-me". Fiquei apalermado, a encaral-o por uns instantes, deveras desnorteado por tão inexplicavel attitude. E foi assim, de rugas na testa, que galguei a escadaria musgosa do casarão.

Estava perra, de facto, a porta, como dissera o negro, maş com valentes hombradas abri-a o necessario para dar passagem a um homem. Mal entramos, morcegos ás dezenas, assustados com a luz, debandaram ás tontas, em voejos surdos.

— Macacos me lambam si isto aqui não é o quartel general de todos os ratos de asas deste e dos mundos vizinhos !

— E das suindaras, patrãozinho. Mora aqui um bandão dellas que mette medo, accrescentou o preto ao ouvir-lhes pios no fôrro.

A sala de espera toava com o resto da fazenda. Paredes lagarteadas de rachas, escorridas de goteiras, com vestigios vagos de papel de fòrrar. Moveis, alguns, desapparelhados — duas cadeiras Luiz XV, de pallhinha rota, e centro do mesmo estylo com o marmore enegrecido pelo guano dos morcegos. No tecto, taboas despregadas, entremostrando rombos escuros.

Lugubre, lugubre...

— Tio Bento, disse eu procurando illudir com palavras a tristeza do coração, isto aqui ha de ser a sala nobre do sabbá das bruxas. Que não venham hoje atropelar-nos nem appareça a alma do capitão-mór a nos enfernizar o somno. Não é verdade que a alma do capitão-mór vagueia por ahi a deshoras ?

— Dizem, respondeu o preto. Dizem que apparece allı na casa do tronco, não ás dez mas à meia noite e sangra as unhas a arranhar as paredes...

— E depois vem cá arrastar correntes pelos corredores, hein ? Como é pobre a imaginativa popular ! Sempre e em toda a parte a mesma aria das correntes arrastadas ! Mas vamos ao que serve. Não haverá um quarto melhor que isto nesta hospedaria de mestre Tinhoso?

— Haver, ha — trocadilhou o preto, mas é o quarto do capitão-mór... Tem coragem?

— Inda não estás convencido, Bento, de que sou um poço de coragem ?

Poço tem fundo... retrucou elle, sorrindo philosophicamente. O quarto é aqui à direita.

Dirigi-me para lá. Entrei. Quarto amplo e em melhor estado que a sala de espera. Guarneciam-no duas velhas marquezas de palhinha bolorenta alem de varias cadeiras rotas. Na parede, um retrato na moldura classica da epoca, dourada, de cantos redondos com florões. Limpei com o lenço a poeira accumulada no vidro e vi que era um daguerreotypo esmaiado representando uma imagem de mulher.

Bento percebeu a minha curiosidade e explicou :

— E' o retrato da filha mais velha do capitão Aleixo, nha Zabel, uma moça tão desgraçada...

Contemplei longamente aquella antigualha veneravel, vestida á moda da epoca.

— Tempo das anquinhas, hein Bento ? Lembras-te das anquinhas ?

— Si me lembro ! A sinhá velha quando vinha da cidade era assim que ella andava, que nem uma perúa chóca...

Recolloquei na parede o daguerreotypo e puz-me a arranjar as marquezas, arrumando n'uma e n'outra os pellegos á guiza de travesseiros. Em seguida fui ao alpendre, de luz na mão, a ver si amadrinhava o meu relapso companheiro. Era demais aquella maluquice! Nào jantar e agora ficar-se alli ao relento...

VI

Perdi meu requebrado. Nem com "deixa-me" respondeu-me desta vez.

— Si lhe desarranja a cabeça, aqui nestas alturas...

Torturado por esta idéa não pude sossegar. Confabulei com o Bento e resolvemos sair em procura do transviado. Fomos felizes. Encontramol-o sem demora, no terreiro, em face da antiga casa do tronco. Estava immovel e mudo. Ergui-lhe a luz à altura do rosto. Que estranha expressão a sua ! Não parecia o mesmo, não “era” o mesmo. Deu-me a impressão de, retezado de musculos, no ultimo arranco duma lucta suprema, com todas as energias crispadas numa resistencia feroz. Sacudi-o com violencia.

— Jonas ! Jonas !

Inutil. Era um corpo largado da alma. Era um homem “vazio de si proprio”!... Assombrado com o phenomeno, concentrei todas as minhas energias e ajudado pelo Bento trouxe-o para casa. Ao penetrar na sala de espera estremeceu, parou, e arregalou os olhos para a porta do quarto. Seus labios tremeram. Percebi que articulavam palavras incomprehensiveis.

Precipitou-se depois para o quarto e dando com o daguerreotypo de Izabel agarrou-o com frenesi, beijou-o e rompeu em choro convulso. Em seguida, como exhausto duma grande lucta, cahiu sobre a marqueza, prostrado, sem articular uma palavra mais. Inutilmente interpellei-o, procurando a chave do enigma. Jonas permanecia esvazido... Tomei-lhe o pulso: normal. A temperatura: bôa. Mas largado, como um corpo morto. Fiquei ao pé delle uma boa hora, com mil idéas a azoinar-me a cabeça. Por fim, vendo-o calmo, fui ter com o preto.

— Conta-me o que sabes desta fazenda. Talvez que...

VII

Meu pensamento era deduzir das palavras do negro algo explicativo da mysteriosa crise.

Nesse entremeio zangara de novo o tempo. As nuvens recobriram inteiramente o céo transformando o espaço num sacco de carvão. Os relampagos voltaram a fulgurar, longinquos, acompanhados de rebôos surdos. E para que tom nenhum faltasse ao horror do quadro a ventania, em rajadas, cresceu, uivando lamentosa nas casuarinas. Fechei a janella. Mesmo assim, pelas frinchas, o assobio lugubre entrava a me ferir os ouvidos...

Bento falou em voz baixa, receioso de despertar o doente. Contou como viera ter alli, comprado pelo proprio capitão Aleixo, no Vallongo, molecote ainda. Disse da formação da fazenda e do caracter cruel do senhor.

— Era máu, meu branco, como deve ser máu o canhoto. Judiava da gente atôa, pelo gosto de judiar. No começo não era assim, mas foi peiorando com o tempo. Parece que perdeu o coração e a alma lhe avoou do corpo. No caso da Liduina... A Liduina era uma bonita mulatinha crioula aqui da fazenda. Muito viva, desde bem criança passou da senzala à casa grande para servir de mucama a sinházinha Izabel...

— Isto foi, — fez elle recordando-se — deve fazer sessenta annos, muito antes da guerra do Paraguay. Eu era um moleque novo e trabalhava aqui dentro, no terreiro. Via tudo o que se passava. À mucama, uma vez que sinházinha Izabel veiu da côrte passar as ferias na roça, protegeu o namoro della com o portuguezinho, e foi então...

A marqueza onde dormia Jonas estremeceu. Olhei. Estava elle sentado, presa de convulsões. Os olhos, exorbitantes, fixavam-se nalguma coisa invisivel para mim. Suas mãos crispadas unhavam a palinha rota. Agarrei-o, sacudi-o.

— Jonas, Jonas, que é isso ?

Olhou-me sem ver, com a retina morta, num ar de desvario.

— Jonas, fala !

Tenton murmurar uma palavra. Seus labios tremeram, na tentativa de articular um nome. Por fim, enuncion-o, arquejante :

— Izabel...

Mas aquella voz não era mais a voz do Jonas. Era uma voz desconhecida. Tive a confirmação plena de que um “eu” alheio lhes tomara de assalto o corpo vazio. E falava por sua bocca e pensava com o seu cerebro. Não era Jonas, positivamente, quem estava alli. Era um “outro”!...

Tio Bento, ao pé de mim, olhava assombrado para aquillo sem comprehender cousa nenhuma e eu num estado de superexcitação horrorosa senti-me à beira do medo panico. Não fossem os trovões echoantes e o ululo da ventania nas casuarinas denunciarem-me lá fóra um horror talvez maior e é possivel que não resistisse ao lance e fugisse da casa maldita como um criminoso. Mas alli ao menos havia luz, aquelle humilde candieiro de azeite mais precioso no momento que todos os bens da terra.

Estava escripto, entretanto, que ao horror dessa noite de trovoada e mysterio não faltaria uma nota siquer. Assim foi que, altas horas, a luz principiou a esmorecer. Estremeci, e fiquei de cabellos em pé quando a voz do negro murmurou a unica phrase que eu dava tudo para não ouvir:

— O azeite está no fim...

— E não ha mais, lá em tua casa?

— Era o restinho.

Estarreci...

Os trovões echoavam longe, e o uivar do vento nas casuarinas era o mesmo de sempre. Parecia empenhada a natureza em pôr a prova a resistencia dos meus nervos.

Subito, um estalido no candieiro. A luz bruxoleou um clarão final e extinguiu-se.

Trevas. Trevas absolutas...

Corri à janella. Abri-a.

As mesmas trevas lá fóra...

Senti-me cego...

Procurei a cama às apalpadelas, e cahi de bruços na palhinha bolorenta.

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VIII

Pela madrugada começou Jonas a falar sozinho, como quem se recorda. Mas não era o meu Jonas quem falava — era o “outro”,

Que scena...

Tenho até agora gravadas a buril no cerebro todas as palavras dessa mysteriosa confidencia proferida pelo incubo no silencio das trevas profundas. Mil annos que viva nunca se me apagara dos ouvidos o resoar macabro daquella voz de mysterio. Não reproduzo suas palavras da maneira por que as enunciou. Seria impossivel sobre nocivo á comprehensão de quem lê. O “outro” falava ao geito de quem pensa em voz alta, como a recordar. Linguagem tachygraphica, ponho-a aqui traduzida em lingua corrente.

IX

«Meu nome era Fernão. Filho de paes incoguitos quando me conheci por gente rolava no mar da vida como rolha à tona das vagas. Ao léo, solto nos vaes-vens da miseria, sem carinhos de familia, sem amigos, sem ponto de apoio no mundo.

Era no Reino, na Póvoa do Varzim; e do Brasil, a boa colonia preluzida em todas as imaginações como o El-dorado, ouvia sempre contar maravilhas aos marinheiros de torna-viagem.

Fascinado, deliberei emigrar.

Parti para Lisboa, um dia, a pé, como vagabundinho de estrada. Caminhada inesquecivel, faminta, mas rica dos melhores sonhos de minha vida. Via-me na terra nova feito mascate de bugiarias. Depois, vendeiro ; depois, commerciante com casa forte no Rio. Depois, já casado com linda cachopa, via-me de novo na Póvoa, rico, acatado, morando em quinta, senhor de vinhedos e terras de semeadura.

Assim embalado em sonhos de oiro alcancei o porto de Lisboa, onde passei o primeiro dia no caes, namorando os navios surtos no Tejo. Um havia em aprestos para largar de rumo à colonia, a caravella “Santa Thereza”, Acamaradando-me com velhos marujos de gandaia por alli consegui nella por intermedio delles o engajamento necessario.

— Já, fojes, aconselhou-me um, e afundas para o sertão. E mercadejas, e enriqueces, e voltas cá excellentissimo. E' o que faria eu si tivesse os verdes annos que tens.

Assim fiz; e prumete da “Santa Thereza” boiei no oceano de rumo ao paiz das maravilhas.

Em Africa aportamos para recolher pretos d' Angola, mettidos nos porões como fardos de couro fresco com care viva por dentro. Pobres pretos! Desembarcado no Rio tive occasião de vel-os ainda no Vallongo, semi-nús, expostos à venda como rezes. Os pretendentes chegavam, examinavam-nos, fechavam negocio.

Foi assim, nessa tarefa, que conheci o capitão Aleixo. Era um homem alentado, de feições duras e olhar frio. Trazia botas, chapéu largo e rebenque na mão. Atras delle, como sombra, um capataz mal encarado.

O capitão notou minha presença, fez-me perguntas e ao cabo me propoz serviço em sua fazenda.

Acceitei e fiz a pé, em companhia do lote de negros adquiridos, essa viagem pelo interior do paiz novo onde tudo me era novidade.

Chegamos. A fazenda do Fundão, formada de pouco, ia no apogêo, riquissima de cannaviaes, gado e café em inicios. Deram-me servicinhos leves, compativeis com a idade e a minha nenhuma experiencia da terra. E sempre subindo de posto continuei alli até alcançar a idade dos vite annos.

A familia do capitão morava na Côrte. Os filhos homens vinham todos os annos passar temporadas na roça, enchendo a fazenda de travessuras loucas. Já as meninas, então no colegio, lá se deixavam ficar, mesmo nas ferias. Só vierum nma vez, com a mãe, Dona Theodora. E foi isso a nossa desgraça...

Eram duas, Ignez, a caçula, e Izabel, a mais velha, lindas meninas de luxo, irradiantes de mocidade. Eu as via de longe, como figaras nobres de romance, inacées e lembro-me do effeito que naquele sertão bruto, asselvajado pela escravaria retinta, fazia a imagem das meninas ricas, sempre vestidas à moda da côrte. Eram princezinhas de contos de fadas que provocavam um sentimento só : adoração.

Um dia...

X

Aquella cachoeira — lá lhe ouço o remoto rumorejo! — era o banheiro natural da fazenda.

Escondida numa grota como joia de crystal vivo a defluir em escachôo permanente num engaste rustico de taquarys, cahetês e ingazeiros, formava um recesso grato ao pudor dos banhistas.

Um dia...

Lembro-me bem — era domingo e eu, de vadiagem, saira cedo a passarinhar. Segui pela margem ribeirão acima tocaiando passaros ribeirinhos.

Um pica-pau de cabeça vermelha zombou de mim. Errei a bodocada e mettido em brios afreimei-me em perseguilo. E salta d'aqui, salta d'alli, quando dei accordo estava embrenhado na grota da cachoeira, onde, num galho de ingá, pude visar melhor a minha presa e espeloteal-a.

Caiu a avezinha longe do meu alcance e eu barafustei pela trama dos taquarys para colhel-a. Nisto, por uma aberta na verdura, avistei em baixo a bacia de pedra onde a agua chofrava.

Mas estarreci. Duas nymphas núas brincavam na espuma.

Reconhecias Eram Izabel e sua mucama dilecta, da mesma idade, a Liduina.

O improviso da visão offuscou-me os olhos.

Quem ha insensivel á belleza da mulher em flor, e a mais vista assim, em nudez, num quadro agreste daquelles?

Izabel deslumbrou-me.

Corpo esculptural, nesse periodo entontecedor em que florescem todas as promessas da puberdade, deante delle senti a explosão subitanea dos instinctos...

Ferveu-me nas veias o sangue.

Fiz-me cachoeira de appetites.

Vinte annos!

O momento das erupções incoereiveis... Immovel como estatua, alli me quedei enm extase o tempo que durou o banho. E estou ainda com o quadro na imaginação. A graça com que ella, de cabeça erguida, bocca entre-aberta, apresentava os pequeninos seios ao jacto das aguas... Os sustos, e gritinhos nervosos, quando gravetos derivantes lhe esfrolavam a epiderme... Os mergulhos de sereia na bacia de lage e aljofrado de espuma...

Durou uns minutos o banho fatal. Depois vestiram-se numa pedra a secco e lá se foram, contentes, como borboletinhas azues em manhăs de sol.

Eu fiquei-me no lugar, extatico, rememorando o quadro — o mais lindo quadro que meus olhos viram.

Impressão de sonho...

Aguas de crystal rumorejante; frondes orvalhadas pendidas para a lympha como a lhes escutar o murmurio; um raio de sol matutino, coado pelas franças, a pintalgar de ouro tremeluzente a nudez menineira das naiades...

Quem poderá nunca esquecer um quadro assim ?

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XI

Essa impressão matou-me. Matou-nos...

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XII

Sahi dalli transformado.

Não era mais o humilde serviçal da fazenda, contente da sua sorte. Era um homem branco e livre que desejava uma mulher formosa. Dalli por deante minha vida ia gyrar em torno dessa aspiração.

Nascera em mim o amor, vigoroso e forte—como as hervas loucas da tiguéra.

Dia e noite um só pensamento me occuparia o cerebro : Izabel.

Um desejo só: vel-a.

Um só objectivo á minha frente : possuil-a.

Mas apesar de branco e livre, que abysmo me separava da filha do fazendeiro! Era pobre. Era um subalterno. Era nada.

Mas o coração não raciocina e o amor não olha para conveniencias sociaes. E assim, desprezando obstaculos, cresceu elle no meu peito como cresce um rio em tempo de cheia.

Approximei-me de Liduina.

O instincto disse-me que o caminho era por alli.

Approximei-me da mucama, e depois de lhe cair em graça, captando-lhe a confiança, disse-lhe um dia a minha tortura:

— Liduina, tenho um segredo n'alma que me mata, mas tu poderás salvar me. Só tu. Preciso do teu soccorro... Juras auxiliar-me ?

Ella espantou-se da confidencia, mas, insistida, rogada, implorada, prometteu quanto pedi.

Pobre coitadinha! Tinha uma alma irmã da minha e foi ao comprehender su'alma que pela primeira vez alcancei todo o horror da escravidão...

Abri-lhe o meu peito e revelei-lhe em phrases candentes o amor que me consumia.

Liduina, a principio, assustou-se. Era grave o caso. Mas quem resiste á dialetica dos apaixonados? E vencida afinal, prometteu auxiliar-me.

XIII

Liduina agiu por partes fazendo desabrochar o amor no coração da senhora sem que ella o percebesse.

A principio, uma vaga e discreta referecia á minha pessoa:

— Sinhazinha conhece o Fernão ?

— Fernão ?!... Quem é ?

— Um moço lindo, lindo, que veiu do reino e toma conta do engenho...

— Si já o vi, não me lembra.

— Pois repare nelle. Tem uns olhos...

— E' teu namorado ?

— Quem me dera !...

Foi essa a abertura do jogo. E assim, aos poucos, em dosagem habil, hoje uma palavra, amanhă outra, no espirito de Izabel nasceu a curiosidade — passo numero um do amor.

Um dia Izabel quiz ver-me :

— Falas tanto nesse Fernão – nos olhos desse Fernão, que estou curiosa de vel-os.

E viu-me.

Eu estava no engenho, dirigindo a moagem da canna, quando ambas entraram, de copo na mão. Vinham com o pretexto da garapa.

Liduina achegou-se a mim e :

— Seu Fernão, uma garapinha de espuma para sinhá Izabel.

A menina olhou-me de frente mas eu não lhe pude sustentar o olhar, Baixei os meus olhos, conturbado. Eu tremia, balbuciava apenas, nessa ebriez do primeiro encontro.

Dei ordens aos pretos e logo escorreu da bica um jacto fofo de garapa espumejante. Tomei o copo da mão da mucama, enchi-o e offereci-o á naiade. Ella o recebeu com sympathia, bebeu aos golinhos, e pagou-me o serviço com um "obrigada" gentil, olhando-me de novo nos olhos.

Pela segunda vez baixei os meus, perturbado.

Sahiram.

Mais tarde Liduina contou-me o resto—um pequenino dialogo.

— Tinhas razão, dissera-lhe Izabel, é um bonito rapaz. Mas não lhe vi bem os olhos. Que acanhamento ! Parece que tem medo de mim... Duas vezes que o olhei de frente, duas vezes os baixou.

— Vergonha, disse Liduina. Vergonha ou...

— ... ou quê ?

— Não digo...

A mucama, com o seu fino instincto de mulher, comprehendeu que não era tempo ainda de pronunciar a palavra amor.

Pronunciou-a dias depois, quando percebeu a menina sufficientemente madura para ouvil-a sem escandalo.

Passeavam pelo pomar da fazenda, então no auge da florescencia.

As laranjeiras nevadas de flores estendiam pelo chão uma alcatifa de petalas mortas.

O ar embriagava, tanto perfume ia nelle solto.

A belhas aos milhares, e colibris, zumbiam e esfusiavam n'um delirio orgiaco.

Era a festa annual do mel.

Liduina, percebendo em Izabel o trabalho des amavios ambientes, aproveitou o ensejo para um passo mais :

— Quando eu vinha vindo vi o seu Fernão sentado na pedra do muro. Uma tristeza...

— Que será que elle tem ?! Sandades da terra?

— Quem sabe ? Saudades ou...

— ... ou quê ?

— ... ou amor.

— Amor ! amor ! disse Izabel sorvendo o ar embalsamado. Que linda palavra, Liduina ! Eu quando vejo um laranjal assim florido a palavra que me vem á idéa é essa : amor ! Mas amará elle a alguem ?

— Pois de certo. Quem não ama neste mundo? Os passarinhos, as borboletas, as vespas...

— Mas a quem amará elle? A alguma preta do eito, com certeza... — e riu-se desabaladamente.

— Aquelle ? fez Liduina n'um muxoxo. Não é desses, não, sinházinha. Moço pobre mas de condição. Para mim eu acho até que elle é filho d'algura fidalgo do reino que anda por aqui escondido...

Izabel quedou-se pensativa.

— Mas a quem amará elle, então, aqui neste deserto de brancas ?

— Pois ás brancas...

— Quaes ?

— D. Ignezinha... D. Izabelinha...

A mulher desappareceu por um momento para ceder o lugar á filha do fazendeiro.

— Eu ? Engraçadinha ! Era só o que faltava...

Liduina calou-se. Deixou que a semente lançada corresse o prazo da germinação. E vendo um casal de borboletas a perseguirem-se com estalidos de azas mudou o rumo á conversa.

— Sinházinha já viu destas borboletas de perto ? Teem dois numeros debaixo das asas — oito, oito. Quer ver ?

Correu atrás dellas.

— Não pégas ! gritou Izabel, divertida.

— Mas pégo esta aqui, retrucou Liduina apanhando uma outra, lerdóta, e trazendo-a a espernejar entre os dedos.

— E' ver uma casca de arvore com musgo. Espertalhona ! Assim se disfarça que ninguem a percebe quando está sentadinha. E' como o periquito, que está gritando numa arvore em cima da cabeça da gente e a gente não o vê.

Por falar em periquito : porque Sinházinha não arranja um casal ?

Izabel tinhao pensamento longe d'alli. A mucama bem o sentia, mas muito de industria continuava na tagarelice :

— Dizem que se querem tanto, os periquitos, que quando um morre o companheiro suicida-se. Tio Adão teve um assim, que se afogou numa pocinha d'agua no dia em que a periquita morreu. Só entre os passaros ha coisas dessas...

Izabel continuava absorta. Mas em dado momento quebrou o mutismo :

— Porque te lembraste de mim, nesse negocio do Fernão ?

— Porque ? repetiu Liduina cavorteiramente. Porque é tào natural isso...

— Alguem te disse alguma cousa ?

— Ninguem. Mas si elle ama de amor, aqui neste sertão, e está assim agora, depois que Sinhazinha chegou, a quem ha de amar?... Ponha o caso em si. Si Sinházinha fosse elle, e elle fosse Sinházinha...

Calaram-se ambas e o passeio terminou no silencio dos que dialogam comsigo proprio.

XIV

Izabel dormiu tarde essa noite. A idéa de que sua imagem enchia o coração de um homem esvoaçava-lhe na imaginação como as abelhas do laranjal.

— Mas é um subalterno! allegava o orgulho.

— Que importa, si é um moço rico de bons sentimentos ? retorquia a natureza.

— E bem pode ser que fidalgo !... accrescentava, insinuante, a phantasia.

A imaginação veiu tambem á tribuna :

— E inda pode vir a ser um poderoso fazendeiro. Que era o capitão Aleixo na idade delle ? Um simples arreador...

Já era o Amor que assoprava taes argumentos...

Izabel ergueu-se da cama e foi á janella.

A lua em mingoante quebrava de cinerio o escuro da noite.

Os sapos no brejal latiam melancholicos. Vagalumes tontos riscavam phosphoros no ar.

Era aqui... Era aqui neste quarto, era aqui nesta janella !...

Eu a espiava de longe, nesse estado de extase que o amor provoca deante do objecto amado.

Longo tempo a vi assim, immersa em scismas. Depois, fechou a persiana e... o mundo para mim encheu-se de trevas.

XV

No outro dia, antes que Liduina abordasse o thema dilecto, disse-lhe Izabel :

— Mas Liduina, que é amor ?

— Amor ? respondeu a arguta mucama em quem o instincto substituia a cultura. Amor é uma coisa...

— ...que...

— ...que vem vindo, vem vindo...

— ...e chega !

— ...e chega e toma conta da gente. Tio Adão diz que o amor é doença. Que a gente tem sarampo, catapora, tosse comprida, cachumba e amor — cada doença no tempo proprio.

— Pois eu tive tudo isso, replicou Izabel, e não tive amor...

— Sossegue que não escapa. Teve as peiores e não ha de ter a melhor ? Espere que um dia elle vem...

Silenciaram.

Súbito, Izabel, agarrando o braço da mucama, encarou-a a fito nos olhos :

— E’s minha amiga, do coração, Liduina ?

— Um raio me parta neste momento si...

— E’s capaz dum segredo, mas um segredo eterno, eterno, eterno ?

— Um raio me parta...

— Cala a bocca.

Izabel vacillava.

Depois, nessa ansia de confidencia que nasce ao primeiro luar do amor, disse, corando :

— Liduina, parece-me que estou ficando doente... da doença que faltava.

— Pois é tempo, exclamou a finoria arregalando os olhos. Dezesete annos...

— Dezeseis.

— Dezeseis e onze mezes. E' tempo !...

E cavillosa :

— Algum fidalguinho da Côrte ?

Izabel vacillou de novo ; por fim disse :

— Eu tenho o meu namorado no Rio — é namoro só. Amor, amor, desse que bole cá dentro com o coração, desse que vem vindo, vem vindo e chega, não ! Não, lá...

E em cochicho ao ouvido da mucama, corando como a romã :

— Aqui !...

— Quem ? perguntou Liduina simulando espanto.

Izabel murmurou imperceptivelmente :

— Elle !

Corrigiu-se logo, porém :

— Mas é um comecinho só. Vem vindo...

XVI

Veiu vindo e chegou. Chegou e destruiu todas as barreiras. Destruiu as nossas vidas e acabou destruindo esta fazenda. Estas ruinas, estas corujas, este morcegal, tudo isto é a florescencia de um grande amor...

Porque ha de a vida ser assim ? Porque hão de os homens, á força d'orgulho, impedir que o botão da maravilhosa planta passe a flor ? E porque hão de transformar o que é céo em inferno, o que é perfume em dôr, o que é luz em negrume, o que é belleza em caveira ?

Izabel, mimo de fragilidade feminil avivada de graça brasilea, tinha o "quê" perturbador das orchideas. A belleza sua não era ao molde da belleza rochunchuda e corada, forte e sadia, das cachopas da minha terra. Espiritualizava-a algo de velatura, desse esfuminhado das segundas tiragens em que o retoque evanesce a força em diluculo de graça.

Porisso mesmo mais fortemente me seduzia a pallida princezinha tropical.

Ao inverso, em mim o que a seduzia era a força varonil e transbordante, a nobre rudeza dos meus instinctos que iam até a audacia de pôr os olhos na altura em que ella pairava.

XVII

O primeiro encontro foi... casual. Meu Acaso era Liduina. Seu genio instinctivo de Ariel rustico fazia-a sempre a boa fada dos nossos amores.

Foi assim.

Estavam as duas, no pomar, deante duma pitangueira enrubecida de fructos.

— Lindas pitangas ! disse Izabel. Sóbe, Liduina, e apanha-me um punhado.

Approximou-se Liduina da arvore e fez vãs tentativas para marinhar galhos acima.

— Impossivel, Sinházinha, só chamando alguem. Quer?

— Pois vae chamar alguem.

Liduina partiu correndo e Izabel teve a previsão nitida de "quem" viria. De facto, momentos depois appareci eu.

— Senhor Fernão, desculpe-me, disse a moça Pedi áquella maluca que chamasse algum preto para colher pitangas e foi ella incommodal-o...

Perturbado pela sua presença e com o coração aos pulos, gaguejei, para dizer algo :

— São pitangas que quer ?

— Sim, Mas falta uma cestinha que Liduina foi buscar.

Pausa.

Izabel, tão senhora de si, percebi-a nesse momento embaraçada como eu. Não tinha o que dizer. Silenciava. Por fim :

— Móe canna hoje ? perguntou-me.

Gaguejei que sim, e novo silencio se fez. Para quebral-o Izabel gritou em direcção da casa :

— Anda depressa, rapariga ! Que lesmice...

E depois, para mim :

— Não tem saudades da sua terra ?

Despregou-se-me a lingua. Respondi que tive, mas não tinha mais.

— Os primeiros annos passei-os a chorar á noite, saudoso de tudo de lá. Só quem immigrou sabe a dôr do fructo arrancado á arvore. Conformei-me, por fim. E hoje... o mundo inteiro para mim está aqui, nestas montanhas.

Izabel comprehendeu-me a intençào e quiz perguntar porque. Mas não teve animo. Saltou para outro assumpto :

— Porque motivo só as pitangas desta arvore prestam ? As outras são tão azedas...

— Vae ver, disse eu, que esta arvore é feliz e as outras não. O que azeda os homens e as coisas é a desgraça...

— E é azedo, o senhor?

— Fui, como limão, logo que vim para cá. Hoje... sou amargo...

— Julga-se infeliz?

— Mais do que nunca.

Izabel arriscou-se :

— E porque ?

Respondi intrepidamente :

— Dona Izabel que é menina rica não imagina a posição desgraçada de quem é pobre. O pobre forma neste mundo uma casta maldicta, sem direito a coisa nenhuma. O pobre não pode nada...

— Pode sim, uma coisa...

— ?

— Enriquecer. Imagino que os ricos antes de o serem foram pobres.

— Nào falo da riqueza do dinheiro. Essa é facil de alcançar, depende apenas de esforço e habilidade. Falo de coisas mais preciosas que o oiro. Um pobre, tenha o coração que tiver, seja a mais nobre das almas, não tem o direito de erguer os olhos a certas alturas...

— Mas si a altura quizer e descer até elle ? retrucou audaciosa e vivamente a menina.

Vacillei numa tonteira de felicidade, mas retorqui simulando descrença :

— Esse caso acontece ás vezes — nos romances... Na vida, nunca !

Calamo-nos de novo e nesse entremeio Liduina reappareceu, esbaforida, com a cestinha na mào.

— Custei a achar, disse a velhaca justificando a demora, estava cahida atrás do toucador.

O olhar que lhe lançou Izabel dizia : «mentirozinha !»

Tomei a cesta e preparei-me para trepar á arvore.

Izabel, porém, interveiu :

— Nào ! não quero mais pitangas. Lembro-me agora que si as cômo perco a vontade para a garapa do meio dia. Fica para outra vez.

E para mim, amavel :

— Queira desculpar-me...

Saudei-a, ebrio de felicidade e lá me fui de alleluias n'alma, com o mundo a dançar em torno de mim.

Izabel seguiu-me com o olhar, pensativamente.

— Tinhas razão, Liduina, é um rapagão que vale todos os pelintras da Côrte. Mas, coitado !... Queixa-se tanto da sua condição...

— Bobagens, muxoxou a mucama trepando á pitangueira com agilidade de macaco.

Izabel, vendo aquillo, sorriu e murmurou entre reprehensiva e maliciosa :

— Você, Liduina, você...

A rapariga, que tinha entre os dentes alvissimos o vermelho duma pitanga, esganiçou uma risadinha vellhaca :

— Pois Sinházinha não sabe que sou mais sua amiga que sua escrava ?

XVIII

O amor é o mesmo em toda a parte e em todos os tempos. Aquelle enleio do primeiro encontro é o eterno enleio dos primeiros encontros. Aquelle dialogo á sombra da pitangueira é o eterno dialogo da abertura. Assim, nosso amor, tào novo para nós, reproduzia um jogo velho como o mundo.

Nasceu em Izabel e em mim o sexto sentido maravilhoso. Comprehendiamo-nos, adivinhavamo-nos e descobriamos meios de inventar os mais imprevistos encontros—encontros deliciosos onde um olhar bastava para a permuta de mundos de confidencias...

Izabel amou-me.

Que periodo de vida, esse !

Eu sentia-me alto como as montanhas, forte como o oceano e todo a coruscar de céo por dentro.

Era rei.

A terra, a natureza, as estrellas, a lua, a luz, a côr, o som, tudo existia para ambiente do meu amor. Não era mais vida aquelle meu viver, e sim um extase permanente.

Alheiado de tudo, uma só cousa eu via, duma só cousa me alimentava.

Riquezas, poderio, honras — que vale tudo isso ante a sensação divina de amar e ser amado ?

Nessa ebriedade vivi — quanto tempo não sei. O tempo não contava para o meu coração. Vivia — tinha a impressão de que só nessa epoca entrára a viver. Antes a vida não me fôra mais do que simples agitação animal.

Poetas! Como vos comprehendi a voz interior, resoada em rimas, como me irmanei comvosco no esvoaçar pelos intermundios do sonho...

Liduina comportava-se como a fada bôa dos nossos destinos. Sempre vigilante, a ella deviamos inteirinho o mar de felicidade em que boiavamos. Lepida, mimosa, travessa, a gentil creoula enfeixava em si toda a artimanha da raça perseguida e todo o genio do sexo escravisado á potencia do homem.

Ariel ! Era bem o espirito de Ariel que se encarnára nella.

Emtanto, o bem que nos fizeste como se avinagrou para ti, Liduina !.. Em que fel horroroso se te transfez, afinal...

Eu sabia que o mundo é governado pelo monstro Estupidez. E que S. M. não perdôa o crime de Amor. Mas nunca suppuz que esse monstro fosse a féra delirante que é — tào sanguisedenta, tào requintada em ferocia. Nem que houvesse harpia mais bem servida que essa.

Que comitiva numerosa traz!

Que servos deligentes possue !

A sociedade, as leis, os governos, as religiões, os juizes, as moraes, tudo que é força social organizada, presta mào forte a S. Magestade.

E assanham-se em punir, em torturar o ingenuo que conduzido pela natureza arrosta os mandamentos da megéra.

Ai delle, si commete o crime de lesa-Estupidez ! Mãos de ferro constringem-lhe a garganta. Seu corpo rola por terra espezinhado, seu nome perpetua-se com péchas infames.

Nosso crime — que lindo crime : amar ! — foi descoberto. E a monstruosa engrenagem de aço triturou-nos, alma e ossos, aos tres...

XIX

Uma noite... A lua alta empallidecia as estrellas e eu, triste, velava, rememorando o ultimo encontro com Izabel.

Fôra á tardinha, numa volta do ribeirão, á sombra dum tufo de marianeira cacheada de fructos.

Mãos dadas, cabeça contra cabeça, num enlevo de communhão d'alma, assistiamos ao alvoroto da peixaria assanhada na disputa das fructinhas amarellas que, a espaços, pipocavam na agua remansosa do poço.

Izabel, absorta, olhava aquellas ariscas linguinhas de prata apinhadas em torno do cibo.

— Sinto-me triste, Fernão. Tenho medo da nossa felicidade. Qualquer cousa me diz que isto tem fim — e fim tragico...

Por toda a resposta aconcheguei-a inda mais ao peito.

Um bando de sahiras e sanhaços, de pouso na marianeira, entraram a debicar energicamente os cachos das fructinhas silvestres. E o espelho das aguas piriricou logo ao chuveiro de migalhas cahidas. Coalhou-se o rio de lambarys famintos, engalfinhados, num delirio de regabofe, com saltos de prata faiscantes no ar.

Izabel, sempre absorta, dizia :

— Como são felizes !.. E são felizes porque são livres. Nós — pobres de nós !... Nós somos inda mais escravos que os pretos...

Duas viuvinhas pousaram numa haste de pery emersa da margem fronteira. A vara vergou-se-lhes ao peso, oscillou uns instantes e estabilizou-se de novo. E o lindo casal permaneceu immovel, juntinho, commentando talvez, como nós, a festa glutona dos peixes.

Izabel murmurou, num sorriso de infinita melancolia :

— Que cabecinhas sossegadas elles têm...

Eu rememorava, phrase por phrase, esse ultimo encontro com a minha amada, á sombra da marianeira ribeirinha, quando, dentro da noite, ouvi bulha na porta. Alguem corria o ferrolho e entrava. Sentei-me na cama de sobresalto. Era Liduina. Tinha os olhos esgazeados de pavor e foi em voz arquejada que atropelou as derradeiras palavras que lhe ouvi na vida :

— Fuja! O capitào sabe tudo. Fuja, que estamos perdidos...

Disse, e esgueirou-se para o terreiro como sombra...

XX

O choque foi tamanho que me senti vasio de cerebro. Parei de pensar...

O capitão Aleixo... Lembro-me bem delle. Era o plenipotenciario de S. M. a Estupidez naquellas redondezas. Frio e duro, não reconhecia sensibilidade em carne alheia. Recommendava sempre aos feitores : angú e relho; angú por dentro e relho por fóra, sem economia e sem dó.

Consoante tal programma a vida da fazenda escoava-se entre trabalhos de eito, comezaina farta e relho.

Com o tempo desenvolveu-se nelle a crueldade inutil. Não se limitava a impor castigos : ia assistil-os. Gosava de ver a carne escrava avergoar-se aos golpes do couro crú.

Ninguem, entretanto, estranhava aquillo. Os pretos soffriam como predestinados á dor. E os brancos tinham como dogma que de outra maneira não se levam pretos. O sentimento de revolta não latejava em ninguem, salvo em Izabel que se fechava no quarto, de dedos fincados nos ouvidos, sempre que na casa do tronco o bacalháo arrancava urros a um pobre desgraçado.

A mim, em começo, tambem me era indifferente a dôr alheia. Ao depois — depois que o amor me floriu a alma de todas as flôres do sentimento — aquellas barbaridades diarias punham-me fremente de colera.

Uma vez tive impetos de estrangular o despota. Foi o caso dum vizinho que lhe trouxera um cão de fila para vender.

XXI

— E' bom ? Bem bravo ? perguntou o fazendeiro examinando o animal.

— Uma fera ! Para apanhar negro fugido, nada melhor.

— Nào compro nabos em saccos, disse o capitào. Experimentemol-o primeiro.

Ergueu os olhos para o terreiro que fulgurava ao sol. Deserto. A escravaria inteira na roça. Mas naquelle momento o portão abriu-se e um preto velho entrou, cambaio, de jacá ás costas, rumo ao chiqueiro dos porcos. Era um estropiado do eito que pagava o que comia tratando da criação.

O fazendeiro teve uma idéa. Tirou o cão da corrente e atiçou-o no preto.

— Péga, Vinagre !

O animal partiu como bala, e instantes depois ferrava o pobre velho dando com elle em terra. Estraçalhou-o...

— O fazendeiro sorria-se com enthusiasmo.

E' de primeira, disse ao sujeito. Dou-lhe cem mil réis pelo Vinagre.

E como o sujeito, assombrado d'aquelles processos, lamentasse a desgraça do estraçalhado, o capitão fez cara de espanto :

— Ora bolas! Um caco de vida...

XXII

Pois foi esse homem que vi subitamente penetrarn o meu quarto, essa noite, logo depois que se sumiu Liduina deixando-me vazio de pensamento.

Acompanhavam-no dois feitores, como sombras.

Entrou e fechou a porta sobre si.

Parou á distancia.

Olhou-me.

Sorriu.

— Vou te dar uma bella noiva, disse.

E num gesto aos megarefes :

— Amarrem-no !

Despertei da vacuidade. O instincto de conservação retezou-me todas as energias, e mal os capangas vieram a mim atirei-me a elles com furor de onça femea a quem roubam os cachorrinhos.

Não sei quanto tempo durou a lucta horrorosa ; sei apenas que, a tantas, perdi os sentidos, ás violentas pancadas que me racharam a cabeça.

Quando despertei, pela madrugada, vi-me por terra, com os pés doridos entalados no tronco. Levei a mão aos olhos sujos de pó e sangue e entrevi ao meu lado, no extremo do madeiro hediondo, um corpo desmaiado de mulher.

Era Liduina...

Percebi ainda que havia mais gente por alli.

Olhei.

Dois homens de picareta abriam um largo rombo na espessa parede de taipa.

Outro, um pedreiro, misturava cal e areia, no chăo, rente a uma pilha de tijollos.

O fazendeiro tambem estava, de braços cruzados, dirigindo o serviço. Vendo-me desperto, approximou-se do meu ouvido e murmurou com gelido sarcasmo as ultimas palavras que ouvi sobre a terra

— Olhe para lá ! A tua noivinha é aquella parede ...

Comprehendi tudo : iam emparedar-me vivo...

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XXIII

Aqui se interrompeu a historia do "outro", como a ouvi naquella horrorosa noite. Repito que a não ouvi assim, nessa ordem literaria, mas murmurada em soliloquio, aos arrancos, ás vezes em soluços, outras em cicio imperceptivel. Tão estranha era essa forma de narrar que o velho tio Bento não percebeu coisa nenhuma.

E foi com ella a borbulhar, a queimar-me o cerebro que vi chegar a manhã.

— Bemdita sejas, luz !

Ergui-me alvoroçado.

Abri a janella, a renascer-me dos horrores nocturnos.

O sol lá estava, espiando-me dentre a copa do arvoredo.

Seus raios de ouro invadiram-me a alma. Varreram della os frocos fluctuantes de trevas que inda a escurentavam qual cabellugem de pesadelo.

O ar lavado e fino encheu-me os pulmões da delirante vida matutina.

Respirei-o alegremente, em haustos largos.

E Jonas ? Dormia ainda, repousado de feições.

Era "elle" outra vez.

0 "outro" fugira com as trevas da noite.

Tio Bento, tambem desperto, enrolava a esteirinha rota.

— Tio Bento, disse-lhe eu. Conte-me o resto da historia. Que fim teve Liduina ?

O velho preto preparou-se para contal-a, a partir do ponto em que a interrompera.

— Não, intervim, dispenso isso tudo. Quero só saber que fim teve Liduina depois que o capitão deu sumiço ao moço.

Tio Bento fez cara admirada :

— Como o meu branco sabe disso ?

— Sonhei, tio Bento.

Elle permaneceu uns instantes ainda espantado custando a crer. Depois, narrou :

— Liduina morreu no chicote, a coitadinha — tão na flôr, dezenove annos... O Gabriel e o Estevam, os carrascos, retalharam o seu corpinho de criança com os rabos do bacalháo... A mãe della, que só na hora do castigo soube do acontecido na vespera, correu feito louca para a casa do tronco. No momento em que empurrou a porta e olhou, uma chicotada cortava o seio esquerdo da filha... Antonia deu um grito e cahiu para trás como morta...

Apesar do radioso da manhã meus nervos fremiram ás palavras do preto.

— Basta, basta. De Liduina basta. Só quero agora saber o que succedeu a Izabel.

— Nha Zabel ninguem mais a viu na fazenda. Foi levada para a Côrte e acabou mais tarde no hospicio, dizem.

— E Fernão ?

— Esse, sumiu. Ninguem mais soube delle, nunca, nunca...

XXIV

Jonas acabava de despertar. E, ao ver luz no quarto, sorriu. Queixava-se de peso na cabeça.

Interpellei-o sobre o eclypse nocturno de sua alma, mas Jonas deu a entender que estava alheio a tudo.

Enrugou a testa. Reflectiu.

— Lembro-me apenas que uma "coisa" me invafui empolgado, que luctei com desespero ...

— E depois ?

— Depois ?... Depois um vacuo...

Sahimos para fóra.

A casa maldicta, mergulhada na onda de luz matutina, perdera o aspecto tragico.

Disse-lhe adeus — para sempre...

— "Vade retro"...

E fomo-nos á casinhola do preto engulir o café e arreiar os animaes.

De caminho espiei pelas grades da casa do tronco : na taipa grossa da parede havia um trecho murado a tijolo...

Afastei-me, horripilado.

E guardei commigo o segredo da tragedia de Fernão. Só eu no mundo o sabia, contado por elle proprio, oitenta annos após a catastrophe.

Só eu !

Mas como não sei guardar segredo revelei-o, em caminho, ao Jonas.

Elle riu-se á larga e disse estendendo-me o dedo minguinho :

— Morde aqui !...— e desiste, meu caro: tu não dás para romancista...

FIM

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.