Laputa - A Ilha Voadora.
ilustração de
Jean Ignace Isidore Gérard Grandville (1803-1847)

[O autor retorna a Maldonada. Embarca para o reino de Luggnagg. O autor é detido. É procurado pela corte. A forma como foi recebido. A grande benevolência do rei aos seus súditos.]

Tendo chegado o dia de nossa partida, me despedi de sua alteza, o governador de Glubbdubdrib, e retornei com meus dois acompanhantes a Maldonada, onde, depois de uma espera de quinze dias, um navio estava pronto para partir para Luggnagg. Os dois cavalheiros, e alguns outros, foram tão generosos e gentis, a ponto de me fornecerem alguns mantimentos, e se despedirem de mim a bordo.

Passei um mês de viagem. Tivemos uma tempestade violenta, e fomos obrigados a tomar a direção oeste a fim de penetrarmos na rota de comércio, pois faltavam ainda mais de sessenta léguas. No dia 21 de abril de 1708, já nos encontrávamos no leito do rio Clumegnig, que era uma cidade portuária, na região à sudeste de Luggnagg.

Lançamos âncora ainda a uma légua da cidade, e fizemos um sinal solicitando um piloto. Dois deles vieram a bordo em menos de meia hora, e por eles fomos conduzidos em meio aos cardumes de peixes e os recifes, os quais eram muito perigosos de atravessar, até atingirmos uma imensa bacia, onde uma frota podia manobrar com segurança a uma distância de um cabo das muralhas da cidade.

Alguns de nossos marinheiros, fosse por traição ou por inadvertência, haviam informado os pilotos “de que eu era estrangeiro, e navegador de renome;” tendo estes feito a comunicação para um oficial da alfândega, por quem fui vistoriado de forma muito rigorosa ao desembarcar. Este oficial falou comigo no idioma de Balnibarbi, o qual, em razão do intenso comércio, era geralmente entendido naquela cidade, especialmente por marinheiros e por aqueles que trabalhavam na alfândega.

Fiz a ele um breve relato de alguns detalhes, tentando tornar a minha história mais plausível e consistente possível, porém, achei necessário ocultar minha nacionalidade, e dizer que era holandês; porque meus planos eram de ir ao Japão, e eu sabia que os holandeses eram os únicos europeus com permissão de acesso a aquele reino. Portanto, disse ao oficial, “que tendo naufragado na costa de Balnibarbi, e tendo sido lançado contra um recife, fui recebido em Laputa, ou ilha voadora (da qual muitas vezes ele havia ouvido falar), e estava agora tentando chegar ao Japão, onde achava que seria conveniente retornar ao meu país.

Disse o oficial, que “eu precisava ser detido até que ele pudesse receber ordens da corte, a quem ele escreveria uma carta imediatamente, e esperava receber a resposta em quinze dias.” Fui levado a um confortável alojamento e um sentinela ficou postado à minha porta, todavia, podia passear por um grande jardim, e fui tratado com relativa humanidade, tendo permanecido às custas do rei durante todo aquele período. Fui convidado por várias pessoas, levadas principalmente por causa da curiosidade, porque tinham dito que eu havia chegado de países muito distantes, dos quais nunca tinham ouvido falar.

Laputa – Mapa da Ilha
ilustração de Herman Moll (1654 –1732)

Contratei um jovem, que havia chegado no mesmo navio, para me servir de intérprete; era natural de Luggnagg, mas durante alguns anos havia vivido em Maldonada, e era um mestre perfeito em ambos os idiomas. Com a ajuda dele, foi possível manter conversação com aqueles que vieram me visitar, ainda que nosso encontro fosse constituído apenas de perguntas e respostas.

O despacho chegou da corte por volta do período que esperávamos. Ele continha uma autorização legal para que me conduzissem bem como à minha comitiva até TRALDRAGDUBH, ou TRILDROGDRIB (porque essa palavra era escrita dessas duas maneiras pelo que eu me lembro), escoltado por um pequeno destacamento com dez homens. Toda a minha comitiva era apenas aquele pobre rapaz que me servia de intérprete, a quem convenci prestar-me alguns serviços, e atendendo aos meus pedidos, fomos brindados com uma mula para cada um de nós.

Um mensageiro foi despachado com meio dia de jornada a nossa frente, para dar ao rei a notícia de nossa chegada, e para solicitar “que a sua majestade se dignasse a indicar um dia e hora, quando o prazer da sua graça permitiria, que eu pudesse ter a honra de lamber a poeira diante de seu trono.”

Este era o estilo usado na corte, e descobri que isso era muito mais do que uma questão de formalidade: pois, quando fui recebido, dois dias depois de minha chegada, me ordenaram para que me arrastasse de barriga, e lambesse o chão a medida que avançava, porém, por conta de ser estrangeiro, tiveram o cuidado de limpá-lo, para que a poeira não tivesse gosto desagradável.

Contudo, esse era um privilégio especial, somente permitido a pessoas do mais alto nível, quando era solicitada uma audiência. Ao contrário, algumas vezes o assoalho era propositalmente espargido com poeira, quando a pessoa em audiência fosse por acaso uns inimigos poderosos da corte; e certa vez vi um grande senhor com a boca tão suja, que depois de rastejar até uma certa distância do trono, ele não conseguia dizer nem uma palavra.

E não havia o que fazer, porque era considerado crime capital, para aqueles que são recebidos em audiência, cuspir ou limpar suas bocas na presença de sua majestade. Há ainda um outro costume, que de modo algum eu posso aprovar: quando o rei tinha a ideia de mandar matar um de seus nobres de forma branda e tolerante, ele ordenava para que o chão fosse atapetado por um pó marrom de uma composição letal, que ao ser lambida, matava a vítima impreterivelmente dentro de vinte e quatro horas.

Porém, como prova da grande generosidade deste príncipe, e do cuidado que ele tinha pelas vidas dos seus súditos (onde seria de desejar que os monarcas da Europa pudessem imitá-lo), e que deve ser dito em nome de sua honra, que ordens severas eram dadas para que fossem bem lavadas as partes infectadas do chão depois de toda execução dessa categoria, e caso seus criados não tomassem o devido cuidado, ele corriam o risco de cair no desagrado real.

Eu mesmo presenciei quando ele dava orientações, para que um de seus escudeiros, cuja função era avisar sobre a limpeza do chão após uma execução, fosse açoitado, mas deixou de fazê-lo por maldade, cuja negligência concorreu para que um jovem senhor, em quem o rei depositava grandes esperanças, sofresse envenenamento acidental, embora o rei não tivesse nenhum plano de tirar-lhe a vida naquele momento. Mas este bom príncipe era tão generoso, a ponto de perdoar o pobre escudeiro de ser açoitado, desde que jurasse não cometer mais atos assim, sem ordens especiais.

Deixando de lado esta digressão, depois de ter rastejado quatro metros de distância do trono, eu me levantei vagarosamente de joelhos, e então, batendo sete vezes a cabeça contra o chão, pronunciei as seguintes palavras, que me haviam ensinado na noite anterior: INCKPLING GLOFFTHROBB SQUUT SERUMMBLHIOP MLASHNALT ZWIN TNODBALKUFFH SLHIOPHAD GURDLUBH ASHT.

Este era o cumprimento, estabelecido conforme as leis do país, para todas as pessoas recebidas em audiência na presença do rei. Isso pode ser traduzido como: “Que a vossa majestade imperial possa sobreviver ao sol, por um período de onze luas e meia!” Nesse instante, o rei dava alguma resposta, que, embora não pudesse entender, eu respondia como havia sido orientado: FLUFT DRIN YALERICK DWULDOM PRASTRAD MIRPUSH, que queria dizer:

“A minha língua está na boca do meu amigo;” e esta expressão queria dizer, que eu pedia permissão para trazer o meu intérprete, tendo sido introduzido o jovem mencionado anteriormente, através de cuja mediação respondi a todas as perguntas que sua majestade conseguiu fazer em pouco mais de uma hora. Eu falava no idioma de Balnibarbi, e o meu intérprete traduzia para o idioma que era falado em Luggnagg.

O rei ficou muito satisfeito com a minha companhia, e ordenou que o seu BLIFFMARKLUB, ou camareiro-mor, para que preparasse as acomodações na corte para mim e para o meu intérprete, com uma recomendação diária para a minha mesa, e uma generosa bolsa de ouro para minhas despesas comuns.

Fiquei três meses nesse país, em completa obediência a sua majestade, que tinha a maior satisfação em me favorecer, tendo me feito propostas bastante vantajosas. Porém, achei mais coerente e mais justo permanecer o restante dos meus dias com a minha esposa e a minha família.

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