Vamos, Sinhá, vão se fazendo horas - disse Fernando Gomes, tomando o chapéu e a bengala.

— Já vou; estou quase pronta - respondeu, do gabinete de toalete, uma voz moça e clara.

Fernando consultou mais uma vez o relógio: eram sete e meia. A entrada do Orénoque estava anunciada para as dez, mais ou menos: não havia tempo a perder. E foi se dirigindo para a porta.

— Já encomendaste o carro, Fernando?

— Já, na cocheira da rua do Haddock Lobo, onde devemos tomá-lo. Mas, vem daí; senão perdemos este bonde. Eu vou para o portão esperá-lo.

E, descendo a escada da sala de jantar, veio para o jardim.

Era uma esplêndida manhã de julho, fresca, vibrante de claridade e de gorjeios de passarinhos. Os cabeços da serra da Tijuca iam-se destoucando dos véus brancos da névoa, em que se envolveram para dormir, e o sol, acima de um deles, com o seu disco indistinto e refulgente, parecia um grande brilhante engastado na porcelana azul da abóbada. Os seus raios, finos e nítidos, apenas tépidos, acendiam delicadamente todas as cores do íris nos cristais do orvalho que aljofravam as folhas das roseiras, dos jasmineiros, das begônias, dos crótons; e os verdes tapetes de grama, talhados à inglesa, com uma elegância severa e simples, pareciam cobertos de pó de prata.

Dois jardineiros solícitos faziam a primeira rega com o auxílio de longos tubos de borracha, de um lado e de outro; e sob o chuvisqueiro fino, irizado de sol, as plantas verdes e tenras sacudiam-se, agitando os braços, erguendo as cabeças flóreas, tomando no seu banho matinal forças novas para resistir ao calor fecundo do dia.

Era um jardim magnífico pela vastidão e pelo bom gosto no corte e disposição dos canteiros - uns formando corbelhas variegadas, outros elipses, losangos e meias-luas; e de dentro do qual o chalé surgia garridamente, cor-de-rosa e branco, com a sua construção simples de um só pavimento, mas alto bastante, inteiramente circundado por uma varanda larga sob a coberta leve, recortada em lambrequins de madeira.

Para trás ficava a chácara imensa, plantada de velhas e copadas mangueiras e muitas outras árvores de fruto, e nela, a uns cem passos do chalé, um outro, pequeno, muito alto, espécie de mirante, que olhava para longe, Tijuca abaixo, por sobre o telhado daquele. Fernando chamara-lhe o belvedere, e era nele que ia instalar o seu querido viajante, para o que o fizera mobiliar a capricho.

Era uma das melhores vivendas da Tijuca, sobre um outeiro, junto à raiz da serra, tendo sobre tantas outras ainda a vantagem da facilidade da condução, pois dispensava diligência, carro ou cavalo, bastando o bonde e um pequeno trajeto de cinco minutos a pé.

Fernando dava uma ordem a um dos jardineiros quando Corina, descendo rapidamente, muito risonha, as escadas de pedra, num farfalhar de sedas novas, espalhando em torno uma onda de perfumes discretos, veio juntar-se ao marido:

— Ah! Cá estou. Nem sei como estou vestida! Se isto são horas de obrigar uma dama a sair, senhor doutor Paulino! - exclamou ela, erguendo com faceirice um dedo ameaçador na direção do mar. E, voltando-se para o marido com um recuo ligeiro, abrindo os braços:

— Achas-me bem?

— Estás divina. Mas vamos.

— Sem café? Esquecia-nos o café. Aí vem ele.

Um mulato claro e alto, muito magro, com um avental branco, que lhe descia dos ombros aos pés, aproximava-se com uma salva de xarão, em que se via um delicado meio serviço de prata para petit déjeuner. Corina trincou um biscoito e sorveu alguns goles de leite, enquanto o marido ingurgitava o cheiroso e negro café da sua canequinha branca.

— Pronto; desçamos.

Saíram o gradil de ferro e desceram a colina, entre os dois renques de soberbas palmeiras. O bonde tilintou perto, embaixo. Apressaram o passo e tomaram-no.

— Quase oito horas, Sinhá. Tenho receio que não cheguemos a tempo.

— Que idéia! Nem tão grande é a distância!

E Corina calçava as luvas cor de pérola, olhando, com desembaraço, um pouco para toda parte.

É uma encantadora morena de 21 anos. Alta, bem lançada, cintura fina e cadeiras largas, peito farto, sem exagero, sentindo-se-lhe a opulência firme dos seios no ofego brando do colo, adivinhando através da seda; braços longos, mãos pequenas, de dedos afusados; uma fragilidade e esbelteza de fausse maigre. A cabeça, de brasileira pura, aliando a garridice e a espiritualidade francesas ao encanto forte e quente das espanholas nos olhos grandes, negros, admiráveis; no nariz, a um tempo delicado e forte, de asas largas e palpitantes; na boca, rasgada em sorriso, de lábios carnudos e róseos; no moreno aveludado da tez, de uma palidez sensual, que parece arder de um fogo incessante do sangue, refluente ao coração.

E em toda ela, nos olhos, nos risos, nos gestos, nas falas - uma alegria, uma ingenuidade, um capricho de criança.

Onde quer que aparecesse atraía todas as atenções, acendia invejas nas damas, inflamava em desejos cúpidos os homens. Quando entrava em um bonde, enchendo-o com a sua mocidade e a sua formosura de Diana, vestida pelo último figurino de Paris, todos se volviam para vê-la e corriam sussurros.

Os homens que conheciam o marido apressavam-se em saudá-lo para terem pretexto de olhar para a mulher com mais liberdade, e se ia no carro algum elegante, algum leão da rua do Ouvidor, uma espécie de fluido elétrico se estabelecia entre ela e ele: sentiam-se, adivinhavam-se mutuamente, farejavam-se, por assim dizer, como no bosque espesso a corça e o tigre se pressentem e se aproximam - uma com a certeza do seu fim desgraçado, o outro com a segurança da sua força.

E se o acaso os juntava no mesmo banco, era um telegrafar imperceptível de contatos sutilíssimos: ora a manga do fraque dele roçando a manga do corpete dela, o joelho dele, que num movimento natural, toca ligeiramente nos estofos que resguardam a perna da dama; não se olham e, no entanto, observam-se; não se falam, mas compreendem-se.

É uma espécie de duelo mudo, que se trava entre toda mulher formosa e coquete e os homens da moda e do mundo; duelo terrível, em que ela tem de defender-se heroicamente contra muitos adversários, mais fortes e mais experimentados, e no qual se joga sempre a honra do marido, que não raro recebe um golpe mortal.

O de Corina, entretanto, não era dos mais animadores. Era um homem fisicamente digno daquela esplêndida mulher - alto, robusto, espáduas largas, cabeça enérgica, sangüínea, respirando força e coragem pelos olhos francos, pela boca forte, pelo nariz grande e adunco. Usava bigode e suíças curtas e sedosas, de um louro escuro, e que ele anediava quase constantemente. Representava ter 36 anos. Sócio de uma casa bancária e interessado em várias empresas industriais, distribuía sem cessar a sua prodigiosa atividade por muitos negócios de especulação mercantil e transações de bolsa, em que fizera sólida e próspera fortuna. Era conhecidíssimo no Rio de Janeiro, cuja melhor sociedade freqüentava, figurando infalivelmente um todas as comissões de festejos públicos e obras de caridade.

Havia três anos apenas que desposara Corina, a sobrinha e afilhada do conselheiro Prestes, o abastado homem político, um dos mais prestigiosos chefes do partido então no poder. O conselheiro, não tendo filhos, concentrara naquela menina todas as suas afeições e esperanças, adotando-a com sua esposa, a célebre Chiquita Prestes, de quem se contavam aventuras escandalosas, em que figuravam até personagens de sangue azul.

Bonita, elegante, herdeira da fortuna considerável dos tios, educada com excessiva liberdade e mimos demasiados, freqüentando todos os bailes e festas, vivia a jovem Corina assediada constantemente de adoradores, que se disputavam com encarniçamento uns aos outros aquela presa apetecível.

Mas a própria liberdade em que a deixavam os padrinhos teve para ela uma vantagem - foi fazê-la conhecer ao justo o valor de cada um dos seus inúmeros pretendentes. Ganhou fama de namoradeira; mas também adquiriu a de conquista difícil, tantas foram as tábuas que distribuiu, brincando e rindo, a muitos deles.

Gastou três anos, dos 15 aos 18, nesses perigosos brincos de salão, estafando pretendentes nessa steeple-chase ao seu dote e à posse do seu corpo adorável.

Mas aos 18 anos, deixou-se prender e cativar. Encontrara Fernando em um baile do cassino - valsando como um silfo, conversando com espírito e fazendo-lhe uma corte delicada e séria, sem pieguices. Sentiu nele uma virilidade sadia e uma afeição firme e profunda: correspondeu-lhe.

Fernando, que de há muito a seguia timidamente, através de todos os bailes, espetáculos e festas com uma simpatia crescente, sentiu-se, por fim, tomado de um amor grave, fundo, irresistível, por aquela perturbadora criança. E, com a sua vontade educada, que não conhecia impossíveis, resolveu que a desposaria.

Mui raro é que um amor sincero e grande, um amor verdadeiro - o amor, enfim - não desperte, não atraia, não gere senão amor igual, ao menos uma afeição forte, uma simpatia acentuada, como o abismo atrai o abismo; mui raro é que o amor não vença e não triunfe.

Dona Sinhá - a frívola Corina -, a coquete borboleta do flerte, sentiu-se atraída de um modo estranho e poderoso para aquela viva e grande chama que ardia tranqüilamente a seu lado e deixou-se arrebatar para o cárcere dourado do casamento pelos braços do seu valsista lépido e varonil.

Após três meses de noivado - meses deliciosos, em que a festa nupcial foi preparada entre carinhos e devaneios, com mil pequenos cuidados e requintes, acabando cada uma dessas noites de oratório com um beijo casto e tímido, e em que os primeiros ardores do delírio da posse foram pouco a pouco entrando - após esses três meses de sonho, realizou-se o casamento de Fernando Gomes com Corina Prestes na casa dos padrinhos, partindo os noivos na mesma tarde para Petrópolis. Ali passaram a lua-de-mel, escondendo-a avaramente em um delicioso cottage no alto da Serra, no qual só receberam a visita do conselheiro e da esposa e a de Paulino, o seu maior amigo, a quem estimava como a um filho, e que dentro de duas horas ia estreitar nos braços, depois de uma ausência de três anos, em que fora viajar e aperfeiçoar os seus estudos médicos na Europa.

Paulino embarcou para Bordeaux dois meses depois do casamento do seu amigo e protetor.

Para Fernando Gomes esses três anos pareciam três dias. No firmamento da sua felicidade somente uma nuvem passou, toldando-o, mas passou ligeira, para não mais voltar - esperava-o.

Mas era bastante negra essa nuvem; foi grande esse primeiro desgosto.

Corina fizera-se abortar duas vezes; da primeira Fernando ignorou-o completamente; mas da segunda foi advertido pelo médico, que, ainda incerto quanto ao primeiro aborto, tivera certeza do segundo pelos profundos e iniludíveis efeitos por ele deixados na natureza delicada da moça, e julgara de seu dever informar o marido, em particular e com cautela.

Fernando teve uma cena violenta com a esposa - a primeira, mas que lhe deixou um vago pavor. A princípio ela negou o fato, mas teve de confessar a verdade quando o marido lhe disse que fora o próprio médico que lho revelara. Interpelada sobre o sentimento que a levara à prática daquele crime, de que ela não tinha, aliás, consciência, considerando-o um ato lícito, sem maior importância: se era o horror ou o medo de ser mãe, respondeu isto - que desejaria ter um filho porém mais tarde, quando já houvesse gozado mais da existência, que se sentia moça e forte, que gostava de se divertir e que os filhos estragam as mulheres, acabam-lhes com a vida, condenando-as a toda sorte de trabalhos, desgostos e sofrimentos. E nos seus olhos imensos, marejados de lágrimas, lia-se o terror animal da dor, e nos seus gestos de desespero o aferro egoístico aos gozos fáceis e brilhantes da vida mundana - a todos os regalos do luxo, da moda, da convivência.

Fernando, que esse golpe inopinado abatera, escreveu a Paulino longamente, expondo-lhe sem reservas o que se passara e pedindo-lhe o seu juízo a respeito. A resposta veio pela volta do paquete e restituiu ao pobre homem a calma e a alegria que aquele incidente lhe roubara.

Pensava o médico que fora um ato de leviandade, uma criancice, apenas; produto talvez de maus conselhos; mas dizia estar convencido de que ela não compreendia absolutamente a gravidade, nem medira as conseqüências do que fizera e que devia ficar muito espantada quando lhe dissessem que fora um crime esse ato.

Paulino lembrava ainda ao amigo a deficiência da educação moral que haviam dado à esposa, a qual, saída do colégio das irmãs de caridade, de um meio de hipocrisia e disfarce, tivera como mãe, durante os três anos que mediaram entre a saída do colégio e o casamento, a quem? À famosa Chiquita Prestes! E concluía aconselhando ao amigo que se lembrasse de tudo isso para não esquecer que devia pôr no seu amor conjugal um pouco do desvelo e da severidade de um pai.

Essa carta foi para Fernando, além de um suave conforto, uma revelação preciosa. Absorvido pelos seus negócios, depositando na esposa confiança completa, tendo um gênio descuidoso, franco, pouco refletido, incapaz de prever o mal, nunca ponderara os precedentes da esposa, o seu gênio, a sua educação, os seus gostos, nem os perigos e os males que podiam vir da excessiva liberdade, sem nenhuma vigilância, em que ele deixava aquela criança fogosa, travessa e mal educada.

Era tempo. A sua honra já era pasto da maledicência pública em Petrópolis, onde passavam os verões. Apontava-se como amante da formosa dona Sinhá o jovem e louro secretário da legação francesa, sr. de La Motte, seu par quase constante de valsa, seu companheiro habitual de passeios a cavalo. e de canto nos duetos ao piano. Fernando, sem alterar os hábitos do casal de modo alarmante, foi restringindo habilmente o circulo das festas e modificou os seus próprios hábitos de modo a ser muito mais assíduo junto à mulher - nos bailes e nos passeios. E como valsava e montava ainda primorosamente, recomeçou a valsar com a mulher e a fazer com ela longas excursões a cavalo.

Esse manejo, que não podia passar despercebido à sociedade dos veranistas de Petrópolis, criou para Fernando uma reputação muito lisonjeira de homem de espírito e finura e fez achar bastante cômica a atitude enfiada e esquerda do louro sr. de La Motte.

Assim, pois, apesar dos elementos sobreexistentes de perigo - dos quais o mais temível era a amizade de Santinha, a famigerada mulher de Viriato de Andrade - as precauções despertadas por Paulino na sua carta providencial, inteligentemente postas em prática por Fernando, garantiram-lhe a integridade da honra matrimonial e o respeito público à sua bela cabeça loura, em que a luzidia cartola ou o leve chile continuaram de assentar perfeitamente, até esta luminosa e fresca manhã de julho de 1889, em que o belo e invejável casal partia do seu esplêndido chalé da Tijuca para ir a bordo do Orénoque receber o seu querido e saudoso amigo dr. Paulino José de Castro.