Eram cerca de três horas da tarde quando as duas senhoras chegaram em face da pequena porta do atelier.

Era um grande barracão, construído ao centro de um vasto terreno ajardinado, separado da rua por um alto tapamento de tábuas, em meio do qual havia uma portazinha, igualmente de madeira, onde se viam uma placa de metal amarelo com a palavra Barinelli gravada, e uma maçaneta de campainha. Da rua nada se via do que estava para lá do tabuado.

— Que imprudência, Santinha! - murmurou Corina, receosa.

— Imprudência, por quê? São dois moços muitos sérios, e depois há muitas senhoras que vêm aqui. Vou tocar - e Santinha, pegando da maçaneta, puxou-a com força.

Um trilintintim prolongado ouviu-se dentro, ao fundo.

Um minuto após, a porta abria-se, e aparecia um homenzinho de grandes bigodes brancos, que perguntou em português italianado o que desejavam aquelas senhoras.

— O sr. Adolfo Barinelli está?

— Sim, senhora; queiram fazer il piacere de entrar.

Abriu de todo a porta e afastou-se para dentro, para que as damas entrassem; depois tornou a fechar a porta e passou à frente, a conduzi-las.

O barracão de madeira, apesar de baixo, era construído com certa elegância, todo cercado de altas janelas de venezianas, arranjadas de modo a graduarem a luz e o ar. O italiano apressou o passo para avisar seu amo; logo após voltou, e, afastando para um lado o reposteiro japonês de bambus, disse-lhes que fizessem o favor de entrar. Santinha passou primeiro. O escultor veio ao encontro das duas moças, enxugando as mãos numa toalha, que atirou para cima de um busto de gesso. A meia obscuridade da peça turvou-lhes a vista no primeiro momento, de modo a somente distinguirem a figura do artista, que estava fronteiro à porta. A acolhida foi gentilíssima. Santinha apresentou a amiga.

— Conheço muito seu marido, minha senhora, e ele faz-me a honra de considerar-me seu amigo; convidou-me até para uma festa que deu em casa por ocasião da chegada do dr. Paulino de Castro, de quem também sou amigo.

— Ah! E por que não foi?

— Eu, minha senhora, sou um verdadeiro urso; não visito ninguém; não vou a festas. Daqui apenas saio para a academia e para o hotel. Às vezes, quando o calor aperta muito, dou um pulo a Petrópolis, e é tudo. E, depois, que faria eu em uma sala? Não danço, não recito, não canto, não jogo... Fora dos meus bonecos, não sirvo para nada. Mas façam o favor de entrar.

Era um homem de 30 e poucos anos, estatura um pouco abaixo da média, magro, mas forte, com uma formosa cabeça nazarena, cabelo castanho anelado, barba loura, aberta ao meio em duas pontas, encaracoladas pelo constante anediar; a fronte, alta e vasta, era cortada horizontalmente por uma funda ruga direita, que lhe dava uma expressão singular aos olhos. Vestia calças e blusa de brim branco, muito folgadas, e tinha à cabeça um gorro leve de seda azul. Uma figura extremamente simpática e insinuante. Falava devagar, sem dificuldade, mas como quem pondera o que diz.

As duas senhoras deram alguns passos para a frente e só então lobrigaram dois homens de pé, mais para o fundo. Entre eles e as senhoras trocaram-se leves saudações de cabeça. Mas um deles, após um momento de hesitação, adiantou-se, exclamando:

— Oh! E V. Exa, minha senhora? Como tem passado? Queira perdoar-me, não podia ver-lhe a princípio as feições por estar em frente à luz da porta.

Era o poeta dos Rondós e Baladas.

Santinha fê-lo saber à amiga por um ligeiro toque do cotovelo e em seguida apresentou-lho.

— Vieram, decerto, visitar o atelier dos nossos artistas.

— Exatamente; o sr. Adolfo tem-me convidado tantas vezes e com tanta amabilidade!

— Não é porque valha a pena, minha senhora; mas somente por saber que V. Exa. é uma entendedora, e, depois, são tão raras as pessoas que se interessam pela arte no Rio de Janeiro!... Vou-lhes mostrar os meus calungas.

As paredes da sala enorme estavam cobertas de mãos, pés, cabeças, torsos, dedos, flores, folhas, frutos, modelados em gesso ou em barro, pendurados, ou sobre prateleiras, e alguns cobertos de pó, numa confusão e desordem. Uma carinha gorda de criança ria-se entre uma carranca de fauno e uma cabeça dolorosa de mártir, de barba intensa. Junto às paredes, sobre bancos altos, maquetas, em gesso ou greda, de estátuas ou monumentos; um busto esplêndido do imperador, em mármore; uma figurinha de criança, corpo inteiro, em camisa; uma figura colossal de mulher nua, em gesso, sentada graciosamente; era uma estátua destinada a uma fonte pública.

Mas o que desde logo atraía a atenção era uma estátua eqüestre de general, homem e cavalo de tamanho maior que o natural, trabalho já bastante adiantado.

Tinha um movimento e uma vida extraordinários essa estátua; parecia a todo momento que o ginete ia arrombar a parede de tábuas do atelier e saltar à rua com seu cavaleiro heróico cingido aos rins.

O escultor ia mostrando às suas gentis visitantes todos os seus trabalhos, um a um; mas, ao fim de alguns minutos, só tinha ao lado a esposa de Fernando. Santinha havia-se deixado ficar para trás e acompanhava-o ao lado do poeta, que, a propósito de um busto ou fragmento qualquer, emitia um madrigal, ora em prosa do gasto diário, ora em versos pretensiosos.

Tendo feito assim a volta do atelier, passaram pelos aposentos particulares do escultor, à direita, dos quais só se via pela porta aberta e reposteiro apanhado do gabinete ou escritório, que era também sala de receber; e chegaram, por fim, à esquerda, ao fundo, em frente de outra porta, mascarada por um vasto reposteiro de chita grossa de ramagens, completamente solto. Justamente nessa ocasião Santinha perguntava ao artista, elevando a voz:

— E onde trabalha seu irmão?

— É aqui o seu atelier. Está trabalhando com o modelo.

— Oh! Não podemos ver? - tornou ela com açodamento. - Tenho tanta curiosidade de ver pintar a figura do natural! - Mas acrescentou, como em resultado de uma reflexão, com um tom grave:

— Sendo o modelo mulher, bem entendido.

Corina detivera-se, interdita, meio vexada. O escultor deixou-a então para adiantar-se até à porta; apanhou o reposteiro de um lado e, puxando-o um pouco para si, inclinou para dentro o busto e disse:

— Heitor, estão aqui duas senhoras que desejam visitar o teu atelier. Podem entrar?

O afastamento da cortina fazia uma aberta suficiente para deixar ver grande parte da peça às quatro pessoas grupadas em frente.

De costas, sentado num banco de lona, estava o pintor em face da tela, com a paleta e o tento na mão esquerda e manejando o pincel com a outra. Um pouco ao fundo, estendida sobre um canapé, forrado de um estofo oriental de cores vivas, caído em dobras sinuosas sobre o chão, via-se uma mulher nua.

Estava deitada com o dorso para a porta, o busto mais alto, apoiado sobre duas almofadas moles de seda, a cabeça quase ereta, encostada a face esquerda sobre o braço inflexo, a perna direita estendida sobre a esquerda, dobrada de modo a ficar o pé esquerdo de palma, tocando pelos dedos no calcanhar do direito. Do rosto via-se apenas um terço do lado direito.

Uma cabeça loura admirável; os cabelos, muito finos e sedosos mas pouco bastos, estavam suspensos à grega, juntando-se ao alto numa rodilha leve, e deixando soltos, quase vaporosos, sobre a nuca muito branca, os fios novos, crespos, que um raio de sol atingia de ouro fluido. A orelha, transparente à luz, era uma mimosa concha de nácar. Um corpo ainda moço, de formas esbeltas e carnes firmes, com umas pernas longas e finas mas de contornos perfeitos, como as de Diana, a caçadora; e naquela pose abandonada havia, apesar da plena nudez, algo de casto, algo de sagrado, como em todas as belas criações do bom Deus.

O pintor virou-se para falar ao irmão; com o ruído, o modelo voltou igualmente o rosto, sem mexer com o corpo; sorriu-se para o escultor, mas, quando lobrigou a cabeça de Santinha, que a adiantara, curiosa, teve um movimento instintivo para cobrir-se, tateou em torno à procura de um pano e não o encontrando à mão virou-se inteiramente de costas, ocultando a cara nos braços.

O pintor ergueu-se, atirou sobre o modelo uma colcha vermelha, que estava no chão e que lhe ocultou as pernas, só deixando o busto a descoberto; e foi receber as visitas. Entraram todos.

— É curioso - observou em voz baixa o escultor ao poeta, retendo-o um momento. - Esta mulher, que se conserva nua à vista dos homens que aqui entram, reparou como lhe veio o pudor e procurou cobrir-se quando viu as senhoras?

— É verdade; é realmente muito curioso.

A figura estava toda esboçada sobre a tela, em alguns pontos mais acentuadamente que em outros, e completamente pintada nos membros inferiores, cuja carnação cintilava, rosada, com leves tons ambarinos.

Santinha fez grandes gabos ao trabalho, visivelmente excitada.

Ocuparam-se ainda uns minutos examinando os numerosos quadros, esboços, estudos e desenhos, apostos às paredes-cabeças, paisagens, natureza morta. Corina não pronunciava uma palavra; tinha as faces vermelhas e um brilho febril nos olhos, que não se despegavam do dorso nu do modelo. A visita foi muito curta em atenção ao trabalho do artista, que os visitantes não queriam interromper.

— Este modelo é a Ada? - perguntou o poeta ao escultor.

— É Não temos outro. Fora nosso modelo em Roma; veio ao Brasil como corista da Companhia Ferrari e, tendo aqui ficado, presta-se a vir posar para nós algumas vezes, quando os seus afazeres lho permitem.

— Que mulher sem-vergonha! - segredava Corina à amiga.

— Por quê? Se é a sua profissão! - respondeu esta muito naturalmente.

Concluída a visita, convidou-as o escultor a descansarem um pouco na sua "toca", que assim chamava ao gabinete. Entraram, mas foi uma exclamação geral de surpresa quando lá depararam o dr. Paulino folheando o Monde Illustré. A surpresa deste ao ver entrar as duas mulheres não foi menor que a delas ao encontrá-lo.

Um quarto de hora depois, saía o médico com elas.

Na porta, no rumor confuso das vozes trocando cumprimentos e despedidas, ouviu ele distintamente Santinha segredar ao João Ferry: "Amanhã, às duas, Passeio Público", e o poeta responder-lhe: "Sem falta: obrigado".

Era uma quinta-feira, o dia da partida de voltarete de Fernando em casa do corretor Paranhos. Paulino, em execução do plano em que assentara na véspera, resolvera jantar na cidade, para evitar o tête-á-tête com a esposa do amigo. Mas... o homem propõe... e a mulher dispõe.

Santinha, convidada por dona Sinhá a subir com ela à Tijuca, recusou, alegando esperar visita naquela noite; mas segredou-lhe ao ouvido: "Não quero perturbar vocês: hoje é quinta-feira", e separou-se deles nó largo de S. Francisco.

Paulino conduziu Corina até ao bonde, e despediu-se, pretextando estar comprometido para a noite; mas Corina lhe disse: "Que mau! Tem coragem para deixar-me sozinha naquele ermo!" com expressão tão doce, tão enfeitiçante, que ele cedeu, pensando: "Mas recolho-me cedo".

Pois recolheu-se mais tarde que de costume. Passearam na chácara, fizeram música, recitaram versos, folhearam álbuns de fotografias, lado a lado; conversaram artes, letras, modas.

As 11 horas Paulino, que o tinir argentino do relógio batendo as pancadas, parecia haver despertado, ergueu-se, numa surpresa mesclada de desgosto, e pediu licença para recolher-se. A casa, apesar de arder ainda o gás em muitos aposentos, estava silenciosa, adormecida já.

— Vou acompanhá-lo à sua casa, para lhe pagar a gentileza de haver-me acompanhado à minha - disse Corina, erguendo-se da cadeirinha de laca.

— Não consinto, pelo amor de Deus! - acudiu Paulino, num temor vago, como diante da iminência de um grave perigo.

— Por quê? - inquiriu ela, naturalmente.

— Porque... a noite está fresca... pode resfriar-se... é tão tarde... tem de voltar sozinha...

— Lá por isso não, porque eu levo a Maurícia.

Tocou o tímpano; a velha mucama apareceu logo; pediu-lhe uma mantilha, deu-lhe ordem de acompanhá-la até ao Mirante (era o nome por que os criados conheciam o belvedere) e saíram pouco depois.

A noite estava tão clara, tão perfumada, tão calma como a da véspera. Era o mesmo amavio irresistível, a mesma irresistível poesia, escorrendo no luar, suspirando nos murmúrios vagos das folhas, exalando-se em aromas fortes das "flores de baile", dos jasmineiros, dos rosais, das madressilvas...

Corina apoiou-se languidamente ao braço do médico e foram subindo lentamente o aclive, em silêncio. A moça sentia no braço a repercussão surda e precipite das pancadas do coração do seu companheiro e tremer-lhe o braço de vez em quando.

Chegaram por fim. O médico abriu a porta, acendeu o bico de gás que havia logo à entrada e estendeu a mão para despedir-se.

— Espere, vou levá-lo até acima; quero ver se lhe arrumaram bem o gabinete e o quarto...

Maurícia estava do lado de fora, encostada a um dos batentes.

— Está louca? E Maurícia? E Alfred?

— Alfred ainda não voltou da rua. A rapariga subirá também. Sobe, Maurícia.

E galgou trefegamente as escadas em espiral, de degraus altos e estreitos. Paulino seguiu-a, apoiando-se ao corrimão, cambaleando como um ébrio.

Ao entrar na saleta, às escuras, sentiu a respiração ofegante da moça, fatigada da ascensão; tirou a caixa de fósforos para acender o gás, mas estava tão trêmulo das mãos que a caixinha caiu ao chão. Caminhando e procurando-a com o pé, esbarrou com a moça no centro da saleta. Deu um pequeno grito e, como lhe sentisse o corpo vacilar, amparou-a nos braços.

— Paulino - murmurou a voz de Corina, trêmula, entrecortada de emoção, bafejando um hálito de fogo.

Tolheram-lhe a voz sobre os lábios outros lábios, igualmente secos e ardentes.

Durou tudo isso alguns segundos.

Quando a chama do gás rebentou na arandela, viu Corina sentada numa cadeira, com a cabeça nas mãos e os cotovelos sobre a mesa, e a mucama em pé, junto à porta. O médico disfarçou a comoção indo depor o chapéu e a bengala a um canto e graduando a luz.

Corina tirou logo a face das mãos, ergueu-se, passou uma vista de olhos em torno e exclamou, afetando calma e indiferença:

— Está tudo em ordem. Agora que o deixo em casa, vou-me embora. Muito boa noite - e estendeu-lhe a mão, de frente, sorrindo. Paulino apertou-lha frouxamente e sentiu-a escaldar a dele. Mas não teve coragem de encará-la nos olhos ardentes, abertos, fincados sobre os dele: fechou-os como se fosse desmaiar.

Depois um frufrulhar de saias, um afastar de passos leves para baixo, o bater de uma porta... e mais nada. A noite continuava majestosamente, banhada de luar, no seu curso misterioso, guardando no seio agonias de delíquios, soluços de desespero e gritos de paixão.