XLVI

Confidência


Uma vez, uma só, meiga mulher amada,
No meu, teu braço polido
Se pousou (a minh’alma ainda está lembrada
D’esse momento querido);

Era noite, e no ceu brilhava a lua cheia,
Qual medalha fulgidia,
Banhando com a luz do ciarão que semeia
A cidade que dormia.

Via a gente passar, em busca de guarida,
Os gatos furtivamente,
E um ou outro maltes, como sombra querida,
A seguir-nos lentamente.

De súbito, quebrando aquela intimidade
Que a luz do luar protegia,
De ti, o bandolim de estranha suavidade.
Ó guitarra da alegria,

De ti, clara e gazil como alegre fanfarra
A tocar uma alvorada,
Uma nota surdiu, lamentosa e bizarra,
Hesitante e acanhada,

Como um ser infeliz, como aleijão imundo
Da família despresado,
A quem, para o furtar aos olhares do mundo,
Houvessem emparedado!

Essa nota, anjo meu, dizia, a lamentar-se:
— Nada na terra é constante,
«E em tudo se traduz, sob qualquer disfarce,
«Um egoismo revoltante;

«Que triste condição é ser mulher formosa,
«E que trabalho banal!
«Como artista de circo, em dansa voluptuosa,
«Com um riso artificial;

«Alimentar paixões, é louco empreendimento,
«Porque o amor como a beldade
«Só duram... ’té que os leva um dia o Esquecimento
«Ao seio da Eternidade!»

Muitas vezes evoco a noite inegualada,
O silêncio, a solidão,
E aquela confidencia horrivel murmurada,
N’um soluço infantil, pelo teu coração.