História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (grafia atualizada-a)/Tomo III

ÍNDICE

LIVRO VII

Multiplicação das Inquisições pelo reino — Vantagens dos cristãos-novos em Roma. — Enviatura do núncio Lipomano, coadjutor de Bergamo. Instruções singulares. — A corte de D. João III. — Estado moral e econômico do reino naquela época. Cartas verdadeiras ou supostas do cardeal da Silva e dos agentes dos cristãos-novos apreendidas no Alemtejo. Proibição ao núncio de transpor a fronteira. — Francisco Botelho mandado a Roma com as cartas apreendidas, e tentativas de mediação de Carlos V. Explicações do papa, e missão extraordinária de Pier Domenico a Portugal. — O núncio admitido no reino. — Motivos para nova mudança de política na cúria. — A Inquisição estabelecida em Roma. — Desvantagens dos cristãos-novos e dificuldades que se lhes suscitam. Perseguição do procurador dos hebreus, Diogo Fernandes Neto. — Situação embaraçada de D. Miguel da Silva. — Negociações ulteriores. Carácter vergonhoso dessas negociações. — Os hebreus portugueses preparam-se para tentar um esforço extremo contra a Inquisição

LIVRO VIII

Novos elementos de defesa preparados pelos agentes dos hebreus em Roma — Clamores públicos na cúria. Coleção de documentos contra a Inquisição. Memorial dirigido ao cardeal Farnese. — Perseguição popular contra os cristãos-novos. Quadro dos abusos e excessos das diversas Inquisições de Portugal desde 1540 até 1544. Resolve-se o papa a intervir na questão do modo mais eficaz. Escolha de um novo núncio para substituir o bispo de Bergamo. A corte de Lisboa, instruída das disposições da cúria romana, prepara-se para a contenda.

LIVRO IX

Proibe-se a entrada no reino ao núncio Ricci. Explicações e promessas deste. Dá-se-lhe a permissão de entrar, debaixo de certas condições restritas, que ele não aceita. Breve de 22 de setembro de 1544 mandando suspender a Inquisição. Procedimento audaz do núncio Lipomano. — Enviatura de Simão da Veiga a Roma. Carta d’elrei a Paulo III. — Suspeitas contra Baltazar de Faria. Expedientes para conciliar os ânimos na cúria romana. — Breve de 16 de junho de 1545 em resposta à carta d’elrei. — Renovação das negociações amigáveis. Transação. — Entrada do núncio Ricci. Procedimento irritante deste em Lisboa. Apresenta a elrei o breve de 16 de junho. Réplica frouxa àquele singular documento. — Novas fases da luta. Propostas e acordos ignóbeis. Dificuldades procedidas da parcialidade ostensiva de Ricci a favor dos cristãos-novos. Resoluções apresentadas mutuamente pelas duas cortes acerca do estabelecimento definitivo da Inquisição. — Simão da Veiga parte para Portugal com a última decisão do papa, e morre no caminho. — Elrei recebe mal aquela decisão, não na substância mas nos acidentes. Nota enérgica ao núncio, e demonstrações de desgosto dirigidas a Baltazar de Faria. — Parecer notável de quatro cristãos-novos dado a elrei sobre o modo de remover as resistências ao estabelecimento do tribunal da fé. Os inquisidores rebatem as propostas dos quatro hebreus. — Probabilidades de um triunfo completo para os fautores da Inquisição

LIVRO X

Últimas resoluções do papa sobre o perdão dos cristãos-novos e organização definitiva do tribunal da fé, que Baltazar de Faria aceita ad referendum. Instrução de Farnese ao núncio Ricci acerca da inteligência daquelas resoluções e acerca do preço da concessão. — Pouco satisfeito das restrições que ainda se lhe impunham, elrei revalida a lei de 1535, proibindo à gente da nação a saída do reino, e comunica ao seu agente em Roma as alterações que aceita. — Faria abstém-se de propor estas últimas e insiste na concessão pura e simples. Motivos que para isso havia. — A corte de Roma resolve-se a enviar a Portugal o cavaleiro Ugolino com as bulas e breves redigidos na forma das decisões tomadas. Instruções secretas que ele recebe. — Mútuos receios das duas cortes. — Procedimento encontrado de Faria em Roma e do núncio Ricci em Lisboa. — O bispo do Porto D. Fr. Balthasar Limpo em Itália. Intervenção deste no negócio do tribunal da fé. Temor que o prelado português incute pela audácia da sua linguagem. A cúria cede gradualmente. — Partida de Ugolino para Lisboa. Diplomas pontifícios trazidos por ele. A Inquisição é instituída na sua forma mais completa pela bula de 16 de julho de 1547. — Termina-se a questão das rendas de D. Miguel da Silva, e a administração da diocese de Viseu é entregue a Farnese. — Cálculo incompleto do que a Inquisição custou ao país. — Situação e procedimento do cardeal de Viseu. — Idéia rápida da ulterior história da Inquisição. Testemunho insuspeito do bispo de Chisamo. Epílogo.

Nota à edição definitiva

Índice analítico de matérias

Notas

LIVRO VII

Multiplicação das Inquisições pelo reino. — Vantagens dos cristãos-novos em Roma. — Enviatura do núncio Lipomano coadjutor de Bergamo. Instruções singulares. — A corte de D. João III. — Estado moral e econômico do reino naquela época. Cartas verdadeiras ou supostas do cardeal da Silva e dos agentes dos cristãos-novos apreendidas no Alemtejo. Proibição ao núncio de transpor a fronteira. — Francisco Botelho mandado a Roma com as cartas apreendidas, e tentativas de mediação de Carlos V. Explicações do papa, e missão extraordinária de Pier Domenico a Portugal. — O núncio admitido no reino. — Motivos para nova mudança de política na cúria. — A Inquisição estabelecida em Roma. — Desvantagens dos cristãos-novos e dificuldades que se lhes suscitam. Perseguição do procurador dos hebreus Diogo Fernandes Neto. — Situação embaraçada de D. Miguel da Silva. — Negociações ulteriores. Carácter vergonhoso dessas negociações. — Os hebreus portugueses preparam-se para tentar um esforço extremo contra a Inquisição.

Ao passo que ocorriam os sucessos narrados no fim do livro antecedente, sucessos que obrigavam o governo português a mandar sair de Roma os seus embaixadores, a Inquisição, fortificada pela nomeação do infante D. Henrique para seu chefe, e pela situação vantajosa em que as negociações de D. Pedro Mascarenhas a haviam colocado, manifestava, enfim, a sua feroz energia, contida até aí pelo carácter moderado do bispo de Ceuta e de uma parte dos membros do conselho geral, mas, talvez, ainda mais pelo problemático da sua existência futura. Assentada agora em bases mais sólidas, as instâncias inferiores daquela terrível instituição iam-se multiplicando, e seis tribunais da fé, sucessivamente criados, levavam a perseguição e o terror a todos os ângulos do reino. Era o principal a Inquisição de Lisboa, tendo à sua frente João de Mello, o mais resoluto adversário dos cristãos-novos e que se podia considerar como o chefe verdadeiro dos inquisidores. A de Évora dominava pelo Alemtejo e pelo Algarve. À de Coimbra deu-se jurisdição nesta diocese e na da Guarda, ao passo que ficou pertencendo à do Porto, não só a respectiva diocese, mas também o arcebispado de Braga. A autoridade do inquisidor de Lamego estendeu-se a todo aquele bispado e ao de Viseu. Finalmente, em Thomar, o hieronimita Fr. Antonio de Lisboa, reformador da ordem de Cristo, assumindo de seu motu-proprio as funções inquisitoriais, foi confirmado no cargo pelo infante, estabelecendo-se assim no isento da ordem um tribunal particular. Cada uma das Inquisições de Espanha pesava sobre uma extensão de território não inferior à área de Portugal; e todavia este país, que retardara por algum tempo as cenas de atroz perseguição de que era teatro, havia tanto, o resto da Península, via afinal sextuplicados no seu seio, em proporções dos outros reinos da Espanha, os instrumentos e recursos da intolerância religiosa(530).

Deixaremos para mais tarde o quadro das violências de todo o gênero que assinalaram os primeiros anos do longo período durante o qual o infante D. Henrique exerceu o cargo de supremo inquisidor. Esse quadro, no qual poderemos resumir em breve espaço multiplicados horrores, dar-nos-á uma idéia perfeita do estado moral daquela época, e do que é a aliança do fanatismo e do poder absoluto, ambos livres para exercerem ação ilimitada. Antes de satisfazer nesta parte a curiosidade do leitor, pede a boa ordem que sigamos as fases da luta em Roma desde que nela interveio o cardeal da Silva, intervenção, a que em parte se deveu, talvez, a recrudescência de barbaridades que, durante os anos de 1542 a 1544, assinalaram o procedimento da Inquisição.

Vimos que, em resultado da porfiosa insistência de Christovam de Sousa, Paulo III conviera em sobrestar na enviatura do núncio e acedera com os cardeais influentes à idéia de mandar um comissário sem carácter diplomático examinar os atos dos inquisidores. Com a retirada do embaixador, e continuando as diligências dos cristãos novos, protegidos por D. Miguel da Silva, essa idéia devia ser e foi abandonada para se voltar à anterior decisão sobre a enviatura de um núncio. Pero ou Pier Domenico, o agente ordinário d’elrei, homem perfeitamente conhecedor das cousas de Roma, suscitava os embaraços que a inferioridade da sua situação lhe consentia opor aos esforços dos conversos. Tinha-o habilitado o infante D. Henrique com informações acerca dos crimes religiosos perpetrados em Portugal, que, no entender dele, legitimavam a severidade da Inquisição. Estes crimes, verdadeiros ou supostos, eram apresentados com um carácter de plausibilidade que devia fazer vacilar os ânimos. Naqueles tempos, ainda as delações de quaisquer presos acerca dos seus companheiros de crime ou d’infortúnio, delações ordinariamente feitas entre atrozes tratos, e bem assim as confissões extorquidas dos réus nas polés e nos potros se consideravam como meios de achar a verdade ou para melhor dizer, de condenar com aparências plausíveis o indivíduo já mentalmente condenado pelos seus juízes. A Inquisição recorrera largamente a este arbítrio. Por isso podia alegar em seu abono que a recrudescência da perseguição fora santificada pelos resultados, visto que não era já pelas denúncias e testemunhos de cristãos-velhos que se mostrava a existência em larga escala da heresia judaica, mas sim pelos depoimentos e confissões dos próprios cristãos-novos encarcerados. Esses depoimentos e confissões tinham aclarado mistérios abomináveis, exatamente aqueles que eram necessários para se absolverem os furores da intolerância. Citava-se como exemplo um sapateiro de Setúbal, que, declarando-se Messias, soubera imbair com falsos milagres muitos cristãos-novos, levando homens distintos por saber ou riqueza a seguirem-no e a adorarem-no. Apontavam-se outros que, revestidos do carácter de profetas, reconduziam às crenças do mosaísmo grande número de cristãos-novos com prédicas feitas em assembléias ocultas; e o mais era que os herpes da ruim doutrina começavam também a lavrar pelos cristãos-velhos. A audácia dos judeus ia tão longe, que na própria capital se descobriu uma sinagoga(531). Era, estribado nestes fatos de que dera conhecimento ao papa e aos cardeais influentes, que Pier Domenico tentara com arte demorar o restabelecimento da nunciatura em Portugal ou, pelo menos, fazer modificar as instruções que se houvessem de dar acerca da Inquisição ao futuro representante pontifício(532).

A enviatura deste era, porém, uma resolução tomada definitivamente. O fim ostensivo daquela missão consistia em tratar os assuntos relativos à futura reunião do concílio geral; mas, na realidade, a matéria principal dela versava sobre a questão do bispo de Viseu e acerca das queixas dos cristãos-novos(533). Luiz Lipomano, bispo metonense e coadjutor de Bergamo, fora o personagem escolhido para tão difícil encargo. O crédito em que o papa dizia tê-lo era o de homem pio, instruído e modesto(534); mas a opinião do embaixador Christovam de Sousa estava longe de lhe ser favorável. A escolha de Luiz Lipomano fora feita residindo ele ainda em Roma, e o leitor estará lembrado de que, segundo a confissão do próprio Paulo III, o bispo coadjutor de Bergamo ajustara receber em Portugal uma pensão dos cristãos-novos(535). Assim, nas faces cavadas, nos ademanes devotos, nas exterioridades austeras do prelado italiano, Christovam de Sousa não via senão a taboleta ridícula de um hipócrita(536). Não cessavam de insistir na sua partida os agentes dos conversos, tanto porque nele tinham confiança, como porque o papa lhes prometera (ao mesmo tempo que negociava o contrário com Christovam de Sousa) mandar cumprir pelo novo núncio a bula declaratória, que Capodiferro não pusera em execução, e bem assim expedir outra em que se abrogassem perpetuamente os confiscos nos crimes d’heresia, dando-se a Luiz Lipomano poderes suficientes para que as resoluções da santa sé não fossem mais uma vez iludidas(537).

O novo núncio partiu, de feito, de Roma, no meado de junho de 1542, mas sem trazer as duas bulas prometidas, com o pretexto de que as fórmulas da chancelaria, indispensáveis para a expedição daqueles diplomas, retardariam a sua partida, aliás tão urgente(538). As causas verdadeiras eram, porém, outras: eram não só a consideração dos fatos narrados na correspondência do infante inquisidor-mor com Pier Domenico, fatos que este não cessava de representar ao papa, acompanhados de largas ponderações, mas também e principalmente a situação delicada em que se achava a corte de Roma para com D. João III. O modo como o embaixador português se havia despedido; o silêncio com que respondera na audiência final a todas as tentativas de Paulo III para o excitar a uma daquelas cenas violentas a que estava afeito da parte dos ministros portugueses quando ocorriam negócios graves; a inutilidade das carícias a que depois recorrera para o mover a dar ou pedir explicações; tudo fizera viva impressão no ânimo do papa, inquieto com a resolução extrema que tomara o rei de Portugal(539). Estas circunstâncias impunham à cúria romana uma prudente reserva e exigiam não vulgar astúcia no coadjutor de Bergamo, para o qual se redigiram instruções amplas, que lhe servissem de guia no desempenho da sua missão. Os apontamentos para essas instruções, que ainda existem, são um dos monumentos mais importantes para conhecermos a época de D. João III, a sua corte, os personagens mais influentes nela, muitos indivíduos notáveis do país naquela conjuntura e, finalmente, a política de Roma. Escritas para se conservarem secretas e redigidas com o intuito de ilustrarem ao mesmo tempo o papa e o núncio, não se deve supor que na sua redação houvesse idéia de iludir alguém. A verdade era o que em semelhante papel convinha sobretudo, e não é de crer que a corte mais astuta da Europa se enganasse na apreciação dos homens e dos fatos, que tanto lhe importava avaliar exatamente. Resumimos, por isso, aqui a matéria daqueles apontamentos, que por certo devem excitar a curiosidade do leitor(540).

Depois de se narrarem a origem e os progressos da monarquia portuguesa, em harmonia com as idéias históricas daquele tempo, indicavam-se os favores e benefícios recebidos da santa sé pela coroa de Portugal, e particularmente as abundantes fontes de riqueza que possuía o clero deste país, fontes que os papas mais de uma vez tinham em grande parte feito derivar para o fisco. Recordava-se o antigo feudo à igreja de Roma e, até, se explicava pelo favor da cúria a gloriosa revolução do mestre d’Aviz, que, bastardo e membro de uma ordem religiosa, não teria podido sem esse favor obter a coroa, e deixá-la a um herdeiro legítimo. Assim se habilitava o núncio para invocar convenientemente antigos direitos e um dever, porventura, mais restrito, o da gratidão. As instruções referiam-se depois aos indivíduos principais com quem o bispo de Bergamo tinha de tratar e ao estado das cousas que em Portugal podiam interessar à corte de Roma. O infante inquisidor-mor — dizia-se-lhe aí — apesar da sua má vontade à sé apostólica, representava um tal papel de santimônia, que, para se conservar em carácter, teria de se mostrar obediente, bom ou mau grado seu. Convinha, pois, obrigá-lo, misturando-se a aspereza com a brandura (uma vez que o papa não quisesse privá-lo da dignidade de inquisidor-mor), a tirar dispensa de idade, a pedir absolvição do passado e a rever e ratificar depois os processos findos, cousa que se reputava indispensável à dignidade do pontífice. Qualificava-se o infante D. Luiz como homem violento, que influia assaz nos conselhos d’elrei seu irmão pela audácia com que intervinha nos negócios públicos. Tanto ele como o infante D. Henrique queriam ser tratados com tanto acatamento como elrei. As informações acerca da rainha D. Catharina representavam-na como não menos ambiciosa de influência política do que D. Luiz, ambição que ela sabia conciliar com os extremos da devoção. Desenhando-se o carácter dos principais prelados, descrevia-se o arcebispo de Lisboa, capelão-mor e parente d’elrei, como um velho fidalgo de boa índole, bem morigerado e tímido, a quem o soberano concedia a honra da sua intimidade. O prelado de Coimbra, talvez o mais antigo bispo da igreja católica, passava por homem honrado, vivendo inteiramente fora da corte, e era fácil de dobrar pelo temor da santa sé. O da Guarda, pessoa de má vida, menosprezava Roma, mas não tinha importância alguma, porque também vivia afastado da corte. O do Porto, frade carmelita e confessor da rainha, mostrava-se inimigo da cúria romana, falando contra ela nas conversações e até no púlpito. Apesar, porém, dessas ostentações e do seu valimento, passava por muito medroso. O de Lamego, frade loio e inquisidor na Beira, era um indivíduo de curta capacidade e de mediocre instrução, porém, não de má índole. Dos frades influentes no paço falavam as instruções com mais individuação. A idéia que na cúria se fazia do futuro bispo de Coimbra, Fr. João Soares, então simples augustiniano, já anteriormente vimos qual fosse(541). Seguiam-se na apreciação dos informantes outros dous augustinianos, Fr. Francisco de Vila-franca e Fr. Luiz de Montoia, ambos castelhanos e pregadores de voga, sobretudo o Vila-franca. O Montoia passava por homem de vida mais ajustada que o Vila-franca, mas este dominava-o inteiramente. Gozavam ambos de grandes créditos para com o rei e pessoas poderosas. Outro frade, Fr. Jerônimo de Padilha(542), dominicano espanhol, influía na corte de Portugal. Era homem de letras e pregador, mas amigo de novidades e audaz. Praticara violências como reformador dos dominicanos, desobedecendo aos mandados apostólicos, pelo que fora excomungado; mas continuara a exercer o seu ministério, com desprezo das censuras. No meio, finalmente, destes prelados e regulares, mais ou menos mundanos, distinguia-se um hieronimita valenciano, cuja vida passava por imaculada, e cuja austera franqueza no confessionário era proverbial, fossem quais fossem os penitentes, cousa — observavam as instruções — rara entre frades. Confessor d’elrei, fora dispensado daquele espinhoso ministério, por não ter querido absolvê-lo uma vez, inconveniente cuja repetição D. João III evitara, confiando d’aí avante o cuidado da própria salvação à consciência mais larga de Fr. João Soares.

Dos fidalgos, dous havia, contra os quais cumpria que se premunisse o novo núncio. Eram eles o conde de Vimioso e o conde da Castanheira, D. Antonio de Athayde, principal valido do rei. A idéia que acerca de D. Antonio se inculcava a Luiz Lipomano consistia em que devia considerá-lo como um perverso com máscara de santo, meio hipócrita pelo qual se tornava aceito aos frades que de contínuo rodeavam elrei. Por intervenção destes, tanto ele como o Vimioso tinham adquirido muitos bens eclesiásticos. Era uma circunstância essa que os reduziria à obediência, quando o núncio quisesse fazer-se respeitar por eles.

Naquela espécie de revista política e moral falava-se largamente dos tribunais superiores, cuja autoridade se exagerava, e contra cuja existência cumpria que o núncio mostrasse firmeza. Citavam-se as leis do reino contrárias à liberdade eclesiástica e aos cânones, e indicava-se como exemplo dos abusos intoleráveis que se praticavam na administração da justiça o serem obrigados os eclesiásticos exemptos da jurisdição ordinária a responder perante um juiz secular, o corregedor da corte, de sorte que os clérigos obscuros ficavam gozando do seu foro, enquanto os privilegiados, os que eram eximidos por bulas pontifícias da jurisdição do respectivo diocesano, se achavam obrigados a litigar perante os magistrados civis (inimigos naturais dos padres) e sem apelação para o papa. Ao mesmo tempo, esses juízes eram comendadores e cavaleiros das ordens militares, pertencendo, em rigor, por semelhante título, ao corpo eclesiástico, e todavia julgando em causas crimes contra as disposições canônicas. O próprio foro clerical se havia tornado uma cousa vã. Quando nele se resolvia algum negócio contra a vontade do rei, expedia-se uma dessas chamadas cartas de câmara, pela qual o pobre ministro eclesiástico era mandado vir à corte falar com sua alteza sobre matérias de seu serviço. Mas o rei nunca lhe falava nem o despedia, de modo que muitos aí consumiam sua fazenda ou aí morriam, sem chegarem a conclusão alguma, sorte que esperava igualmente a quaisquer membros da clerezia que mantivessem as imunidades, desobedecendo aos juízes leigos. Se queriam escapar a essa cruel servidão, cumpria aos primeiros revogar as próprias decisões; aos segundos sujeitar-se. A Mesa da Consciência, então instituída, era um novo escândalo que surgia. Criado como corpo consultivo para o monarca saber quais graças tinha em consciência obrigação de conceder ou de negar, tornara-se desde logo em tribunal, tribunal onde se quebravam todos os foros do clero e se dispunha, em contravenção das leis da igreja e das resoluções pontifícias, das cousas eclesiásticas. Outros excessos do governo português que feriam a autoridade da sé apostólica eram o ter abandonado aos muçulmanos Çafim e Azamor, o enviar por conta própria ao Oriente carregações de bronze, que os príncipes infiéis convertiam em artilheria, e o haver celebrado, conforme se dizia, paz com os turcos, para manter a qual se lhes pagariam páreas no valor de cem mil ducados anuais, tendo-se incluído nos benefícios da convenção dos estados de Carlos V, mas omitindo-se os do pontífice, agora que a sua situação era mais crítica, e isto sem dar conta de cousa alguma à sé apostólica, de quem aliás se impetrara permissão para se poder negociar com a Turquia.

O estado político e econômico de Portugal naquela época é descrito na minuta das instruções ao bispo de Bergamo com as mais sombrias cores(543). A realidade dos fatos era que o país se achava reduzido a tais termos, que se podia dizer quase exausto de forças. O rei, além de estar pobríssimo, com uma enorme dívida pública dentro e fora do reino, e de ser obrigado a pagar avultadíssimos juros, era detestado pelo povo e ainda mais pela nobreza; não porque fosse de má índole, mas em razão dos conselhos que lhe davam e das obras que faziam os que o rodeavam. As questões com França, por causa das navegações e conquistas e de alguns negócios de família, em que andava envolvido o imperador Carlos V, toldavam tristemente os horizontes da política externa, a ponto que ameaçavam Portugal da última ruína. Isto, que os homens de bem e sisudos previam e temiam, não mostrava prevê-lo nem temê-lo elrei. O seu sistema era não recuar diante de nenhuma consideração, nem perigo, e opor a tudo vãos discursos, pensando aterrar com bravatas os adversários. Esse deplorável sistema não era, porém, senão o resultado das sugestões dos que o cercavam. Indicava-se por isso ao bispo coadjutor a necessidade de desprezar todos os feros da corte de Lisboa nas questões em que convinha mostrar energia, e nesta parte apelava-se para o testemunho dos núncios passados. Roma tinha, de mais, a seu favor três circunstâncias: um clero numeroso, a índole fanática da plebe, e a própria hipocrisia do governo. Sobre o modo de tirar vantagem destes diversos elementos é assaz curioso um parágrafo das instruções: «Elrei e seus irmãos — dizia-se aí —, quer o fato provenha dos frades, com quem tratam de contínuo e de cujas letras e consciência se fiam, quer de alguns malvados com quem se aconselham, nunca mostraram boa vontade às cousas de Roma. Não deixam por isso de pô-la nas nuvens, quando obtêm alguma concessão, para fazerem respeitar esta. Diz-se que a razão principal porque repugnam à nunciatura é porque nunca lhes faltam bons desejos de usurpar a jurisdição eclesiástica, não tanto para se apoderarem dos bens da igreja, como para mandarem em tudo, pondo e tirando prelados e preladas das corporações regulares, segundo as suas conveniências, chamando os clérigos aos tribunais civis, com outras exorbitâncias análogas. Todavia não há a menor dúvida de que se podem opor barreiras a estes desconcertos, vista a ostentação que fazem de não procederem senão por conselho de religiosos, e por serviço de Deus e de sua santidade(544), e atenta a índole do povo português, tão obediente à sé apostólica e tão religioso, com o qual seria arriscado gracejar em tais matérias. Com estes dous elementos, havendo núncio devidamente autorizado, o governo ver-se-á constrangido a seguir o bom caminho, salvo se os que rodeiam o soberano perceberem que lhes têm medo, porque nesse caso usurparão a Roma tudo o que puderem, enquanto lh’o tolerarem. O que é certo é que a nobreza e grande parte do povo não podem de modo algum desembaraçar-se das mãos da cúria romana nem moverem-se independentes dela; porque quase todos, ou por comendas, ou por benefícios, ou por bens emprazados, ou por parentes clérigos, comem réditos eclesiásticos com bulas e provisões pontifícias, sem as quais ninguém se julga seguro, do que podem dar testemunho os núncios anteriores e a Penitenciaria, não havendo a mais pequena dúvida sobre qualquer objeto, acerca da qual não requeiram provimentos e despachos da chancelaria apostólica»

Apreciados assim os fatos, o redator daqueles apontamentos tirava-lhes as conseqüências práticas. Suposta a decadência do país, a habilidade consistia em aproveitar as circunstâncias para da própria miséria pública extrair ouro. Os alvitres eram muitos, e deles indicaremos os que parecem mais notáveis. Os comendadores das ordens militares dentro de oito meses depois de providos eram obrigados a tirar breves de confirmação e a pagar os emolumentos da câmara apostólica. A maior parte deles não o tinham feito, e as rendas de todo esse tempo pertenciam por direito à santa sé. Era uma mina para explorar que valia mais de cem mil escudos. A união de rendimentos de igrejas às comendas da ordem de Cristo, em tempo d’elrei D. Manuel, fora concedida com a limitação de não excederem esses rendimentos, distraídos da sua legítima aplicação, a vinte mil ducados, e todavia excediam agora a oitenta mil. Querendo o papa revogar aquela união, o clero hierárquico pagaria uma composição avultadíssima, e não querendo senão reduzir as cousas aos termos da concessão primitiva, ainda assim o clero curado pagaria uma grossa quantia ao papa. Lembrava-se também que se poderia conceder aos clérigos a faculdade absoluta de testarem pagando uns tantos por cento à camara apostólica. Era cousa de render muito dinheiro; porque se removeriam os inconvenientes e questões que se levantavam sobre as heranças dos eclesiásticos, e assim os herdeiros sofreriam de boa vontade o encargo para evitarem demandas e vexames do fisco. Sendo enorme pecado subministrar ou vender aos infiéis armas ou munições para hostilizarem os cristãos, e tendo a igreja fulminado terríveis censuras contra qualquer tráfico de tal ordem, sendo também certo que a exportação de bronze para o Oriente, feita por conta da coroa de Portugal, dera em resultado haver já príncipes asiáticos que tinham mais numerosa artilheria do que o próprio imperador ou que elrei de França, era evidente que destas circunstâncias se aufeririam extraordinários proventos, se fossem habilmente aproveitadas. O negócio do bronze era assaz importante para a coroa portuguesa, e o dano que dele provinha ao cristianismo grandíssimo e indubitável. O perdão quanto ao passado não se podia vender barato, e um grande mal para a igreja católica não se podia autorizar por insignificante preço. Era necessário que saísse cara à corte de Lisboa a remissão da culpa cometida, e não menos o habilitar-se para continuar num comércio pecaminoso, que assim se transformaria em excelente veniaga para a cúria. Outro alvitre se oferecia como de não menor interesse. Havendo em Portugal muitos prazos eclesiásticos em vidas, e desejando vivamente os enfiteutas, ou colonos convertê-los em fateosins perpétuos, o núncio devia ser autorizado para essa conversão. Concedendo-se, o colono pagaria de bom grado qualquer taxa que se lhe exigisse pelo benefício. Se, porém, o indivíduo ou corporação a quem o prédio pertencesse se opusesse a isso, também se podia negar a conversão, conforme o que rendesse mais; porque os diretos senhorios não deveriam obter de graça a certeza de consolidarem o domínio útil no fim das vidas em que andasse o prazo. Afigurava-se este negócio ao redator das instruções como de grande vulto; mas recomendava-se ao núncio que fizesse ruído com ele, e que fosse tratando das questões de conversão ou não conversão ao passo que se fossem suscitando, acaso porque se devia temer a justa intervenção do poder civil num objeto que tão gravemente podia influir na propriedade territorial.

Tais eram as astúcias, conforme se pensava na cúria romana, com que ainda se tirariam grossas somas de um povo exausto. Não particularizamos diversas advertências de menos substância feitas ao núncio sobre o modo da sua entrada, sobre o seu futuro procedimento em Portugal e sobre outras matérias. O que fica dito basta para mostrar a idéia que se fazia em Roma deste país, e quais as intenções e os desejos da cúria pontifícia acerca dele. A parte das instruções relativas aos cristãos-novos é o que particularmente nos interessa e que vamos extratar. Aí acharemos os últimos toques do triste quadro, desenhado neste notável documento, na decadência moral e material a que, naquela época de profunda corrupção, se tinha geralmente chegado.

Na opinião do redator dos apontamentos, o núncio devia trazer a bula declaratória prometida aos cristãos-novos, sobre cujo conteúdo não se podia admitir mais controvérsias, visto que não continha na essência senão o que, depois de vivos e longos debates, a corte de Portugal aceitara por órgão do seu ministro D. Pedro Mascarenhas. Cumpria que o núncio a intimasse ao infante D. Henrique sem pedir beneplácito régio, nem dar o motivo porque se demorara a sua expedição, e respondendo a todas as objeções «que era aquela a resolução definitiva de sua santidade, e que podiam requerer-lhe diretamente se quisessem». Da publicação solene da bula é que devia abster-se, embora os medrosos conversos insistissem nisso, porque semelhante ato de nada lhes servia, e era afrontar elrei e seus irmãos ante o povo. Passar certidões dela a todos os que as quisessem para a poderem invocar onde lhes conviesse, eis o que unicamente importava, para que se não pudesse proceder contra eles senão na forma da nova bula. As instruções acrescentavam;

«Elrei, segundo se diz, tem muito a peito este negócio dos cristãos-novos, e tanto ele como o infante D. Henrique desejariam bem que não houvesse quem acerca disso lhes tomasse contas. Se acharem meio de vergar o ânimo do núncio, não deixarão de o tentar. Por isso convém que este vá e lhes fale com resolução, e que leve poderes para suspender e até para abrogar a Inquisição, mostrando esses poderes a quem lhe parecer e provando aos interessados na existência dela que em suas mãos está dar cabo de uma cousa que tanto estimam. Cumpre também que saiba o núncio ser voz constante que o infante D. Luiz é um furioso(545) em manter o novo tribunal e em fazer que ele seja severíssimo, porque o imperador assim lh’o ordenou positivamente. Tem este para isso várias razões. A principal é temer que, reprimida a Inquisição portuguesa, venha o exemplo a ser fatal para a espanhola. A outra razão que move o imperador é que, estabelecida em Portugal a Inquisição, perdem essa acolheita os castelhanos perseguidos, e por tal modo, tanto estes como os portugueses se refugiarão, aqui ou acolá, em terras do império ou dele dependentes, havendo já em Flandres um grande número de foragidos, que abrem as bolsas quando assim é preciso.»

Tais vinham a ser em suma as matérias mais interessantes contidas nas instruções preparadas para o bispo coadjutor de Bergamo. Delas resulta que o procedimento da cúria era só determinado pelo desejo de manter a própria influência e de auferir os maiores lucros, embora ignóbeis, ainda das mais pobres e oprimidas nações católicas. Quanto a Portugal, o que se deduz de tão singular documento é que, apesar da linguagem altiva do monarca nas suas relações diplomáticas, o país chegara a extrema decadência e fraqueza e que, apesar das manifestações externas de devoção exagerada e de zelo feroz pela pureza das crenças, a corrupção era profunda e grande a hipocrisia. Podia haver um ou outro ponto menos correto na exposição dos fatos em que as instruções se estribavam, mas a apreciação geral deles era exata. Não escrevendo a história do reinado de D. João III, mal poderíamos, na verdade, coligir aqui todos os vestígios que nos restam da irremediável decadência moral e material do país naquela triste época, decadência que explica sobejamente o próximo termo que teve a nossa independência. Entretanto, para que o leitor possa ajuizar se a cúria romana estava bem informada, mencionaremos vários fatos característicos dessa miséria econômica e dessa perversão de costumes de que em Roma esperavam tirar tão assinaladas vantagens.

Já noutros lugares temos tido ocasião de aludir às dificuldades da fazenda pública na época de D. João III e à má administração econômica do reino. As atas das cortes de 1525 e 1535 dão grande luz sobre este assunto. Algumas notas estatísticas, relativas a anos posteriores, esclarecem-nos ainda melhor a tal respeito. São essas notas do conde da Castanheira, vedor da fazenda, e por isso homem especialmente habilitado para apreciar a situação do erário. A dívida pública era em 1534 de mais de dous milhões, soma avultadíssima, numa época em que o orçamento ordinário da receita e despesa não chegava talvez anualmente a um milhão de cruzados(546). Levantavam-se empréstimos por todos os modos, e, como noutro lugar dissemos(547), só o juro do dinheiro negociado em Flandres subia em 1537 a cento e vinte mil cruzados(548). Em 1543 já a dívida estrangeira era proximamente igual a toda a dívida pública de 1534(549). Os juros vencidos daqueles empréstimos tinham sido tão exorbitantes que a sua importância excedia o capital. Calculava-os o feitor português de Flandres em 25 por cento ao ano, termo médio, de modo que a dívida dobrava em cada quatro anos(550). Para aliviar, até onde fosse possível, estes intoleráveis encargos pediu elrei nas cortes d’Almeirim de 1544 duzentos mil cruzados ao terceiro estado, o qual ofereceu cinqüenta mil(551). Recorria depois aos empréstimos individuais. Para isso, mandava escrever cartas às pessoas abastadas do reino, significando a cada uma com quanto desejava que concorresse(552). Estes convites do fundador da Inquisição não eram de desatender, e a generosidade devia tornar-se virtude assaz comum, embora a agricultura, o comércio e a indústria padecessem com essa absorção de capitais. As cousas haviam chegado a termos, ainda antes de 1542, que as pessoas sisudas e experientes quase de todo desanimavam. Nunca de memória d’homens tinha sido tão profunda a desorganização da fazenda pública. Nem o rei, nem os súditos podiam já com os encargos, e era fácil prever que cada vez menos poderiam com eles. Desde que se encetara o caminho ruinoso dos empréstimos, nunca mais se abandonara, e o estado quase que exclusivamente vivia desse expediente. Como as necessidades cresciam, tratou-se de vender padrões de juro, isto é, de ajuntar a dívida permanente interna à externa, e, apesar da resistência do conde da Castanheira, venderam-se ilimitadamente títulos de dívida pública. Parou-se quando deixou de haver quem comprasse. O próprio vedor da fazenda achava que já não restavam recursos, nem sequer na alienação das jurisdições, isto é, dos direitos majestáticos, pela simples razão de faltar quem tivesse dinheiro para dar por elas. Mas os empréstimos feitos fora do país também não tardariam a cessar, na opinião do conde da Castanheira, e ainda tardariam menos, mostrando-se que o rei de Portugal não cuidava em reduzir as despesas, ou em criar novos recursos para a manutenção do estado(553).

Vê-se, pois, que as idéias recebidas na cúria romana acerca da situação econômica do povo português não eram inexatas. O conceito que se pode formar do estado moral do país à vista das instruções dirigidas ao novo núncio não é menos seguro. A dissolução dos costumes associava-se à miséria e à fraqueza, cobrindo-se com as fórmulas de uma religiosidade fervente, como a pobreza e a debilidade se encobriam sob as aparências do esplendor e sob a linguagem altiva da onipotência. De muitos testemunhos dessa triste verdade, escolheremos dous que nos parecem acima de toda a suspeita. Serão o de D. João III e o do carmelita Fr. Francisco da Conceição, frade português, homem de letras e consultor do concílio de Trento, na conjuntura em que este fizera temporariamente assento em Bolonha. Tomou o carmelita a seu cargo informar os padres do concílio do estado moral e religioso da sua pátria, para que a assembléia geral dos pastores acudisse com remédio aos males que deplorava. Era necessário para isso expô-los sem disfarce. Foi o que fez numa espécie de consulta que chegou até nós e que se pode considerar como confirmação e complemento do quadro que resulta dos documentos oficiais do próprio D. João III.

Envolvido de contínuo em questões eclesiásticas, e sobretudo em questões fradescas, e deixando, como acabámos de ver, caminhar o estado à última ruína, o rei de Portugal entretinha-se, nos intervalos de descanso que lhe concediam as matérias da Inquisição, em pensar na criação de novas sés, na translação de mosteiros de ordem para ordem, na reformação, fundação ou supressão de outros, em introduzir frades na jerarquia eclesiástica, em intervir nas lutas de ambição sobre prelazias monásticas e em todos os demais negócios desta espécie, muitas vezes inferiores aos cuidados próprios de um rei. A mesma reforma da universidade, idéia generosa e grande a princípio, descera às proporções de uma intriga de claustro, sobretudo desde a entrada dos jesuítas no reino. As questões eclesiásticas tornavam por isso a enviatura de Roma a mais trabalhosa de todas e volumosíssima a correspondência com os ministros e agentes naquela corte. Quem quisesse ceifar por entre o pó dos arquivos a imensa seara de vergonhas e misérias que se dilata por essa correspondência cansaria talvez no meio de tão repugnante lavor. Para o nosso intuito basta que aproveitemos alguns fatos que sobejamente indicam a decadência moral e religiosa daquela deplorável época.

Se acreditarmos D. João III ou os que falavam em seu nome, a imoralidade pululava por toda a parte, sobretudo entre o clero, e especialmente entre o regular, que ele tanto favorecia. Os eclesiásticos, por exemplo, da vasta diocesse de Braga eram um tipo acabado de dissolução. Os párocos abandonavam as suas igrejas, e o povo não recebia a necessária educação religiosa, faltando castigo para tantos desconcertos(554). Os mosteiros ofereciam os mesmos documentos de profunda corrupção, distinguindo-se entre eles o de Longovares, da ordem de Santo Agostinho, e os de Ceiça e Tarouca, da ordem de Cister(555), ou antes nenhum dos mosteiros cistercienses se distinguia; porque em todos eles os abusos eram intoleráveis. Os abades, que, segundo a regra, ocupavam o cargo vitaliciamente, faziam recordar no seu modo de viver os devassos barões da idade média. A opulência manifestavam-na em custosas e nédias cavalgaduras, em aves e cães de caça e numa numerosa clientela, completando alguns essa existência de luxo com mancebas e filhos, que mantinham à custa do mosteiro. Viviam os monges pelo mesmo estilo, na crápula e na bruteza, servindo muitas vezes como criados do abade, de modo que, na opinião d’elrei, não havia na ordem de Cister senão ignorantes e devassos(556). Os conventos de freiras não se achavam em melhor estado, sendo o de Chellas, o de Semide e outros teatro de contínuos escândalos(557). A história de Lorvão e da sua abadessa, D. Filipa d’Eça, é um dos quadros mais característicos daquela época. Lorvão contava então cento e setenta freiras, entre professas, noviças e conversas. A família d’Eça preponderava ali. Dela eram tiradas sempre, havia sessenta anos, as abadessas, e outros tantos havia que a dissolução era completa em Lorvão. Das freiras então atuais uma parte nascera no mosteiro. Suas mães, não só não se envergonhavam de as criar no claustro e para o claustro, mas aí mantinham também seus filhos do sexo masculino. D. Filipa era uma dessas bastardas, fiel às tradições maternas. Andava ausente quando faleceu D. Margarida d’Eça, a última abadessa. Aquelas que tinham vivido em verdes anos com D. Filipa e que contavam com a sua indulgência chamaram-na e elegeram-na sucessora de D. Margarida, estando esta moribunda. Queria elrei substituir a nova prelada por uma freira de Arouca; mas opôs-se a parcialidade da eleita. Seguiu-se uma longa demanda em Portugal e em Roma, demanda cheia de estranhas peripécias. Entre estas a mais singular foi o serem certa vez encontradas D. Filipa e outra freira em casa de um clérigo de Coimbra, escondidas com a sua amante ordinária, que a justiça buscava. A pena recusa-se a descrever o estado em que todas três foram achadas(558). Tais eram as devassidões e os escândalos de que vamos encontrar memória nos mais insuspeitos documentos.

Mas se estes nos revelam o estado, não só do clero hierárquico, mas também do monaquismo português, as considerações oferecidas por Fr. Francisco da Conceição aos padres de Trento têm um carácter de generalidade que abrange todas as classes, e descobrem úlceras de diverso gênero, porém não menos asquerosas. Os bispos, com raríssimas exceções, nunca residiam nas suas dioceses, contentando-se com enviar para lá vigários gerais, cargo em que, por via de regra, eram providos aqueles que mais barato o faziam, embora dele fossem indignos. Os bispos do ultramar nem sequer curavam de semelhante formalidade, e essas regiões, mais ou menos remotas, estavam completamente privadas de pastores. Segundo afirmava o bom do carmelita, as superstições mulheris, sobretudo nos conventos e nas casas de fidalgas, eram monstruosas, além de outras relativas ao culto público a que já anteriormente aludimos(559). O sigilismo tinha-se introduzido em larga escala. Com o pretexto de ser para fins honestos e com permissão dos penitentes, os confessores revelavam os segredos da confissão. Os abusos e misérias que se passavam nos púlpitos eram quotidianos. Pregadores, havia-os em nome, mas eram raros, na verdadeira acepção do termo, e esses poucos tratados com desdém. O comum deles o que buscavam eram honras e dinheiro, lisonjeando as paixões do auditório. O povo ignorava a religião, porque os oradores sagrados só curavam de vãs sutilezas. Um dos males que mais afligiam o reino era a excessiva multidão de sacerdotes. Havia pequena aldeia onde viviam até quarenta, do que resultava andarem sempre em competências, disputando uns aos outros as missas, enterros e solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo. Aumentava-se desmesuradamente esse escândalo com o número prodigioso e com a imoralidade daqueles que só pertenciam ao clero por terem tomado ordens menores. Muitos tratavam de receber esse grau só para se exemptarem da jurisdição civil. Um dos abusos freqüentes que estes tais cometiam era casarem clandestinamente, podendo assim delinquir sem perigo, porque, se os processavam por algum crime de morte, declinavam a competência dos tribunais seculares, e suas mulheres, para os salvarem, não hesitavam em se envilecerem a si próprias perante os magistrados, declarando-se concubinas. Malvados havia, que, aproveitando as declarações daquelas que lhes tinham sacrificado a última cousa que a mulher sacrifica, o pudor público, as abandonavam depois, servindo-se da generosa confissão que lhes salvara a cabeça, para despedaçarem os laços santos, embora ocultos, que os ligavam às infelizes. Os casamentos clandestinos que facilitavam tais horrores, e que eram vulgaríssimos, produziam ainda outros resultados não menos deploráveis. Negava-se não raro, depois, a existência de um fato que se não podia provar, e o receio do rigor dos pais fazia com que muitas filhas aceitassem segundas núpcias pertencendo já a outro homem. Ainda quando não chegavam a esta situação extrema, a vergonha e o temor produziam infanticídios em larga cópia. Por outro lado, a dificuldade e o preço das dispensas para os consórcios entre parentes completavam a obra dos casamentos clandestinos. Inabilitados por falta de recursos para legitimarem as uniões vedadas, não tendo ânimo para abandonarem a mulher que amavam e vergando debaixo do peso das censuras canônicas, muitos indivíduos calcavam aos pés o sentimento religioso e adotavam uma espécie de ateísmo brutal, esquecendo todos os atos externos do culto.

Há poucos anos que um livro admirável(560) agitou profundamente os espíritos, descrevendo a existência do escravo nos estados americanos. As cenas repugnantes ou dolorosas descritas naquele célebre livro poderiam ter sido colocadas no nosso país no meado do século XVI com a mudança dos nomes dos personagens e dos lugares, mas talvez com mais carregadas cores. A vida do escravo, se acreditarmos a narrativa do informador dos padres de Trento, era nessa época verdadeiramente horrível em Portugal. Mas um povo afeito a ver tratar assim uma porção dos seus semelhantes deixaria de corromper-se e poderia conservar instintos de nobreza e generosidade? Os escravos mouros, e negros, além de outros trazidos de diversas regiões, aos quais se ministrava o batismo, não recebiam depois a mínima educação religiosa. Fé não a tinham, ignorando completamente o credo e até a oração dominical, o que não procedia só do desleixo de seus senhores, mas também da relaxação dos prelados. Era permitido entre eles o concubinato, misturando-se batizados e não batizados, e tolerando-se, até, essas relações ilícitas entre servos e pessoas livres. Os senhores favoreciam esta dissolução para aumentarem o número das crias, como quem promove o acréscimo de um rebanho. Os filhos de escravos até a terceira ou quarta geração(561), embora batizados, eram marcados na cara comum ferro em brasa para se poderem vender; e por isso as mães, desejosas de evitar o triste destino que esperava seus filhos, procuravam abortar ou cometiam outros crimes. Os maus tratos de seus donos, acumulando o ódio nos corações dos escravos, faziam com que estes às vezes recusassem tenazmente o batismo, que nenhum alívio lhes trazia. De feito, nas crueldades que sobre eles se exerciam não havia distinções. O castigo que ordinariamente lhes davam era queimá-los com tições acesos, ou com cera, toucinho ou outras matérias derretidas. Uma circunstância agravava o procedimento que se tinha com estes desgraçados. Boa parte deles nem eram cativos na guerra pelos portugueses, nem comprados por estes aos vencedores nas lutas entre as nações e tribos bárbaras da África, da Ásia e da América: eram homens naturalmente livres, arrebatados da pátria pelos navegadores, e trazidos a Portugal para serem submetidos a perpétua servidão. Finalmente, os consórcios legítimos entre as pessoas escravas e livres, consórcios assaz freqüentes, tornavam-se para os senhores num meio de satisfazerem os mais baixos e ferozes instintos de crueldade; de folgarem com o espetáculo das agonias mais pungentes do coração humano. Quando o livre queria remir a consorte cativa, opunha-se o senhor, e não raro a pretensão dava origem a cenas de violência e de sangue, ou a ser vendida a pobre escrava para terras longínquas, quebrando-se assim por um ímpio capricho os laços santificados pela igreja(562).

Tal era o estado da religião e da moral num país que se lançava nos extremos da intolerância e onde se pretendia conquistar o céu com as fogueiras da Inquisição; tal era o estado econômico desse mesmo país, que expulsava do seu seio ou assassinava judicialmente os cidadãos mais ativos, mais industriosos e mais ricos, destruindo um dos principais elementos da prosperidade pública, ao passo que os desconcertos e prodigalidades de um governo inepto sepultavam na voragem da usura todos os recursos do estado. A corte de Roma, que, nas suas relações oficiais com a de Portugal, lisonjeava não raro as vaidades do rei e do reino, vê-se que sabia, nas suas notas secretas, apreciar devidamente os méritos de um e as forças do outro. O leitor, porém, habilitado para avaliar a exação das apreciações da cúria, igualmente o fica para ajuizar acerca dos sentimentos de lealdade, de desinteresse, e sobretudo de caridade cristã, que serviam de norte à política de Roma para com uma nação pobre e corrompida, que ela própria reconhecia como supersticiosa e fanática, e para com um rei que reputava inábil, e cuja força moral se reduzia, conforme ela afirmava, a encobrir a extrema fraqueza debaixo das vãs fórmulas de uma linguagem altiva.

Se, como vimos, apesar da retirada dos agentes diplomáticos de Portugal, a corte de Roma nem por isso deixava de enviar a este país um núncio para conduzir os seus negócios pendentes, também, apesar daquela espécie de ruptura com o governo pontifício, D. João III não abandonava o campo aos conversos na luta relativa ao tribunal da fé. Ao tempo em que se preparava a partida de Lipomano, o doutor Baltazar de Faria, juiz da Casa da Suplicação, era enviado a Itália para tratar dos negócios da Inquisição, posto que sem o carácter de embaixador. Deviam ajudá-lo neste empenho, não só o agente ordinário Pier Domenico, mas também um certo mestre Jorge e Fr. Jerônimo de Padilha, que para os mesmos fins se achavam nessa conjuntura em Roma(563). Chegando ali na entrada de julho, encontrou o novo agente fácil acesso ao papa por intervenção de Pier Domenico e dos cardeais que favoreciam as pretensões de D. João III; mas nem por isso, durante meses, adiantou cousa alguma na questão dos conversos. As audiências inúteis, as informações de cardeais, os debates intermináveis com que sabiam em Roma dilatar a conclusão de qualquer negócio espinhoso ou desagradável para a cúria, conhece-os de sobra o leitor. Todos esses embaraços tornavam a situação de Baltazar de Faria duplicadamente difícil, visto que os ministros que o haviam precedido, revestidos do carácter de embaixadores, podiam empregar a força moral que d’aí lhes resultava para vencerem certos obstáculos e ardis, contra os quais somente aproveitavam a decisão e a energia, ao passo que ele, investido de atribuições mais restritas, estava longe de poder proceder com a altivez de que os seus antecessores, sobretudo D. Pedro de Mascarenhas, tinham sabido servir-se a propósito. Era essa uma das principais vantagens que os conversos tinham tirado da quebra das relações diplomáticas entre as cortes de Lisboa e de Roma.

Entretanto, é certo que, apesar destas aparências favoráveis para a causa dos judeus portugueses, e da proteção, sem dúvida sincera, do cardeal da Silva, essa causa, que parecia ganhar terreno, ia em decadência, decadência cujos sinais vamos hoje encontrar nos documentos contemporâneos. Querer é, quase sempre, poder: o que é excessivamente raro é o querer; e o erro vulgar consiste em confundir o desejar com o querer. O desejo mede os obstáculos: a vontade vence-os. D. João III queria a Inquisição: os seus conselheiros queriam-na. Fosse cobiça, fosse fanatismo, a vontade do rei, acorde com a dos ministros, era imutável, era fatal, como o são todas as vontades no seu máximo grau de energia. Assim é que se vence. Nesta situação de ânimo, as balizas que distinguem o moral do imoral, o justo do injusto, a virtude do crime, a santidade da abominação, desaparecem aos olhos do espírito reconcentrado num único pensamento, numa inabalável tenção. Quando as cousas chegam a tais termos, pode haver dificuldades, porém não há impossíveis.

Os hebreus portugueses sentiam isto sem, talvez, o explicarem a si próprios. Do âmago do seu proceder, das suas intrigas e astúcias, dos sacrifícios que faziam para se melhorarem na luta, como que transuda o desalento. Dir-se-ia que descortinavam no horizonte a vitória difinitiva dos adversários. Diante da recrudescência de rigor da parte da Inquisição, em vez de se fortificarem unindo-se em concerto de intentos e de atos, desuniam-se vacilantes e medrosos, deixando escassear os recursos, negando-os, talvez, aos agentes encarregados em Roma da defesa comum. Cada qual individualmente tratava de obter, muitas vezes por esses mesmos agentes, para si e para os seus, breves de proteção, que os pusessem a salvo da perseguição. A experiência do passado e as advertências daqueles que em Roma lh’os solicitavam não podiam desenganá-los da inutilidade de tais diplomas, cujas provisões os inquisidores anulavam facilmente com as sutilezas e declinatórias jurídicas(564). O fanatismo, irritado pelos obstáculos que por tantos anos se haviam oposto ao seu decisivo triunfo, tinha, além desse, outro meio de tornar inúteis aqueles breves de proteção, excitando a plebe, sempre feroz, a praticar contra as famílias hebréias as cenas de violência e de anarquia que adiante iremos encontrar, e a que eram de certo preferíveis as perseguições legais, em que ao menos se guardavam as fórmulas de um processo regular, e havia um simulacro de justiça.

A notícia da vinda do núncio, apesar dos esforços de Pier Domenico, no estado em que as cousas se achavam, e em oposição com os últimos acordos feitos em Roma antes da interrupção das relações diplomáticas, devia inquietar, e de feito inquietou vivamente a corte de Lisboa. Ou significava desprezo da enérgica demonstração de desgosto dada ao papa pela eleição do cardeal da Silva, ou levava à evidência que Paulo III, pondo de parte o próprio decoro como soberano, só pensara em cumprir as promessas feitas aos cristãos-novos, isto é, em opor um firme antemural aos atos da Inquisição, o que parecia acabar de justificar a voz pública de que o coadjutor de Bergamo lhes vinha completamente vendido. Na verdade, a missão ostensiva do novo núncio era tratar com elrei matérias relativas à futura celebração do concílio geral; mas esse pretexto não iludia ninguém, e todos sabiam, tanto em Roma como em Portugal, que Luiz Lipomano devia dedicar-se a negócios mais instantes(565).

Um fato, porém, sucedido neste meio tempo, veio fixar definitivamente os ânimos acerca do procedimento que cumpria adotar em relação ao enviado pontifício. Esse fato, semelhante à divindade do poeta romano saída da máquina para trazer o desenlace da enredada tragédia, justificava a audaz resolução que se tomou naquela conjuntura. E não só a justificava; tornava-a indispensável. Esta oportunidade singular dá azo à suspeita de que o acontecimento fosse uma fabula inventada para servir aos intuitos da política; nem a suspeita de falsificação será temerária em relação a uma corte e a uma época em que até o assassínio oculto se reputava expediente permitido(566). É certo, porém, que os documentos que nos restam a tal respeito não nos habilitam, nem para afirmar, nem para negar absolutamente a realidade do sucesso.

Nos meados de 1542 o juiz de fora de Arronches apresentou-se na corte, trazendo consigo uns maços de cartas, que assegurava ter apreendido a um correio vindo de Flandres, e que pretendia pôr nas mãos d’elrei. Porque esta apreensão espontânea e não motivada? Porque vir pessoalmente o magistrado entregar a elrei maços de cartas cuja importância ignorava? As memórias daquele tempo não nos revelam esse mistério(567). Eram dous os maços: um dirigido a Nuno Henriques, mercador hebreu de Lisboa; outro a mestre Jorge Leão, um dos homens mais influentes entre os cristãos-novos. O primeiro maço, contendo uma carta do agente de Nuno Henriques em Flandres, encerrava algumas outras sem sobrescrito: no segundo encontrava-se uma carta de Diogo Fernandes Neto, e outra também sem sobrescrito. Tanto na do agente de Nuno Henriques, como na de Diogo Fernandes indicava-se de um modo obscuro a quem se deviam entregar as que não vinham sobrescritas, mas na dirigida a mestre Jorge dizia o procurador dos cristãos-novos que ao homem de Viseu se devia muito, porque o ajudava como bom amigo, e que se desse a sua mulher em mão própria a carta que vinha inclusa(568). Abertos, não só os maços, mas também as cinco cartas sem direção, achou-se que estas eram em cifra. As palavras homem de Viseu fizeram crer que a misteriosa correspondência fosse do cardeal da Silva. Podia ser subtil a suspeita: sensata não o era, visto que o antigo bispo de Viseu não deixara, por certo, em Portugal mulher legítima, à qual se entregasse uma carta sua. O que, porém, faz sobretudo duvidar se aquela correspondência e a sua apreensão foram ou não um invento, uma comédia política, é que se mandaram lançar pregões, anunciando o prêmio de três mil cruzados, soma então avultadíssima, para quem lesse aquelas cifras. Apareceu um indivíduo que o alcançou, e elrei pôde, enfim, certificar-se do seu conteúdo. Restam-nos centenares de documentos dos quais se vê quão freqüente uso o governo português e os seus agentes fora do reino faziam deste meio de comunicar cousas secretas. Os ministros de D. João III deviam ser hábeis em decifrar documentos de tal ordem, e deviam-no ser principalmente eles. Como esperar, portanto, não obstante esses ruidosos anúncios, que aparecesse um intérprete obscuro mais hábil que os oficiais daquela arte divinatória? Como apareceu, de feito, esse homem? Como se esqueceu um meio simples e óbvio, o de obrigar os dous cristãos-novos aos quais a correspondência vinha encarregada a declararem que indivíduos eram aqueles a quem haviam de entregar as cifras, e depois apreender estes, e empregar os meios eficazes, a que então se costumava recorrer, para alcançar a versão das misteriosas cartas? Ao menos esses a quem vinham dirigidas deviam saber lê-las. Os pregões lançados e o prêmio oferecido eram, na verdade, um luxo, singular para tais tempos, de publicidade e de bizarria.

Fosse como fosse, o conteúdo das cartas comprometia altamente o papa, o cardeal da Silva, o núncio que se esperava, e os cristãos-novos. Dir-se-ia serem feitas de propósito para as circunstâncias. Pelo seu teor e estilo, era claramente autor delas o bispo [de Viseu]. Numa gabava-se da sua influência na corte de Roma, e da resolução em que se estava de proceder contra elrei e contra o reino, por causa dos atentados cometidos acerca das cousas dele bispo-cardeal, o que já se teria feito, se não fosse o receio de que se vingassem na pessoa do indivíduo a quem escrevia. Contava como os embaixadores tinham saído desorientados de Roma e deplorava que a dureza dos tempos não consentisse dar-se-lhes com um punhal pelos peitos, esperando todavia que os seus parentes em Portugal lhes recompensassem os bons serviços que lá lhe tinham feito a ele. Referia como o papa procurara, por diversas vias, fazer com que elrei se emendasse da irregularidade do seu procedimento e como respondera às cartas do imperador, que, em conseqüência das solicitações do cunhado, lhe escrevera sobre este assunto. O núncio, mandado então extraordinariamente àquele soberano, levava nesta parte instruções tais que o cardeal da Silva esperava que Carlos V fosse o seu melhor protetor, e com efeito este já tinha prometido intervir a favor dele com elrei, não obstante o que, cumpria tornar propício Luiz Sarmento, embaixador de Castela em Lisboa, como já lh’o era o marquês de Aguiar em Roma, o que seria fácil, acenando-lhe com o bom despacho de certos negócios que corriam na cúria. Acrescentava que o principal objeto da vinda do bispo de Bergamo era a questão do bispado de Viseu. Por ser via segura, mandava a correspondência por intervenção de Nuno Henriques, a quem era infinitamente obrigado e em cujos negócios trabalhava com todo o ardor, entendendo-se com Diogo Fernandes Neto. Tinha-se neste ponto feito quanto ele podia desejar. Triunfaria a justiça; nem a tal respeito havia de que duvidar(569).

Se D. Miguel da Silva escreveu de feito aquelas cartas, cumpre confessar que, além de infeliz em lhe serem tomadas, o foi não menos na escolha dos assuntos. Se não era o seu intuito animar a pessoa a quem escrevia, a fim de que confiasse na sua influência e fortuna, não se vè que necessidade, que negócio importante o movera a tecer em cinco cartas de cifra o hino da própria glória. Dir-se-ia que só pensara em redigir papéis que, divulgados, irritassem contra ele o imperador e os seus embaixadores em Lisboa e em Roma, que mostrassem que o papa era instrumento seu, que revelassem as instruções ocultas do núncio, e que, finalmente, provassem as relações íntimas que ele tinha com os cristãos-novos, cujo procurador parecia ser, mais que o próprio Fernandes Neto. Para um homem afeito ao mundo e envelhecido nos enredos da política, o erro era demasiado grosseiro.

A carta do agente dos cristãos-novos para mestre Jorge Leão, debaixo de cujo sobrescrito se diz ter sido encontrada uma das de cifra, completava as revelações acerca do núncio Lipomano. Dela constava que Diogo Fernandes se vira em grandes apuros, por falta de remessas de Lisboa, para dar ao bispo de Bergamo mil cruzados, sem os quais não quisera ou não pudera partir de Roma. Anunciava que por via dele escreveria mais largamente aos chefes da nação. Deste personagem pendia o remédio de todos. Já se tinha expedido uma bula para suspender os atos arbitrários da Inquisição, e a cúria romana prometera levar em conta o dinheiro que esta havia custado quando se expedisse a do perdão geral que os cristãos-novos solicitavam e que também já lhes fora prometida. Neto enviava vários breves de exempção ou de perdão requeridos por diversas famílias hebréias, mas asseverava que tudo isso era perdido, não só porque os inquisidores haviam de sofismá-los, mas também porque as providências gerais, com que se contava, os tornariam inúteis. Estas providências dependiam inteiramente da chegada do coadjutor de Bergamo a Portugal. Era nisto que estava cifrada a comum salvação; nisto via ele próprio o termo das angústias, trabalhos, e até das mais vis calúnias, de que em Roma estava sendo alvo(570).

Estas cartas assim apreendidas, além de outras de vários cristãos-novos, obtidas, ignoramos como, pelo infante D. Luiz, e remetidas já por este a Santiquatro para as mostrar ao papa(571), justificavam qualquer procedimento enérgico da parte d’elrei. Obstar à entrada do núncio pareceu desde logo urgente. Era este, pelo menos, o voto da maioria dos inquisidores e dos seus parciais, e ainda os que viam nisso uma ofensa à santa sé concordavam em que, embora se deixasse entrar o bispo de Bergamo, se lhe não consentisse usar do seu ofício e jurisdição(572). Despachou-se André Soares para Espanha munido de uma carta d’elrei para o novo núncio e de instruções relativas ao assunto, ao mesmo tempo que se escrevia a Francisco Pereira, ministro na corte do imperador, para que indagasse quando e por onde vinha Luiz Lipomano, e do que soubesse avisasse André Soares, que deveria parar em Valadolid para proceder a iguais indagações(573). A carta ao bispo de Bergamo era assaz sucinta. Intimava-lhe elrei em termos moderados, mas firmes, que não prosseguisse avante sem que recebesse novas ordens do papa, a quem ele escrevia sobre os inconvenientes da sua vinda(574). Quanto ao resto, referia-se às comunicações verbais de André Soares. Nas instruções dadas a este recomendava-se-lhe que assegurasse ao bispo de Bergamo, não em nome d’elrei, mas como cousa sua, que, se insistisse em seguir viagem, não o deixariam entrar e que, quando se apresentasse como simples mensageiro do papa, sem carácter de núncio, o fariam sair logo que revestisse este carácter ou praticasse o menor ato de jurisdição(575). Teve o resultado que se desejava aquela missão, e Luiz Lipomano não se atreveu a transpor a fronteira de Portugal. Buscou, escrevendo a elrei, dobrar-lhe o ânimo; mas elrei tinha tomado uma resolução definitiva, e todas as suas diligências foram absolutamente baldadas(576).

Entretanto Carlos V, a quem desagradavam estas discórdias do cunhado com o pontífice, intervinha na contenda, e depois de tratar a matéria com o núncio em Castela e com o próprio bispo de Bergamo, encarregou-se do papel de medianeiro. Não duvidava elrei de admitir o novo núncio, uma vez que se lhe proibisse terminantemente conhecer dos negócios da Inquisição ou dizer-lhe uma única palavra em favor do bispo de Viseu. Movia-o a recusar a Luiz Lipomano toda e qualquer ingerência nas matérias relativas ao tribunal da fé, não só o que constava vir a soldo dos judeus, mas também o que se podia inferir do procedimento dos anteriores núncios, que, corrompidos por peitas, tantos males tinham causado. Enviando uma carta para o papa relativa àquele assunto, a qual devia ser apresentada a Paulo III pelo embaixador de Castela, recomendava ao indivíduo que particularmente fora encarregado de tratar o assunto com o imperador que na mediação, a qual não só aceitava mas até pedia, se não fizessem concessões algumas nos pontos em que estava resolvido a não ceder, e que se tratasse a matéria com a possível brevidade(577).

Estas cousas passavam no outono de 1542. Antes disso, em agosto, elrei despachara para Roma Francisco Botelho, não na qualidade de embaixador, mas como simples mandatário. Ia encarregado de apresentar ao pontífice a correspondência apreendida aos cristãos-novos e ao cardeal da Silva. A carta ao papa, que lhe servia de credencial, encerrava poucas linhas, e referia-se restritamente ao fim especial daquela missão. A quem elrei escrevia com mais largueza era a Santiquatro. Nessa carta, porém, pedia-se expressamente ao cardeal que inteirasse o papa do seu conteúdo. Era uma longa e sentida deploração do injusto e desamorável procedimento de Paulo III para com o mais afetuoso filho da igreja, e do crédito que se dava aos embustes dos inimigos do monarca, ao passo que se descria das suas afirmativas, as quais, enfim, estavam plenamente justificadas pelos escandalosos documentos que mandava pôr na presença do pontífice. Aos outros cardeais que se mostravam mais ou menos favoráveis à corte de Portugal escreveu-se no mesmo sentido, posto que mais resumidamente. As instruções dadas a Francisco Botelho tinham por objeto fazer com que o papa ouvisse a leitura dos papéis de que ele era encarregado e que nunca devia largar de sua mão, levando transumptos em italiano, de que se podiam tirar cópias. Proibiam-se-lhe quaisquer explicações dadas em nome d’elrei, ordenava-se-lhe que só se demorasse em Roma se o papa assim lh’o ordenasse. Nesta hipótese, nem com ele, nem com o cardeal Farnese, nem com pessoa alguma debateria oficialmente a questão da vinda do núncio, ou qualquer matéria que se referisse a D. Miguel da Silva (com quem nunca devia avistar-se), sem que, contudo, deixasse de falar energicamente naqueles assuntos como simples particular. Neste mesmo carácter, as instruções especificavam o que lhe cumpria dizer, de maneira que não comprometesse a corte de Lisboa, e não se inferisse das suas palavras que havia intenção de ceder(578).

Estas prevenções facilitavam a mediação do imperador e combinavam-se com ela. A carta que se dirigiu em nome d’elrei para ser entregue ao pontífice por mão do embaixador espanhol em Roma foi atentamente pensada e discutida(579). Cifrava-se em ponderar a retidão e desinteresse com que a Inquisição procedia, a ofensa que se fizera ao monarca e ao infante inquisidor-mor em mandar um núncio a superintender nos atos do tribunal da fé, os efeitos desastrosos que tinha a profusão com que se concediam em Roma breves de exempção e de perdões aos cristãos-novos que os solicitavam, concessões cujo resultado era a contumácia dos réus presos e os crimes de judaísmo que diariamente se perpetravam no reino, e que obrigavam a Inquisição a proceder com dobrado rigor e vigilância. Mostrava-se, enfim, como as correspondências do agente dos cristãos-novos e as do cardeal da Silva, que por Francisco Botelho se tinham levado ao conhecimento de sua santidade, ao passo que revelavam grandes escândalos e justificavam o procedimento d’elrei para com o bispo de Bergamo, tornavam cada vez mais sólidos os fundamentos das súplicas dirigidas à santa sé pela corte de Portugal por espaço de tantos anos, e provaram a necessidade de se adotar uma política mais acorde com os intuitos do príncipe e com os interesses do cristianismo(580).

Entretanto Francisco Botelho chegava a Roma e obtinha em breve uma audiência de Paulo III para apresentar os documentos de que era portador. Não parece que estes produzissem grande abalo no ânimo do pontífice, o qual dormitava enquanto o seu secretário os lia(581). Botelho fingiu não menor indiferença e despediu-se apenas acabou a leitura. Foi o que fez impressão no papa, que, porventura, esperava uma dessas cenas violentas a que estava costumado com os ministros de Portugal. Vendo-o disposto a sair, Paulo III perguntou-lhe se nada mais queria dele. Respondeu friamente que elrei a nada mais o enviava, e que, se havia tardado um pouco em desempenhar a missão e em voltar ao seu país, fora pelas dificuldades do trânsito e por um acidente que no caminho lhe sobreviera. Não pôde o papa ocultar o seu despeito a vista daquela isenção. Mostrou-se altamente queixoso do obstáculo que se pusera à entrada do bispo de Bergamo em Portugal. Botelho replicou que desse negócio sabia apenas o que corria entre o vulgo. Dizia-se que o núncio era pago pelos cristãos-novos, e tanto as cartas que ele trazia, como as que o infante D. Luiz remetera a Santiquatro, provavam que as vozes do povo não eram infundadas. Destas últimas cartas não tinha notícia o papa. Averiguado o negócio, soube-se que o cardeal Farnese, a quem Santiquatro as entregara, se esquecera de as comunicar a seu avô. A resposta de Paulo III foi uma larga apologia do bispo de Bergamo, cuja reputação de virtude era, na verdade, grande em Roma, afirmando que outrem por ele teria recebido essas somas. Quanto aos fins com que o enviara, protestava que fora unicamente para tratar com elrei a matéria do futuro concílio(582). Até que ponto era sincera esta afirmativa infere-o o leitor da precedente narrativa.

Sem sair do seu papel de simples mensageiro, Francisco Botelho dirigiu-se depois aos diversos cardeais para quem levava cartas d’elrei, mostrando a cada um deles os papéis apreendidos. Diligenciou o papa sopitar o escândalo por intervenção de Santiquatro; mas Francisco Botelho atinha-se às ordens que recebera e insinuava que, depois de dar conhecimento a cada cardeal em particular das cartas de D. Miguel, havia de apresentá-las em pleno consistório. Tornava-se pois necessário transigir. Pier Domenico era criaturo do rei de Portugal e inteiramente dedicado a ele, como seu agente ordinário em Roma. Foi por isso escolhido para enviado a D. João III e para levar conjuntamente ordens ao bispo de Bergamo, retido em Castela, a fim de que se limitasse, entrando em Portugal, a tratar dos assuntos relativos à reunião do futuro concílio. O núncio devia depois disso voltar a Roma ou conter-se, ficando, nos limites que elrei pusesse à sua autoridade(583).

A missão de Pier Domenico aplanou todas as dificuldades. Tranqüilizaram-se os ânimos com a segurança de que o núncio se absteria de intervir nas questões dos cristãos-novos, e elrei pôde obter a certeza de que não se entabolariam negociações a respeito do cardeal da Silva. Deu-se por isso ordem para se permitir a entrada no reino ao bispo de Bergamo, que, convidado por elrei, imediatamente se dirigiu a Portugal(584).

Mas esta nova mudança política da corte de Roma na interminável questão dos hebreus portugueses não desdizia do carácter de todas as fases anteriores. Como o cálculo de interesses materiais fora até aí o incentivo ordinário do procedimento da cúria, o abandono da causa dos perseguidos não tinha agora por únicos motores, nem a mediação de Carlos V, nem a resolução enérgica de D. João III. Tratava-se também de outro assunto, e é provável que considerações a ele relativas não fossem estranhas à escolha que se fizera para mandatário do pontífice de um homem que todos sabiam ser agente d’elrei em Roma. Como vimos no livro antecedente, havia muito que o cardeal Farnese, neto do papa e seu ministro, pretendia, invocando direitos mais ou menos bem fundados, obter uma pensão de três mil escudos de ouro nas rendas do mosteiro de Alcobaça. Não vem ao nosso intento historiar as causas desta pretensão e d’outras análogas, que de contínuo havia a resolver em relação a membros do sacro colégio. Todos os anos se viam conceder, aumentar, suspender mercês destas, com que se gravavam os réditos dos benefícios eclesiásticos. Como ao papa pertencia, alternativamente com o poder civil, o provimento de alguns desses benefícios, às vezes a concessão de tais pensões era conseqüência da cessão do direito da sé apostólica a provê-los, e da consolidação daquele direito na coroa. A pretensão de Farnese pertencia a esta categoria. Outras vezes eram supressões, anexações ou divisões que o poder temporal queria fazer nos mesmos benefícios, a que não se podia verificar sem intervensão do poder espiritual, e em que Roma se não esquecia de tirar vantagens pecuniárias dos caprichos de um príncipe que a estes assuntos, não raro pueris, dedicava mais cuidados do que aos desconcertos de administração, que iam conduzindo a total ruína a sociedade civil. Outras vezes, finalmente, eram mercês espontâneas com que, em circunstâncias difíceis, se conciliavam na cúria as influências adversas, se criavam novos amigos, se fortificava o ânimo dos antigos, e com que se destacavam dificuldades, não raro fabricadas justamente para terem este remédio. Da correspondência dos ministros portugueses junto à sé apostólica mais de uma vez temos citado passagens que mostram como não eram só as grossas somas despendidas pelos cristãos-novos que faziam inclinar de tempos a tempos para o seu lado a benevolência de Roma: também esse eloqüente meio da persuasão serve para explicar as repentinas severidades contra as suas culpas, pouco antes reputadas vãs e caluniosas asserções. Correndo os papéis que nos restam dos nossos agentes diplomáticos junto ao pontífice, essas citações poderiam repetir-se ainda com mais freqüência. D’algumas, até, resulta que indivíduos havia, a quem, em circunstâncias apertadas, servia tudo, e cujo espírito iluminavam para seguir a boa causa, a causa da fé e do rei, quaisquer dávidas de insignificante valia(585).

Irritado pelas ofensas que temos narrado, e mostrando-se resolvido a usar de energia, único remédio cuja eficácia, para coibir excessos da cúria romana, está provada na história, D. João III fizera experimentar a Farnese que também nesta matéria das pensões não eram de desprezar os ímpetos do seu despeito. As diligências do moço cardeal para obter aquela reserva, que dependia da sanção régia, tinham cessado ou haviam sido infrutuosos durante a interrupção das relações amigáveis entre as duas cortes. Removidas, porém, as principais causas dos recentes desgostos, Pier Domenico foi encarregado de solicitar a resolução do negócio. Acedeu facilmente elrei, mas não sem recomendar vivamente ao enviado que ponderasse em Roma quanto era necessário que quem pretendia que se usasse de equidade e de benevolência em uns assuntos não devia esquecer-se dessa doutrina em relação a outros(586).

Entre as instruções, porém, dadas a Pier Domenico para falar em nome d’elrei ao papa, no seu regresso à cúria, avultavam sobretudo duas questões. Era uma a do castigo do cardeal da Silva, a outra a da substituição de um simples agente por um embaixador extraordinário, que a corte pontifícia mostrava desejos de ver de novo estabelecer ali. Quanto ao antigo bispo de Viseu, o que D. João III exigia era que fosse expulso da capital do orbe católico, não lhe consentindo o pontífice que tornasse a aparecer na sua presença, sem que todavia, para o ter assim afastado, lhe desse algum cargo fora de Roma. No caso de sua santidade não convir nisto, que atendesse às deslealdades que ele cometera, tanto para obter o barrete cardinalício, como nas suas intrigas com os judeus, felizmente descobertas pela apreensão das cartas em cifra, e que mandasse proceder judicialmente a um inquérito em Portugal, particularmente em Viseu, para meter o bispo em processo; porque elrei estava certo de que o resultado seria uma punição ainda mais severa. Pelo que, porém, respeitava ao estabelecimento da embaixada em Roma, devia Pier Domenico ponderar ao pontífice que, por isso mesmo que semelhante passo era uma demonstração da perfeita harmonia que devia reinar entre as duas cortes, repugnava ao ânimo d’elrei enviar um embaixador extraordinário enquanto durassem discussões mais ou menos desagradáveis sobre os negócios pendentes, sendo a sua firme tenção fazê-lo assim, logo que o pontífice lhe desse acerca de tudo o mais a satisfação que fora dada acerca da missão do coadjutor de Bergamo(587).

Se, em relação a estes dous pontos, D. João III se mostrava inflexível num e reservado no outro, buscava ao mesmo tempo encobrir as suas desconfianças com mostra de magnanimidade. As instruções que Pier Domenico trouxera ao núncio eram que apenas entrasse em Portugal e desse conta ao monarca do objeto especial da sua missão, voltasse a Roma, se ele o despedisse. Não só, porém, elrei permitia que ficasse, mas até que usasse dos poderes que trazia, salvo acerca das matérias especificadas numa nota que devia ser apresentada ao papa. Nessas restrições estava conforme o próprio núncio, cujo procedimento, posto que a sua residência em Portugal fosse ainda tão curta, elrei achava digno de elogio, ponderando os desgostos que se teriam evitado, se os anteriores núncios tivessem procedido do mesmo modo(588).

Assim asserenava uma discórdia que chegara a entenebrecer profundamente os horizontes políticos entre as cortes de Lisboa e de Roma, mas esta serenidade era presságio infalível de mais furiosa procela contra os cristãos-novos. As matérias sobre que o núncio ficava inibido de entender não podiam ser outras senão as que tocavam à Inquisição, ou pelo menos eram os atos dos inquisidores o principal objeto que D. João III devia forcejar por manter acima da inspeção e autoridade do delegado pontifício. Na vinda, porém, do núncio, nos poderes que se lhe atribuíam acerca dos processos de heresia, na sua benevolência para com os perseguidos, comprada por custosos sacrifícios, consistia a principal, a quase única esperança dos cristãos-novos. Reduzido ao constrangimento, à nulidade, advertido pelo pontífice para sair de Portugal ao menor aceno d’elrei, e forçado por isso a curvar-se a todos os seus caprichos, Lipomano não podia de modo algum satisfazer aos compromissos com que viera, se compromissos havia. Durante a sua legação, não lhe faltaram da parte de D. João III os elogios de moderado e de honesto, e o leitor sabe avaliar a significação de tais elogios. Evidentemente o dinheiro despendido pelos agentes dos hebreus portugueses fora dinheiro perdido.

Uma circunstância vinha entretanto agravar ainda mais as dificuldades, a bem dizer insuperáveis, com que estes lutavam. Cedendo às ponderações dos cardeais Caraffa e Burgos, ambos dominicanos, Paulo III tinha resolvido criar em Roma um tribunal supremo da Inquisição. Apadrinhava a idéia o chefe de uma nova congregação religiosa, que no berço dava já sinais de imensa influência que devia vir a exercer no mundo. As representações enérgicas de Ignacio de Loyola tinha resolvido o papa a favor do novo tribunal, e era este um dos fatos de que posteriormente os jesuítas mais se ufanavam. A bula da criação expediu-se a 21 de junho de 1542, e Caraffa foi nomeado com o cardeal de Burgos e mais quatro para exercerem as funções supremas de inquisidores gerais. O mais ativo de todos era Caraffa, que em breve levantou em Roma, à própria custa, edifício apropriado à lúgubre instituição, pondo à frente desta, como comissário geral, um teólogo, Teófilo di Tropea, capaz de realizar as suas idéias de intolerância(589). As opiniões protestantes tinham coado na Itália, como por quase toda a Europa, e era sobretudo a combater as heresias desta ordem que as inquisições italianas se dirigiam; mas o judaísmo caía também debaixo da sua alçada, posto que a condição dos que seguiam a lei de Moisés fosse na Itália incomparavelmente mais favorável do que em Portugal. Ali, aqueles que, nascidos e educados na religião judaica, faziam dela profissão pública toda a sua vida, eram tolerados: d’aí, porém, não se seguia que aos que tinham recebido o batismo fosse lícito judaizar ocultamente, guardando no exterior as aparências do cristianismo.

Desde o começo da luta entre D. João III e uma parte dos seus súditos, os procuradores destes em Roma não combatiam a Inquisição pelos mesmos fundamentos que hoje a tornam odiosa aos olhos da filosofia; não controvertiam a legitimidade dos princípios em que a instituição se estribava; a tolerância evangélica mal se compreendia então, e invocá-la seria temeridade. O que todas as alegações dos cristãos-novos portugueses tendiam a provar era que os inquisidores procediam injustamente, atribuindo-lhes um crime que não cometiam. Em muitos casos assim seria: em outros afirmavam uma falsidade. Não só a razão o persuade, mas também os processos que nos restam provam ainda hoje que muitas das vítimas da Inquisição tinham efetivamente judaizado. O que era horrível e absurdo era a atrocidade das penas a que se condenavam milhares de indivíduos por atos de que só deviam ser responsáveis perante Deus. A compaixão que naturalmente inspira a sorte dos cristãos-novos diminui, porém, de algum modo quando consideramos neles esse conjunto de abjeção e de pertinácia próprio da sua raça. Os que nos cárceres e nos tormentos, diante do espetáculo de morte afrontosa, ousavam confessar sem rodeios a sua crença inabalável no Deus de Moisés eram raros. Não dominava entre eles esse ardor profundo e indomável que exaltava o ânimo dos primitivos mártires do cristianismo, ardor que em épocas mais recentes se reproduz na história dos sectários protestantes, no fanatismo sombrio dos puritanos ou dos calvinistas, e que temos visto renascer às vezes nos nossos dias pelo entusiasmo da liberdade. Perseguidos, perseguidores e os que, abusando do poder espiritual, mercadejavam com uns e com outros, simulando ora hesitação, ora imparcialidade, tudo era baixo e vil. Por isso, quando encontramos no meio de tão profunda decadência moral um carácter crente, enérgico, sincero, não é fácil defendermo-nos de uma admiração irreflexiva, embora esse carácter seja o de um fanático. Há épocas de tal corrupção, que, durante elas, talvez só o excesso do fanatismo possa, no meio da imoralidade triunfante, servir de escudo à nobreza e à dignidade das almas rijamente temperadas.

Era impossível que em Roma não se conhecesse perfeitamente que grau de verdade havia nas alegações dos cristãos-novos, e até que ponto se deviam acreditar as suas afirmativas a respeito da sinceridade do próprio cristianismo. Se acerca disso subsistissem algumas dúvidas, a hedionda história de Duarte da Paz bastava para desengano dos que ainda duvidassem. Segundo geralmente se dizia, o zelo de Diogo Antonio, que o substituira no encargo, não fora de melhor toque. As somas destinadas aos oficiais da cúria, para pagar as quais havia sido devidamente habilitado pelos seus comitentes, tinha-as convertido pela maior parte em próprio proveito, do que haviam resultado vergonhosas contendas, e até a expedição de censuras canônicas, para se haverem dos interessados os emolumentos devidos(590). Provavelmente, Diogo Antonio era da mesma escola de Duarte da Paz. Diogo Fernandes Neto, que lhe sucedera, parece ter procedido mais honestamente; mas a experiência dos hebreus portugueses quanto ao passado, a desconfiança, e uma economia mal cabida em tais circunstâncias, além do desalento geral, punham o novo procurador, como anteriormente vimos, em contínuos embaraços, e a falta de recursos, como também vimos, crescia à medida que aumentavam as dificuldades. Uma imprudência de Diogo Fernandes, ou uma cilada habilmente armada acabou de inabilitá-lo para desempenhar uma comissão que cada dia se tornava mais árdua.

Diogo Fernandes Neto foi acusado perante o papa de apóstata e judeu. Procedeu-se contra ele e saiu culpado. Prenderam-no. Cumpria que fossem graves as demonstrações de judaísmo dadas por esse homem, a quem a sua situação impunha o dever da circunspeção, para ser preso e processado num país onde se tolerava aos sectários da lei de Moisés a profissão pública das suas crenças. Dizia-se, até, que a fundação do supremo tribunal de fé em Roma tivera em parte por motivo o caso de Diogo Fernandes: ao menos tinham-no assim persuadido a D. João III, que a isso aludia dous anos depois escrevendo ao papa(591). Sem fazer grande conceito do cristianismo de Fernandes Neto, ocorre naturalmente ao espírito a suspeita de que o delito do procurador dos cristãos-novos fosse uma invenção habilmente dirigida para inutilizar os seus esforços e lançar o desfavor sobre uma causa quase perdida. O cardeal de Burgos era um dos membros do sacro colégio com quem a corte de Portugal estava em melhores termos(592), e o cardeal de Burgos, foi um dos principais propugnadores do estabelecimento da Inquisição em Roma. Quem pode hoje dizer se ele, além dos impulsos do fanatismo, tinha algum motivo secreto que ajudasse a inclinar-lhe o ânimo para se associar aos intuitos do cardeal Caraffa? Vemos que Baltazar de Faria intervinha ativamente, depois, no processo de Diogo Fernandes, e quando este, a troco de grossas peitas, chegou a obter permissão de sair do cárcere, sob pretexto de uma grave enfermidade de olhos, o agente do governo português não poupou esforços até o fazer voltar à masmorra em que jazia(593). Seria de admirar que esta perseguição viesse de mais longe, e que os homens que se deixavam corromper para darem temporariamente liberdade ao procurador dos cristãos-novos fossem igualmente corrompidos para lh’a tirar duas vezes?

O sucesso tinha outras conseqüências. Não se queria por esse meio obter só a vantagem de anular Diogo Fernandes. Baltazar de Faria ia mais longe. Os breves especiais de proteção contra o ódio dos inquisidores, expedidos a favor de pessoas residentes em Portugal, deviam, na opinião dele, ser derrogados, visto terem sido concedidos a instâncias de um indivíduo cujo cristianismo se tornava mais que duvidoso, o que os envolvia no vício de nulidade. Neste ponto o agente de Portugal insistia com todo o vigor, estribado na opinião de vários membros do sacro colégio, que eram do mesmo voto(594).

Tudo conspirava para a ruína dos cristãos-novos, por cujos interesses, depois da prisão de Fernandes Neto, só podia combater um homem assaz importante para obter algum resultado dos seus esforços, o cardeal da Silva; mas o cardeal da Silva tinha bastante que fazer em defender-se a si próprio. A vingança do rei devoto era persistente e implacável. Procurando todos os meios de acalmar a cólera de D. João III, o papa mandara oferecer por Pier Domenico o barrete cardinalício para o infante D. Henrique. Apesar, porém, do fanatismo; apesar da afeição que tinha aos esplendores e pompas eclesiásticas; apesar, enfim, do desejo de satisfazer a vaidade do irmão, D. João III rejeitara a oferta, encarregando o emissário de comunicar ao pontífice os fundamentos da rejeição. Tinha, tempos antes, observava ele, solicitado aquela graça da sé apostólica, e a resposta havia sido, primeiro longo silêncio, depois a eleição de D. Miguel da Silva. Para se chegar a um acordo sobre tal matéria a condição preliminar, que reputava indispensável, era a punição do prelado português, do modo que a exigia(595).

A situação do antigo bispo de Viseu tornava-se cada vez mais crítica. O cardeal Farnese, como ministro do avô, e um dos personagens de maior vulto na corte pontifícia, protegia-o: mas Farnese tinha a peito a questão dos três mil escudos de pensão em Portugal, que se podia considerar como resolvida depois de três anos de dilações e dificuldades. Devia por isso proceder com arte. Por outro lado a situação econômica de D. Miguel da Silva estava longe de ser próspera. Das rendas do bispado não recebia um ceitil desde que fora banido, e, ou que as liberalidades do papa não fossem para com ele demasiadas, ou que os seus poderosos parentes em Portugal receassem o desagrado d’elrei ministrando-lhe socorros, é certo que ele se via em grandes apuros para manter as exterioridades da sua jerarquia, apuros que o iam arrastando ao abismo de manifesta miséria. O dinheiro dos cristãos-novos, esse tinha de ser repartido por muitos e numa proporção calculada, não em relação a quaisquer serviços pretéritos, mas sim às maiores ou menores probabilidades de serviços futuros. Quanto, pois, aos recursos pecuniários, diante dos olhos do cardeal da Silva os horizontes eram assaz sombrios(596).

Embora custasse a Paulo III desamparar um homem a quem imprudentemente elevara tão alto, as circunstâncias obrigavam-no a ser circunspecto. Num consistório solene, em que se tratava de opor barreiras a excessos de poder temporal praticados em França e em Espanha com grave ofensa das liberdades eclesiásticas, e em que de feito se adotaram resoluções enérgicas, o papa tocou também no assunto das rendas do bispado de Viseu, de que o rei de Portugal, por meios diretos e indiretos, privava absolutamente o respectivo prelado; mas a queixa, apresentada frouxamente, não foi submetida a uma votação definitiva. Apenas o interessado a sustentou, evitando, todavia, acusar o soberano, e lançando toda a culpa dos vexames que padecia sobre os implacáveis inimigos que tinha em Portugal. O protetor de D. Miguel, o cardeal Alexandre Farnese, e seu primo o cardeal Santafiore guardaram prudente silêncio. Na verdade, uma ou outra voz menos autorizada se levantou aí a favor do perseguido prelado; mas, ponderando-se que seria justo pedir explicações a Baltazar de Faria antes de se adotar qualquer arbítrio, o consistório absteve-se de tomar conclusão alguma sobre aquele assunto(597).

Entretanto Baltazar de Faria, que não cessava de solicitar do papa uma resolução conforme com as instruções que levara Pier Domenico, avisado por Santiquatro do que se tinha passado no consistório secreto, redobrava de atividade. Como as célebres cartas em cifra ministravam as mais poderosas armas contra D. Miguel, e este se defendia dando-as como forjadas, exigia o papa que lhe fossem apresentados os originais para proceder contra ele. Parecia razoável a exigência; mas o agente português replicava que, sendo elas em cifra e não assinadas, os originais de nada serviam, ou antes não existiam. Podia-se, porém, perguntar: se esses documentos não serviam para convencer o pontífice, como tinham servido para convencer o monarca? E quem poderia dizer se era o rei, se era o bispo que falava verdade? Faria lembrou um arbítrio: Diogo Fernandes tinha sido de novo lançado nos cárceres da Inquisição: a carta em que se continha a de cifra era dele; interrogado àquele respeito diria se essa cifra era ou não do bispo cardeal(598). Ignoramos se o alvitre foi aceito: o que sabemos é que o cardeal de Burgos tinha nos recessos do tribunal da fé meios suficientemente enérgicos para obter do preso qualquer verdade de que carecesse o serviço do rei de Portugal.

Mas o que, sobretudo, podia ser fatal, tanto para os cristãos-novos como para o cardeal da Silva, era a solução de negociações que se abriram em Roma no decurso de 1542 e 1543. Corria uma por intervenção do cardeal de Burgos, outra pela de Farnese. A primeira era sobre a questão dos confiscos; a segunda sobre a aplicação das rendas do bispado de Viseu. Tinham decorrido sete anos dos dez em que pela bula de 23 de maio de 1536 os bens dos réus de judaísmo condenados ao fogo, em vez de caírem nas garras do fisco, passavam aos legítimos herdeiros dos justiçados. Este alívio temporário concedido às famílias da raça perseguida, que os cristãos-novos acusavam os inquisidores de iludir mais ou menos indiretamente, e que D. João III recordava a cada momento como prova da religiosa pureza das suas intenções, embora houvesse sido estatuído pelo pontífice, acabava em 1546. Que se faria depois? De acordo com o papa, o cardeal de Burgos propunha ordenar-se definitivamente a organização do tribunal da fé em conformidade com a que se lhe dera em Castela, uma vez que por certo número de anos metade dos bens confiscados aos cristãos-novos revertesse em benefício da cúria romana(599). Quanto às rendas do bispado de Viseu, o papa prometia alguma demonstração contra D. Miguel da Silva, se ao núncio fosse cometido tomar conta delas. Baltazar de Faria não estava longe de admitir esse acordo, se punissem o bispo como elrei exigia; mas tão cruel procedimento repugnava ao pontífice, que propôs o arbítrio de pedir ele positivamente para o tesouro pontifício aquelas rendas, satisfazendo de algum modo os desejos do monarca. Posto que não se comprometesse a obter d’elrei que aceitasse esta transação, todavia o agente português prometia aconselhá-la, logo que se desse ao seu monarca uma satisfação condigna, e que as somas que d’aí proviessem servissem para a obra de S. Pedro e não para acudir ao banido prelado. Efetivamente, escrevendo a elrei sobre o assunto, Baltazar de Faria insinuava a conveniência de satisfazer a cobiça do papa debaixo das restrições propostas, visto elrei não poder apropriar-se daquelas rendas. «Disto — acrescentava ele — tirará vossa alteza três resultados; vingar-se de D. Miguel, reduzindo-o a perpétua miséria, mostrar o seu desinteresse, e tirar dos deméritos desse homem meios para serviço de Deus, conciliando ao mesmo tempo o ânimo do pontífice(600).

Estas considerações não revelam sentimentos extraordinariamente evangélicos no procurador da Inquisição, e persuadem que ele não reputava melhores os d’elrei a quem lisonjeava com a perspectiva de baixa e interminável vingança, disfarçada, segundo acreditava, debaixo do manto hipócrita de pia generosidade. Baltazar de Faria avaliava bem D. João III. Nas suas missivas para Roma; nas suas representações ao pontífice, este príncipe nunca omitia ponderações sobre o imenso sacrifício que fizera à religião instituindo o tribunal da fé. Perdia diariamente súditos ativos, industriosos, opulentos: empobrecia o presente e sacrificava o futuro. Nesta parte, as suas reflexões, longe de serem exageradas, ficavam muito aquém da verdade. Mas os seus intuitos, a dar-lhe crédito, eram exclusivamente religiosos. A cobiça não o movia em cousa alguma, e a prova era a facilidade com que acedera a não se aproveitar dos bens dos réus condenados à morte por crime de heresia, bens que, em regra, deviam vir ao fisco. Se procurava reter à força no reino os cristãos-novos abastados, e impedir que pusessem em seguro as próprias riquezas, não era porque suspirasse pelo dia em que pudesse confiscá-las; era unicamente para os trazer ao bom caminho por esses meios indiretos de compulsão(601). Mas quando Roma lhe oferecia satisfazer completamente os seus desejos, habilitá-lo para salvar todas as almas, e soltar todas as peias ao santos furores da Inquisição, a troco de lhe consentir que devorasse durante alguns anos metade dos despojos ensanguentados das vítimas, o monarca vacilou. Respondendo ao seu agente sobre este assunto, recomendava-lhe que mentisse ao cardeal de Burgos, dizendo-lhe que escrevera ao infante D. Henrique acerca desta proposta para a comunicar a ele, e que o infante lhe respondera que elrei, não querendo tirar nenhum proveito material dos atos da Inquisição e tendo só em mira o serviço de Deus, estava pronto a vir a um acordo. Recomendava, porém, instantemente a Baltazar de Faria que, a tratar-se disto, reduzisse a quota o mais que fosse possível — à quarta parte ou ainda a menos — e quanto ao prazo, que nunca excedesse a seis anos(602).

Quando a hipocrisia e a cobiça, em vez de lutarem a ocultas no coração do homem, vem assim desmentir-se mutuamente nas palavras que saem dos lábios ou que a mão estampa sobre o papel, a indignação expira; porque só o asco é possível onde a maldade humana se confunde com a imbecilidade pueril. Há chagas que geram horror; outras há que só geram tédio.

Assim tudo se combinava para a última ruína dos cristãos-novos. A grande maioria do colégio dos cardeais inclinava-se para o partido de D. João III; Santiquatro e Faria não dormiam, e Diogo Fernandes jazia de novo nas masmorras da Inquisição. O papa afastava de si D. Miguel, e fingia que começava a convencer-se de que ele era merecedor de severo castigo. Esperava o resultado das suas últimas propostas. Por outra parte, o orgulhoso prelado via-se reduzido a vender as alfaias mais necessárias, e quase que só subsistia das esmolas dos hebreus portugueses. Os seus numerosos credores sitiavam já o pontífice, pedindo justiça contra ele(603). O pobre cardeal tornava-se naquela difícil conjuntura um bem débil aliado, porque a falta de dinheiro não era por certo o melhor título de consideração em Roma.

Em semelhante situação, quem não perderia a esperança? Não a perderam inteiramente os cristãos-novos. Fiel aos caracteres que a distinguiram em todos os tempos, aquela raça tenaz ainda tentou uma vez renovar a luta; salvar-se por um supremo esforço, que, por incompleto, teve a sorte de todos os anteriores. Numerosos, opulentos, engenhosos, ilustrados, faltavam-lhes os dotes mais nobres, o valor, o desapego da fortuna, o desprezo da vida diante da tirania, o sentimento indomável da dignidade humana e a consciência enérgica do próprio direito; dotes em que mais de uma vez os oprimidos têm achado recursos para fazer recuar os seus opressores. Com outros brios, os judeus portugueses teriam talvez padecido menos, e contraposto ao terror, que pretendiam incutir-lhes, graves apreensões que perturbassem as noites dos seus assassinos. Apesar das preocupações populares, ainda quando esmagados, teriam ao menos conquistado nos suplícios a consideração e as simpatias que nunca faltam à desgraça nobremente suportada, simpatias que, mais tarde ou mais cedo, fazem surgir das cinzas dos mártires os seus vingadores. A perseguição, que torna indomáveis os ânimos nobres, que os purifica e os eleva acima do vulgo nas épocas de profunda decadência, não os elevava a eles. À mentira opunham muitas vezes a mentira, à hipocrisia a hipocrisia, à corrupção a corrupção; mas não era nestas artes ignóbeis que podiam levar vantagem aos seus adversários. Depois, Roma sabia calcular: as grossas somas que eles podiam despender, e que despendiam de feito, era um ganho transitório; as pensões, que o rei de Portugal podia conceder, e concedia, eram permanentes e seguras. As graças temporárias, as demonstrações passageiras de proteção e benevolência correspondiam ao transitório: ao permanente deviam corresponder concessões definitivas. A cúria romana buscava conciliar tudo; o máximo lucro com a ponderação dos valores e com a mais alta probidade comercial no tráfico das cousas santas.

LIVRO VIII

Novos elementos de defesa preparados pelos agentes dos hebreus em Roma. — Clamores públicos na cúria. Coleção de documentos contra a Inquisição. Memorial dirigido ao cardeal Farnese. — Perseguição popular contra os cristãos-novos. — Quadro dos abusos e excessos das diversas Inquisições de Portugal desde 1540 até 1544. Resolve-se o papa a intervir na questão do modo mais eficaz. Escolha de um novo núncio para substituir o bispo de Bergamo. A corte de Lisboa, instruída das disposições da cúria romana, prepara-se para a contenda.

Resolvidos a tentar um esforço supremo, os cristãos-novos preparavam-se para o combate. Diogo Fernandes não podia por certo ser-lhes útil encerrado num cárcere; mas tinham em Roma agentes seus, enviados das diversas terras do reino onde eles eram mais numerosos e ricos, como Porto, Coimbra, Lamego e Trancoso. Esses agentes começaram a espalhar dinheiro com tal profusão, que Baltazar de Faria desde logo receiou o completo transtorno de um negócio que estava tão bem afigurado(604). Entre aqueles procuradores, o de Lamego, Jacome da Fonseca, parece ter sido encarregado do papel principal e de manter na cúria as relações gerais com os chefes da nação(605). A sede de ouro era tal naquela Babilônia de prostituição, que, quando o perigo extremo constrangia os judeus portugueses a porem de parte a habitual parcimonia e serem amplamente generosos, o primeiro embate tornava-se, a bem dizer, irresistível, e naquela situação apertada eles tinham compreendido que a parcimonia não era por certo o melhor instrumento de salvação(606).

Mas a ímoralidade extrema, triunfante naquela época, forcejava por guardar as aparências religiosas. D’aí nascia a necessidade de uma hipocrisia refinada. Nos documentos d’então que chegaram até nós, e que não eram destinados à publicidade, podemos hoje descortinar em toda a sua hediondez a gangrena que lavrava nos ânimos, mas a linguagem dos atos públicos ou oficiais era outra, e nunca, talvez, foi tão mesurada, tão pia, tão conforme à justiça; nunca as fórmulas exprimiram com tanta nitidez o sentimento da dignidade e do pudor, da unção religiosa, do desejo de seguir os caminhos de Deus. Pode a civilização moderna não ter feito os homens melhores, mas a hipocrisia, a mais vil das artes humanas, a amaldiçoada do Redentor, perdeu com ela quase todo o seu preço, e hoje, em boa parte até para o vulgo, os ademanes edificativos do hipócrita, as suas palavras modestas, os seus piedosos arrebatamentos movem a riso ainda mais do que a indignação.

Comprar a benevolência da corte pontifícia não bastava à gente da nação; cumpria torná-la possível de fato, e para isso era indispensável subministrar novos motivos ou pretextos a uma sexta ou sétima mudança de política na cúria, de modo que as mesmas aparências de zelo evangélico e de sede de justiça que serviam agora à causa da Inquisição viessem a servir com plausibilidade contra ela. E, com efeito, o procedimento dos procuradores dos cristãos-novos parece ter sido dirigido por estas considerações.

Vimos anteriormente que, no meio do desalento profundo dos hebreus portugueses, os mais opulentos entre eles, impelidos por um egoísmo covarde e por uma economia extemporânea, negavam recursos a Diogo Fernandes para a defesa comum, ao passo que ofereciam grossas somas para obter imunidades individuais, que os mantivessem incólumes no meio da ruína geral. As observações que Diogo Fernandes lhes fazia a este propósito eram por certo desinteressadas e sinceras. A união torná-los-ia mais fortes e as somas distribuídas entre os funcionários pontifícios para obter breves de proteção a favor desta ou daquela família, breves a que aliás os inquisidores podiam desobedecer sem graves embaraços, seriam muito mais eficazes empregadas juntas para obter resoluções de carácter genérico, e que servissem, não para uma, mas para todas as ocorrências. Em relação aos interesses de Roma, eram mais vantajosas estas concessões singulares, porque talvez lhe rendiam mais e porque a sua quebra, sendo um ato, a bem dizer, obscuro, não debilitava tanto a força moral da sé apostólica, ao passo que a desobediência a um ato de suprema autoridade, a uma providência de grande vulto e de aplicação universal e permanente, obrigava o papa a manter essa providência por interesse próprio, e em defesa de uma supremacia defendida sempre com ciúme pela cúria romana em todas as questões graves.

Entretanto é preciso confessar que as solicitações particulares não deixavam de ter influência no resultado do empenho comum. Esses queixumes continuados mantinham viva em Roma a lembrança das perseguições que se faziam em Portugal, e por muito corruptas que ali estivessem as consciências, os sentimentos de humanidade não estavam por certo mortos de todo. Na cúria devia haver mais de um indivíduo, não só probo e virtuoso, mas também assaz esclarecido para desaprovar os atos de intolerante crueldade de que em geral a Península era teatro, e a indignação destes homens, excitada diariamente pela narrativa de novos fatos mais ou menos atrozes, auxiliava poderosamente os esforços daqueles que favoreciam oprimidos, não por um sentimento de piedade ou de justiça, mas sim pelos ignóbeis motivos que os documentos vêm hoje revelar-nos.

Tais eram as circunstâncias que parece terem movido os agentes dos cristãos-novos a multiplicarem as solicitações da Inquisição, enquanto coligiam miudamente os atentados e violências de que era vítima a gente da nação, e todas as provas e documentos destes fatos, que aliás seriam, em parte, incríveis sem provas. Dianmente apareciam perante a cúria romana petições, solicitando breves a favor dos réus, presos por ordem do tribunal da fé, nas quais se apontavam flagrantes injustiças e abusos intoleráveis, até contra as próprias disposições da bula de 23 de maio de 1536, que estabelecera a Inquisição em Portugal. Naquelas súplicas, os atos dos inquisidores eram representados com as mais negras cores, e por certo com grande exageração. Os esforços de Baltazar de Faria não se limitavam, porém, a neutralizar o efeito moral dessas violentas acusações. O ativo procurador da Inquisição buscava impedir por todos os modos que os solicitados breves chegassem a expedir-se, tendo para isso de lutar às vezes até com o cardeal Parisio, que aceitara outr’ora a defesa dos cristãos-novos, e que numa situação mais elevada não abandonara os seus antigos clientes(607)

Àqueles meios de excitar a piedade, e de dispor os ânimos a favor de uma causa quase perdida, ajuntavam-se outros mais ruidosos. Nos tribunais, nas estações públicas e nos próprios paços do pontífice apareciam em grupos os cristãos novos portugueses que se achavam em Roma e, voz em grita, pediam proteção para seus pais, irmãos, parentes e amigos, que judicialmente eram assassinados em Portugal. Um dia em que Faria acabava de obter do papa a suspensão de um breve que se ia expedir a favor de uma certa Margarida de Oliveira, o filho desta veio lançar-se aos pés de Paulo III, pedindo justiça contra o agente do rei e da Inquisição, que forcejava por conduzir à fogueira aquela desgraçada. A veemência com que se exprimia o suplicante, que em tal conjuntura não parece provável representasse uma farsa, ultrapassou, como era natural, os termos de comedimento. A sua linguagem foi tal, que, por ordem do pontífice, os guardas o arrastaram para fora da sala. Comunicando este fato a elrei, Faria era de opinião que o impertinente solicitador fosse metido no porão de um navio apenas voltasse a Portugal e enviado para um presídio d’África(608).

Uma, porém, das mais fortes colunas dos cristãos-novos nesta conjuntura era, como acima dissemos, o cardeal Parisio, a cujo voto dava peso o ser abalizado jurisconsulto, tanto nas matérias civis como nas canônicas, que ensinara em Pádua e em Bolonha. As suas consultas eram célebres na Itália e haviam-lhe granjeado avultada fortuna(609). Era um adversário que mais convinha conciliar que combater. Faria empregou nisso a influência do cardeal de Burgos e de outros personagens. Tudo foi baldado; porque Parisio não disputava, mas prosseguia no seu empenho. Em pleno consistório propôs que se concedesse aos cristãos-novos um perdão geral, e sem a oposição tenaz do cardeal Del Monte, talvez o tivesse alcançado(610). Supondo que Parisio fosse pago pela gente da nação para tais demonstrações, poder-se-á dizer que, como cardeal, as suas mãos eram mais puras do que as de outros membros do sacro colégio, mas cumpre confessar que ele não esquecera a probidade relativa do advogado, que, pouco escrupuloso quanto ao modo de tirar proveito das causas que defende, serve todavia com lealdade os que lhe pagam o patrocínio.

Ao tempo que estas cousas passavam ocorriam fatos que justificavam aos olhos da própria Roma os clamores alevantados no seio dela. O procedimento dos inquisidores podia ser ou não justificável à vista da bula de 23 de maio; podia haver nos processos maiores ou menores irregularidades ou injustiças; podiam ser verdadeiros ou supostos os atos de judaísmo que serviam de pretexto à recrudescência de perseguição; mas que esta era terrível, implacável, sabia-o toda a Itália, porque via os seus efeitos. A emigração dos cristãos-novos portugueses tinha tomado dimensões extraordinárias. Em maio de 1544 Baltazar de Faria avisava elrei de que havia chegado a Ragusa uma nau carregada de fugitivos(611). A Síria e a Turquia da Europa recebiam diariamente no seu seio famílias portuguesas, que, à sombra da meia tolerância do islamismo, iam buscar essa mesma pouca liberdade religiosa que não achavam na pátria(612). Dez anos depois, só na cidade de Ancona havia perto de três mil judeus portugueses ou oriundos de Portugal, parte dos quais eram crianças já nascidas em Itália, e cujos pais, por conseqüência, tinham abandonado o país nesta época de mais feroz perseguição, ou pouco anteriormente. Em Ferrara e em Veneza era também grande o número deles(613). Muitos deviam acolher-se a outros pontos, onde, como temos visto no decurso desta narrativa, haviam já buscado refúgio os seus perseguidos irmãos. A Inglaterra, a França, mas sobretudo os Países-baixos fortaleciam a sua indústria e o seu comércio com os elementos de riqueza que o inepto chefe de uma pequena e empobrecida monarquia lançava fora com perseverança insensata.

O dinheiro e os clamores dos cristãos-novos, a sua expatriação sempre crescente, de que era testemunha a Europa inteira, e os documentos que obtinham de Portugal em prova da tirania que sobre eles pesava não teriam, porventura, bastado para lhes tornar favorável ainda uma vez mais a corte de Roma, se a questão do bispo de Viseu, desse aliado que os esforços dos agentes de D. João III parecia terem anulado, não viesse de novo influir desagradavelmente no ânimo do pontífice. Como vimos no fim do livro antecedente, Baltazar de Faria acedera até certo ponto a uma transação em que a vingança do rei se conciliasse com a avidez da cúria; mas o papa entendeu que era mais conveniente escrever ao núncio para que tratasse diretamente o negócio com o rei, limitando-se a propor que a administração, tanto temporal como espiritual, da diocese de Viseu fosse confiada a ele núncio, recebendo as rendas da mitra e de todos os benefícios que o bispo-cardeal desfrutara. Como, porém, Lipomano não manifestava a aplicação que se havia de dar àquelas rendas, o rei declarou categoricamente que não se opunha a que ele regesse espiritualmente o bispado, mas que, pelo que tocava aos rendimentos da mitra, a coroa continuaria a cobrá-los, conservando tudo em seqüestro como até aí, sem deles distrair cousa alguma até ulterior destino. Era, todavia, por este lado que a questão tinha importância para o núncio, que, à vista da terminante resolução d’elrei, recusou encarregar-se da administração espiritual(614). Fácil é de supor o efeito que tal resolução produziria na corte de Roma, depois das lisonjeiras esperanças que Baltazar de Faria deixara conceber ao papa. O desabrimento daquela resposta explica-se pela cegueira do ódio d’elrei contra D. Miguel; mas nem por isso é menos certo que ela fora assaz inconveniente numa conjuntura em que os cristãos-novos envidavam os últimos esforços na luta com a Inquisição.

A espécie de resenha ou memória redigida em Roma nesta época pelos agentes dos hebreus portugueses chegou até nós. Dela se vê que essa longa exposição de agravos foi dirigida a um membro do sacro colégio assaz poderoso para se obter por sua intervenção um resultado favorável. Quem podia ser ele? A maioria dos cardeais influentes inclinava-se visivelmente para o partido de D. João III, e D. Miguel da Silva experimentara à própria custa, no consistório em que o seu negócio se debatera, quão decisivas eram já essas tendências. Farnese achara prudente guardar silêncio naquela conjuntura, mostrando-se-lhe depois, se não adverso, indiferente, nas conversações particulares com Baltazar de Faria, ao que o obrigava o negócio da pensão sobre as rendas de Alcobaça, ainda não inteiramente terminado. Porém o neto de Paulo III não o abandonara de todo, como os fatos o provam. Assim, é de crer que os agentes dos cristãos-novos, de quem D. Miguel dependia, procurassem por intervenção do infeliz prelado mover o ânimo do cardeal-ministro, e que a este fosse dirigida aquela extensa exposição. Alexandre Farnese, vice-chanceler da igreja romana era o principal vulto político, o personagem mais influente da cúria. Podia-se dizer que não havia outro canal para fazer com que seu avô resolvesse os mais árduos negócios, nem Paulo III tinha outro canal por onde transmitisse aos príncipes da Europa as suas resoluções ou desejos(615). Fatos notáveis da vida do cardeal vice-chanceler provam que ele não hesitava em liberalizar aos judeus de qualquer parte do mundo a mais decisiva proteção quando dela necessitavam, e esses fatos foram tais, que motivaram as amargas repreensões de uma das mais nobres inteligências daquele tempo, o cardeal Sadoleto(616). São fáceis de pressupor os meios que para obter tão alta proteção empregaria a raça proscrita.

O Memorial dos hebreus é uma narrativa documentada da perseguição feita em Portugal aos judeus desde a conversão violenta de 1493 até 1544. Esta narrativa importante, que mais de uma vez nos tem subministrado o fio para sairmos do dédalo de multiplicados documentos, deve ser lida com precaução, porque não é nem poderia ser imparcial. Entretanto, é certo que ela se estriba não raro em instrumentos autênticos passados por magistrados e oficiais públicos, que decerto não queriam favorecer a raça perseguida. Outras vezes a narrativa é plenamente confirmada por documentos de diversa ordem, que ainda existem, e até há fatos em que a relação do Memorial é diminuta, acaso porque se ignoravam já, pela distância dos tempos, muitas particularidades que afeiavam os sucessos. Tal é a notícia da carnificina de 1506. No que principalmente peca essa espécie de manifesto é na exageração, não das cousas, mas do estilo, em que se não pouparam nem o excesso das metáforas, nem o arrojo das hipérboles, e que antes se deve atribuir aos que ordenaram e redigiram o escrito, do que aos que para isso subministraram os precisos elementos(617).

O que se deduz da introdução do Memorial é que as providências para mitigar os furores da Inquisição, prometidas pela cúria e pagas pelos cristãos-novos, não chegaram nunca a Portugal. A pensão arbitrada por eles ao bispo de Bergamo fora igualmente perdida. As circunstâncias que precedentemente descrevemos tinham suspendido indefinidamente a expedição das bulas relativas ao assunto e traçado ao núncio uma senda de moderação, ou antes de indiferença, de que ele não se atrevera a sair. Abandonados inteiramente à mercê dos inquisidores, a perseguição redobrou de violência, e os gritos dos que expiravam nas fogueiras respondiam em Portugal aos inúteis clamores que os agentes da raça perseguida alevantavam nos tribunais de Roma(618).

Se acreditarmos o Memorial, e nesta parte a narrativa é altamente crível, as famílias daqueles que solicitavam na cúria o favor do pontífice para seus aflitos irmãos eram alvo de uma perseguição sistemática da parte dos inquisidores. Os que tomavam aquele arriscado empenho não se votavam só a si a futuras e implacáveis vinganças; preparavam também o martírio de mulheres e de filhos, de pais e irmãos. De nada lhes servia solicitar e obter breves de exempção, ou em que se avocassem as causas dos réus já presos a um tribunal de juízes apostólicos, nomeados para esse fim. Se tais breves escapavam dos obstáculos que em Roma se punham à sua expedição, os inquisidores desprezavam-nos ou sofismavam-nos. Apesar dos esforços de Baltazar de Faria tinha-se, por exemplo, expedido uma nomeação de juízes apostólicos ao célebre arcebispo do Funchal D. Martinho e ao núncio, para entenderem na causa de Margarida de Oliveira. O expediente que seu filho empregara para mover o pontífice não fora são; mas tornou-o inútil a desobediência dos inquisidores. Então o papa avocou a causa à cúria, ordenando-se-lhe remetesse o processo original fechado e selado; mas esta resolução teve a mesma sorte da primeira, e a desgraçada viúva, carregada de anos e de enfermidades, esquecida no fundo de um cárcere, aí acabou provavelmente a sua dolorosa existência(619).

Entretanto esta contínua concessão de breves para casos especiais, concessão altamente rendosa para a cúria romana, não só incomodava Faria, mas também os membros da Inquisição, a quem esses breves, pelo menos, obrigavam às vezes a proceder com certa circunspeção, e a deixar apodrecer nas masmorras mais de um réu, que poderia ter servido para dilatar o espetáculo de um auto-de-fé. As ativas diligências diplomáticas que se faziam em Roma para chegar a uma conclusão definitiva nesta matéria não corriam com a rapidez desejada, e era preciso recorrer a remédios mais prontos. Procurou-se corromper com dádivas os procuradores dos cristãos-novos para guardarem silêncio, e com promessas mais avultadas, se quisessem retirar-se da cúria. Desenganados da ineficácia destes meios, recorriam às ameaças(620), e essas ameaças eram, como vimos, tremendas para os que tinham família em Portugal ou desejavam voltar à pátria.

A estes escândalos, mais ou menos secretos, acresciam os escândalos públicos. Como se não bastassem a espoliação e o assassínio debaixo das fórmulas judiciais, às vezes o povo fanatizado revelava em manifestações, mais ou menos insolentes, a sua má vontade contra essa parte da população votada ao extermínio, e os satélites da Inquisição julgavam-se autorizados para praticar publicamente contra os réprobos da sociedade toda a espécie de vexames e de ignomínias. Prisões irregulares, espancamentos, espoliações, insultos grosseiros repetiam-se cada dia: era a febre da intolerância que agitara a capital em 1506, diminuída na intensidade, mas estendendo-se largamente pelas províncias.

Um parte da população de Lamego era de cristãos-novos. Foi nos fins de 1542, como noutro lugar dissemos, que o supremo tribunal da fé estabeleceu ali uma delegação; mas já no meado do ano era sabido que esse fato não tardaria em verificar-se. O ódio dos cristãos-velhos, as suas esperanças de cenas atrozes manifestaram-se logo. Resta-nos um monumento curioso da malevolência popular contra a raça hebréia, o qual ao mesmo tempo é um espécime dos pasquins daquele tempo. Certo dia pela manhã apareceu afixado no pelourinho uma espécie de programa, obra de algum poeta popular, em que se delineava o modo como devia ser festejado o estabelecimento do novo tribunal. Os hebreus mais conspícuos da cidade eram distribuídos em dous grupos, um de instrumentistas, outro de dançarinos, e a cada indivíduo se assinava o modo e o lugar em que devia ir no auto, o que subministrava ao autor ocasião de aludir aos defeitos morais ou físicos das diversas personagens, ao mesmo tempo que lhes distribuía generosamente as qualificações de «cães», de «marranos» e outras equivalentes, assegurando a uns que não seriam ainda queimados naquele ano, a outros que brevemente figurariam num auto-de-fé. Os primeiros períodos do programa bastam para dar uma idéia da índole daquela composição: — «Demos a Deus infindas graças por vermos em nossos dias tirar vingança desta raça canina, herética e incrédula. Todos unidos entoemos-lhe um cântico por tal benefício, e guardemos bem guardadas quantas vides pudermos ajuntar, porque talvez nos chegue a faltar lenha para o sacrifício. E visto que esperamos aqui a santa Inquisição, ordenemos uma invenção com que possamos recebê-la dignamente etc.»(621). Estes sinais de má vontade aterravam a gente da nação, que via neles a expressão, não das idéias de um ou de outro indivíduo, mas das do vulgacho em geral. Assim o terror foi profundo em toda a comarca, apenas constou que um certo Gonçalo Vaz fora nomeado inquisidor. Houve quem logo fugisse; mas os mais cordatos, ou que contavam com poderosas proteções deram o novo inquisidor por suspeito, representando contra ele a elrei(622).

Triste recurso era, porém, dirigir súplicas ao chefe do estado. A insolência popular, nessa conjuntura, legitimava-se por atos do poder supremo, que não se pejava de pôr um estigma na fronte daqueles mesmos cristãos-novos contra os quais a Inquisição se abstinha de proceder, prova indireta, mas irresistível, da regularidade do seu procedimento religioso. Pouco depois dos insultos de Lamego, expedia-se em Lisboa uma provisão à Casa dos Vinte-quatro, para que nenhum mestre ou oficial dos ofícios mecânicos cristão-novo pudesse ser eleito Mestre, e ordenando-se expressamente ao Juiz do Povo que não o reconhecesse como tal, se fosse eleito. O rei ia mais longe do que a Inquisição(623).

O tribunal do Porto celebrara um auto-de-fé nos princípios de 1543. Estas execuções, que parece deveriam excitar o terror e a piedade, só serviam para irritar os ânimos contra os conversos. A fermentação manifestou-se logo em Barcelos. Um dia pela manhã todas as portas das casas habitadas por cristãos-novos apareceram com letreiros brancos, em que se designava a sorte que devia tocar a cada um deles. Numas lia-se a palavra fogueira, noutras cárcere perpétuo, noutras sambenito, noutras cinza, noutras, finalmente, queimado. Atribuía-se o insulto a alguns clérigos de ordens menores. As portas das habitações dos cristãos-velhos tinham sido escrupulosamente respeitadas. Os indivíduos a quem se aplicavam aquelas sentenças fatais eram em grande parte mercadores honrados e pontuais no cumprimento dos seus deveres civis e religiosos(624).

Mas estas demonstrações populares pouco valiam comparadas com as conseqüências dos extraordinários poderes de que os comissários e esbirros da Inquisição estavam revestidos. As instruções dadas aos magistrados e aos funcionários civis e militares eram tais, que bom ou mau grado seu, tinham de ser muitas vezes instrumentos desses homens obscuros, e não raro maus e devassos. Onde o mandado do inquisidor se apresentava todos curvavam a cabeça. Em 1543 as previsões malévolas do pasquim de Lamego haviam-se realizado: a Inquisição levara o terror ao seio das famílias hebréias daquela comarca. Uma parte dessas famílias tinha-se retirado para Trás-os-Montes. A Inquisição não se esquecera, porém, delas. Um esbirro fora enviado a fazer ali várias prisões. A lista era secreta, e os magistrados civis recolhiam aos cárceres as pessoas que ele verbalmente lhes indicava. Mais zeloso que os seus chefes, o esbirro ampliara a comissão que trouxera, e os inquisidores de Lamego tiveram, passado tempo, de mandar pôr em liberdade alguns indivíduos, retidos por supostas ordens suas no castelo de Vilareal(625).

Pode-se inferir d’aqui a que vexames ficariam sujeitos aqueles cujos nomes realmente se achavam incluídos nas listas de proscrição dadas aos agentes ou familiares do tribunal da fé. Na conjuntura em que tais fatos se passavam em Vila-real, a comarca de Miranda era teatro de cenas ainda mais vergonhosas. Elas servem para provar que a suspensão temporária dos confiscos, de que se fazia tanto alarde, e que se invocava como alto documento de desinteresse, era verdadeira ilusão, e que para reduzir à miséria as famílias das suas vítimas os inquisidores não careciam dessa pena absurda.

Um dos mais incansáveis Nembroths, dos mais rudes caçadores de homens, que a Inquisição teve nos primeiros tempos da sua existência foi um Francisco Gil. Este miserável tinha começado a carreira dos seus crimes pelo assassínio do genro de um mercador honrado de Lisboa, assassínio perpetrado publicamente no meio da Rua-nova(626). Revestido do cargo de solicitador do tribunal da fé, Francisco Gil foi enviado pelas províncias a descobrir os sectários ocultos do judaísmo. A empresa podia ser odiosa; mas não era nem arriscada nem difícil. O ativo agente achou logo um método eficaz e símples de obter avultada colheita. Chegando a qualquer lugar onde residissem cristãos-novos, mandava anunciar que em tal igreja se havia de fazer uma festa e procissão solene. Corria o povo ao templo no dia assinalado. Cheia a igreja, ele mandava fechar as portas, e em nome da Inquisição intimava aos fiéis, debaixo das mais terríveis excomunhões, que se no meio deles estavam alguns judeus ocultos, os bons cristãos lh’os indicassem(627). Então os desgraçados réprobos do povo eram mandados pôr à parte, e dali conduzidos para a cadeia, à ordem dos inquisidores(628).

No seu giro, o implacável comissário chegou a Miranda do Douro, e esse distrito parece ter sido um dos que lhe subministraram mais abundante seara de extorsões e violências. Foram presos naquela vila onze indivíduos de ambos os sexos. Cada um deles devia pagar-lhe quatorze mil reais, soma que o solicitador da Inquisição calculava ser necessária para se transportarem ao lugar onde, segundo as ordens do infante inquisidor geral, deviam ser retidos. Intimados judicialmente para aprontarem o dinheiro, resistiram todos, menos um pobre velho que jazia gravemente enfermo. Mandaram-se então inventariar e pôr em almoeda os bens dos réus, e estes foram removidos do Castelo de Miranda para o de Algoso, situado num ermo, a meia légua da povoação deste nome. Gaspar Rodrigues, o velho enfermo, fora aí arrematante das rendas reais. O povo tinha-lhe má vontade, e os cristãos-novos diziam que esta mudança era calculada para acender mais contra ele e contra os seus companheiros de infortúnio a sanha popular. No castelo de Miranda, construção sólida cingida por cinco torres alterosas, os simples ferrolhos dos alçapões do cárcere respondiam pela segurança dos presos: no de Algoso, ruína de antiga fortificação e longe do povoado, cumpria colocar guardas que obstassem a qualquer tentativa interna ou externa de evasão. As tropas concelheiras, únicas que então havia, foram chamadas para aquele serviço, e os fatos vieram confirmar as previsões da gente da nação. As injúrias das sentinelas ferviam sobre os encarcerados, e os camponeses mostravam para com Gaspar Rodrigues a mesma dureza de coração que provavelmente ele lhes mostrara como exator de tributos. A sua vingança estendia-se, porém, aos inocentes. Só a peso de ouro obtinham os presos os objetos mais necessários à vida, o lume, a água, os alimentos. Certo dia, os guardas acenderam em frente da prisão uma grande fogueira e lançaram dentro um cão que ficou reduzido a cinzas. Era, diziam eles, o que haviam de fazer aos judeus que guardavam, antes que d’ali saíssem. Entre estes havia uma Isabel Fernandes, mulher abastada, a quem Francisco Gil e o seu meirinho Pedro Borges tinham extorquido cem mil réis a pretexto de despesas de trânsito. Sem cama, sem uma camisa para mudar, a desgraçada chorava noite e dia. O esbirro ofereceu-lhe então, não só confortos, mas até a liberdade, se quisesse perfilhá-lo. Recusou. Redobraram os maus tratos e carregaram-na de cadeias. Vencida pela miséria e pela amargura, a infeliz endoideceu. Aos presos que não lhe davam qualquer objeto que lhes pedia, trocava o malvado os grilhões por outros mais pesados, ou fazia-os descer a um lugar profundo e úmido, onde os deixava metidos na água. Gaspar Rodrigues, ferido já pelos ferros, leso de uma perna e a bem dizer semimorto, passou por ambos os martírios. Francisco Gil acrescentava a estas barbaridades do seu meirinho uma singular extorsão: quando se lançavam ou aumentavam os grilhões aos presos, fazia-lhes pagar o custo deles. Às pessoas que se dirigiam ao castelo de Algoso para falar às vítimas, se acaso se demoravam mais tempo do que o permitido, impunha-lhes a multa de vinte mil reais, e mandava-as expulsar d’ali, quando não as encarcerava(629). Acaso as suas instruções eram estas, e talvez a multa, fixada de antemão pelos inquisidores, não revertesse em seu benefício. Fosse o que fosse, o que sucedia era que, às vezes, a troco de alguns cruzados de peita, os colhidos na rede remiam a prisão e a multa. O espírito, porém, de violência e de rapina dos dous agentes da Inquisição era tal, que eles próprios se tornavam não raro instrumentos indiretos da vingança das suas vítimas. A rústica milícia da comarca de Miranda não desfrutava gratuitamente o prazer de afrontar os presos de Algoso. Os lavradores tinham não só de velar o Castelo, mas também de fazer roldas e velas, ora num ora noutro lugar. Os indiciados de judaísmo não se reduziam aos onze mártires transferidos para Algoso. As listas de réus eram extensas; as capturas multiplicavam-se; e os habitantes de qualquer aldeia que não iam dormir junto do meirinho e dos outros esbirros, quando aí chegavam com algum preso, eram severamente multados(630).

Os inquisidores nomeados para as duas dioceses de Viseu e Lamego, foram o bispo D. Agostinho Ribeiro, transferido de Angra para esta última sé, um clérigo, mancebo de trinta e dous anos, chamado Manuel de Almada, e o doutor Gonçalo Vaz, vizinho de Lamego. Se acreditarmos as memórias dos cristãos-novos, memórias que aliás se referem a fatos naquela época geralmente sabidos, ou que se estribam nos poucos documentos autênticos que com extrema dificuldade podiam obter, e no testemunho, que nelas se invoca, de fidalgos e de membros do clero da mais elevada jerarquia; segundo essas memórias, dizemos, os dous colegas do bispo eram dous homens abjetos. Apesar da sua idade juvenil e da sua profunda ignorância, Almada já tinha sido vigário capitular no arcebispado de Lisboa, e fora aí o flagelo do próprio clero. As suas façanhas haviam soado em Roma, e uma das comissões que o núncio trazia era inquirir sobre esses fatos, a que só pusera termo a eleição de novo arcebispo. Gonçalo Vaz era secular e bígamo. Uma das mulheres com quem se dizia casado tinha parentesco, mais ou menos remoto, com uma grande parte dos cristãos-velhos de Lamego que maior rancor manifestavam contra a gente da nação, da qual ele também era encarniçado inimigo por demandas e rixas que tivera com indivíduos dessa origem. Os cristãos-novos tinham imediatamente requerido a elrei e ao próprio infante D. Henrique contra aquela inconveniente escolha; tinham invocado os mesmos motivos que na organização judicial haviam aconselhado a instituição dos juízes de fora. Tudo, porém, havia sido baldado. Não era a imparcialidade que se queria: era a perseguição.

Revestidos de uma autoridade que, em relação aos crimes de que lhes pertencia tomar conhecimento, não só os tornava independentes de todos os funcionários e magistrados civis, mas até convertia estes em instrumentos seus, os inquisidores de Lamego podiam satisfazer a salvo suas ruins paixões. O bispo parece ter sido o menos bárbaro, e por conseqüência o menos influente dos três comissários. Vaz e Almada dirigiam, a bem dizer, tudo. Os cárceres eram, às vezes, cárceres privados, nas residências dos inquisidores, e cada cárcere tinha apenas oito palmos em quadro. Os que deles saíam vinham, não raro, por tal modo inchados que não cabiam no vestuário. Artigos de suspeição, breves de exempção comprados em Roma, por alto preço, alegações de inocência, tudo era inútil. Os parentes dos presos que solicitavam em nome destes eram repelidos: os procuradores e advogados que se incumbiam da defesa dos réus incorriam desde logo no ódio dos inquisidores, embora fossem cristãos-velhos e pessoas nobres. O escrivão do tribunal estava inibido de dar instrumento aos culpados de cousa alguma, ao passo que a nenhum notário apostólico era lícito receber qualquer declaração dos réus, sob pena de multas e excomunhões. Um, que se atreveu a ir intimar a Manuel d’Almada uma suspeição por parte de um dos presos, foi encarcerado e multado, sendo solto por grandes empenhos, mas com juramento de não tornar a envolver-se em negócios da Inquisição. Alguns réus que insistiam em não os aceitar por juízes eram mandados para Lisboa. Velhos, mulheres honestas, donzelas pudibundas marchavam em levas para a capital, e esse largo trânsito convertia-se em dilatado martírio. Os guardas que os conduziam eram parentes de Gonçalo Vaz, a cada um dos quais os réus deviam pagar dous cruzados por dia. Entretanto o processo prosseguia em Lamego, sem audiência dos interessados, tomando-se, conforme se dizia, testemunhas que faziam ofício de depor contra os suspeitos de judaísmo e pagas para isso. Duas entre estas tinham-se tornado distintas naquela espécie de indústria. Eram marido e mulher. Correndo as casas dos cristãos-novos fintavam-nos como entendiam e, se duvidavam de pagar, ameaçavam-nos de ir depor contra eles. Como se isto não bastasse, o próprio bispo, do alto do púlpito, no meio das solenidades religiosas, impunha aos fiéis como um dever vingarem a paixão de Cristo indo dar testemunho contra os cristãos-novos, entre os quais, dizia o prelado, não havia um único bom. Ao mesmo tempo, em monitórios pregados nas portas das igrejas, fulminava aqueles que diziam que os inquisidores praticavam injustiças, ou que havia testemunhas falsas. Os que assim falavam eram, no seu conceito, fautores dos hereges e dignos de severo castigo.

Prendiam-se alguns indivíduos antes de denunciados: depois é que se tratava de lhes achar culpa. Para isto recorria-se não raro aos escravos e criados, que, conduzidos ao tribunal, quando de bom grado não queriam acusar seus senhores, eram a isso compelidos pelo terror. Outras vezes chamavam-se inimigos rancorosos dos presos e lisonjeavam-se com a perspectiva de tirarem, pelos seus depoimentos, completa vingança dos próprios agravos. Até as confissões auriculares serviam para inspirar às testemunhas o que deviam dizer, ao passo que se negavam papel e tinta aos encarcerados para comunicarem com as pessoas que se interessavam na sua sorte, e quando se tratava de atos judiciais em que os réus tinham de escrever alguma cousa, dava-se-lhes o papel numerado e rubricado pelo notário da Inquisição, examinando-se atentamente antes de se expedir. Apenas quaisquer cristãos-novos entravam nos cárceres, o inquisidor Almada divertia-se em ir designar o sítio em que se devia erigir o cadafalso, indicando com prolixidade infernal quais dos novos réus teriam de ser queimados. Em suma, as tiranias e violências eram tais, que as pessoas mais conspícuas de Lamego e os próprios magistrados civis não podiam ocultar a sua indignação. Os inquisidores, porém, longe de recuar diante dessas manifestações, respondiam com ameaças, lembrando-lhes que não estavam exemptos da sua jurisdição(631).

Eram estes fatos exagerados? Naqueles em que o testemunho dos queixosos unicamente os abona, a suspeita de que o fossem é legítima. Não assim nos que eram praticados à luz do sol; porque seria absurdo que, mentindo, os conversos apelassem para o testemunho público. Alguns há também de cuja existência temos provas irrefragáveis: tal é o seguinte, que se passava em Lamego naquela conjuntura. Um dos cristãos-novos que ali primeiramente se prenderam foi o rendeiro do almoxarifado, Gabriel Furtado. Chegou o contador d’elrei para lhe tomar contas; estava preso. Tinham-no fechado numa gaiola de ferro dentro de uma torre, e a gaiola recebia apenas a escassa luz de uma fresta defendida por duas grades também de ferro. Dar contas ali era impossível. A requerimento do agente fiscal, Gabriel Furtado foi conduzido fora da prisão com guarda à vista, para ser ouvido. O rendeiro do almoxarifado devia, porque também lhe deviam. Naturalmente, os contribuintes tinham escrupulizado de pagar os direitos reais a um judeu, a um herege encarcerado pelos inquisidores. Há muitas consciências timoratas assim. Não obstante, o agente achou uma solução à dificuldade: os bens do preso chegavam para cobrir uma parte da dívida; mas faltava completar essa fácil solução. Sem apontamentos escritos, incomunicável, não podendo recorrer a ninguém para cobrar os impostos, com os bens em almoeda, e reduzido à mendicidade, como pagaria o desgraçado cristão-novo o resto da própria dívida? Recorreu-se a um arbítrio. Por graça do inquisidor Almada, um tinteiro, uma pena e seis folhas de papel, rubricadas pelo notário da Inquisição, acharam acesso à lôbrega morada do herege, e uma lista de devedores públicos, traçada por simples reminiscências no meio da agonia moral, habilitaram o contador d’elrei para salvar, até a última mealha, os haveres de sua alteza(632).

Se estas e outras cenas análogas se passavam na diocese de Lamego, não eram menos bárbaras e opressivas as que ocoriam no resto do reino. A alçada da Inquisição de Coimbra estendia-se por todo este bispado e pelo da Guarda. Os comissários eram o dominicano Fr. Bernardo da Cruz, bispo de S. Tomé e reitor da universidade, e o prior da colegiada de Guimarães, Gomes Afonso(633). O bispo de S. Tomé tinha um gênio irascível e despótico, e detestava cordialmente os cristãos-novos. Das suas luzes e da nobreza dos seus sentimentos pode-se fazer idéia por uma carta que dele nos resta, dirigida a D. João III depois da sua nomeação para inquisidor, em resposta a outra, na qual elrei o consultava sobre o modo de organizar a Inquisição em Coimbra e de prover os cargos dela. Escrita num estilo deplorável, essa carta revela no bispo o não menos deplorável talento de cortesão abjeto. A acreditá-lo, a capacidade do príncipe, que não pudera aprender os rudimentos da língua latina, nem os de ciência alguma, excedia a de todas as inteligências do país reunidas. Propunha, a fim de se criarem recursos para as despesas do tribunal, se não os quisessem ir buscar aos rendimentos das mitras de Coimbra e da Guarda, que fossem suprimidas algumas cadeiras da universidade, nomeadamente de direito romano, e reduzidos os salários das que ficassem subsistindo. Dir-se-ia que o instinto lhe tornava odioso esse manancial inesgotável da ciência do justo. Dos lentes, só achava um capaz de ser promotor da justiça; os mais eram ou estrangeiros, ou cristãos-novos, ou desassisados. Para solicitador entendia ser propríssimo um oficial de sapateiro de Coimbra, e para meirinho propunha um criado seu, o qual, aliás, ele continuaria a conservar em casa. O digno prelado afirmava fazer o sacrifício de o ceder para aquele cargo, só pelo gosto que tinha em servir a Deus e a sua alteza(634).

Não tardaram a manifestar-se os intuitos do bispo dominicano na perseguição contra os cristãos-novos. A bula de 23 de maio de 1536 tinha mantido as disposições do breve de 12 de outubro de 1535 e da bula de 7 de abril de 1533: todos os crimes de heresia anteriores à data desse diploma ficavam cancelados, e não era lícito fazê-los reviver. Anunciando, porém, o estabelecimento do tribunal de fé em Coimbra e intimando os fiéis a que viessem denunciar todos os delitos contra a religião de que tivessem conhecimento, o bispo de S. Tomé deixou de fixar a data além da qual esses delitos eram como se não existissem. Esta circunstância engrossava desmesuradamente a lista dos réus, muitos dos quais foram presos e processados por fatos que se diziam praticados mais de dezesseis anos antes. Como se isto não bastasse, nos depoimentos de testemunhas omitia-se a distinção entre as de vista e de ouvida. Processos intentados civilmente contra essas testemunhas provaram depois que muitas delas eram falsas, e que as declarações de outras se tinham viciado. Atulhados de presos as escuras enxovias das torres do antigo castelo de Coimbra, muitos deles foram recolhidos em casebres imundos e fétidos. Carregados de ferros e incomunicáveis, quando algum obtinha dos inquisidores a permissão de falar com os seus, era preciso propiciar o alcaide(635), porque as chaves das prisões andavam em poder dele, e por mais súplicas que os encarcerados fizessem para terem um carcereiro fixo, nunca puderam obtê-lo. As audiências eram a portas fechadas, sendo a princípio só admitidos os advogados; e quando, à força de súplicas e clamores, se permitia aos filhos, irmãos, parentes, ou procuradores dos réus irem requerer verbalmente perante o tribunal, se falavam com liberdade, o bispo prendia-os e multava-os. A indignação que as suas arbitrariedades suscitavam era geral entre as pessoas ilustradas. Na ordem do processo ofendiam-se a cada passo as regras mais triviais da justiça. Os interrogatórios das testemunhas faziam-se com a mais escandalosa parcialidade, e o bispo reduzia facilmente ao silêncio as de defesa, ameaçando-as com excomunhões, assinando-lhes os limites dos depoimentos, e invectivando-as de mentirosas quando diziam cousas que lhe desagradavam. Às vezes servia-lhe de escrivão um rapaz de dezessete anos, seu sobrinho, que mal sabia escrever. Fácil é de conjecturar qual seria a gravidade, o acerto e a moderação do tribunal da fé, onde servia de escrivão uma criança analfabeta, de solicitador um sapateiro, de meirinho um criado particular do juiz, e onde o juiz era um homem para quem cristão-novo significava judeu disfarçado.

Numa representação dirigida a elrei contra os abusos da Inquisição de Coimbra, a gente da nação não se limitou a apontar em geral estas violências, acerca de cuja exação invocava o testemunho de pessoas conspícuas por letras e probidade. Desceu a individuar fatos. Enquanto se não passava de generalidades, é possível que as cores com que se fazia a pintura dos agravos fossem carregadas demais; mas quando se especificavam pessoas e circunstâncias; quando o exame da veracidade das afirmativas era fácil, supor que se inventavam novelas seria levar o cepticismo ao mais subido grau. Julgamos por isso conveniente apresentar aqui a descrição de algumas das cenas que se passavam na Inquisição de Coimbra, servindo-nos, a bem dizer, textualmente da narrativa contemporânea. A imaginação do leitor poderá assim suprir a descrição de muitas outras que ficaram esquecidas debaixo das abóbadas do castelo de Coimbra, e a cujos atores a pedra do sepulcro ou as chamas das fogueiras selaram para sempre os lábios.

Simão Álvares era um cristão-novo que viera do Porto, haveria nove anos, com sua mulher e uma filha de pouco mais de seis meses, residir em Coimbra. Esta família foi uma das primeiras sacrificadas. Pai, mãe e filha achavam-se nas prisões do castelo. Segundo parece, a denúncia contra eles falava de crimes de judaísmo perpetrados no Porto, e provavelmente faltavam testemunhas de acusação. O bispo precisava de provar esses crimes. Ocorreu-lhe um arbítrio para sair da perplexidade. Mandou vir à sua presença a filha do Simão Álvares, e pondo-lhe diante um braseiro cheio de carvões acesos, disse-lhe que, se não confessasse ter visto seu pai e sua mãe açoutando um crucifixo, havia de lhe mandar queimar as mãos naquele braseiro. A criança aterrada confessou que assim o vira fazer no Porto a seu pai, e o bispo teve a prova que desejava, embora a testemunha se referisse a uma época em que apenas contava pouco mais de seis meses de idade.

Tratava-se do processo de uns presos de Aveiro, marido e mulher. Uma criada que os seguira foi chamada à Inquisição, e dela exigiu o bispo que declarasse ter visto praticar a seus amos fatos contrários à fé. A declaração, porém, da testemunha foi exatamente o contrário. Irritado, o dominicano fê-la encerrar num cárcere. De tempos a tempos, mandava adverti-la de que, se queria ser solta, acusasse os amos. Resistiu sempre. Desenganado de que nem o amor da liberdade, nem algumas demonstrações de benevolência, a que recorreu, abalavam a constância daquele nobre carácter, chamou-a um dia ante si e, ele próprio tentou convencê-la. Tudo foi baldado. Aceso em cólera, o frenético frade começou a espancá-la com um pau até lh’o quebrar na cabeça e nas costas, deixando-a lavada em sangue, e o algoz sagrado fez lavrar o depoimento que quis ao som dos gritos da desgraçada. Este método de apurar a verdade parece ter sido o sistema predileto de Fr. Bernardo da Cruz, mas às vezes obtinha o resultado sem recorrer ao uso extremo do báculo pastoral, e contentava-se com despertar os ânimos remissos com bofetões e punhadas, incumbindo das varadas e açoutes os esbirros inferiores. É verdade que o sistema só era aplicado a gente ínfima ou a escravos. E até, quando estava de bom humor, o bispo limitava-se a deixar apodrecer os teimosos no fundo dos cárceres.

Na conjuntura em que os réus de judaísmo começaram a povoar as enxovias do castelo foram escolhidas para serventes dos presos uma criada do alcaide e a mulher de um mulato ali retido, ao qual tinham decepado as orelhas por crime de roubo. As duas serventes estavam possuídas da doutrina pregada pelo bispo de S. Tomé sobre a necessidade de vingar nos cristãos-novos a morte do Redentor. Os presos eram inexoravelmente roubados: roubavam-lhes até a comida. A fome vinha associar-se-lhes aos outros martírios. Eram tão contínuos os seus clamores, que o dominicano temeu lhe morressem de inédia essas vítimas que destinava às chamas. Foi-lhes permitido no fim de alguns meses o serviço dos seus familiares, e que recebessem das mãos deles os alimentos necessários à vida.

O dominicano era, pois, capaz de piedade. Tinha até acessos de bom humor, que manifestava de modo assaz expressivo. Gostava de mandar vir à sua presença mulheres casadas e donzelas pudibundas, encerradas nos escuros recessos do castelo de Coimbra com seus pais, irmãos ou maridos. Tratava então com singular humanidade de lhes afastar do ânimo os tristes pressentimentos, as idéias lúgubres, que as acabrunhavam. Debalde se mantinham em silêncio, e recusavam ouvi-lo: não lh’o tolerava. Fazia votos para que Deus lhes multiplicasse as venturas, e protestava que sua alteza, a rainha, não podia gabar-se de ter em seus paços tantas e tão formosas damas. Pundonoroso em provar o seu dito, extasiava-o a beleza dos olhos desta, as formas airosas dest’outra. Não menos o enterneciam os padecimentos do sexo frágil. Se alguma adoecia, ia-se-lhe assentar ao pé da cama, e, apesar de todas as resistências, pegava-lhe no braço e tomava-lhe o pulso. Talvez para esconder as suas apreensões acerca do estado das enfermas, distraía-as, enquanto estudava o progresso do mal, com observações de entendedor acerca dos contornos mais ou menos ideais do braço que retinha, e essas observações serviam-lhe de tema a uma série de facécias, por tal modo espirituosas, que o rubor do pejo subia às faces das desgraçadas, reduzidas a invocar a futura justiça de Deus contra tais infâmias, visto que os seus naturais vingadores jaziam, como elas, em ferros(636).

Quando a índole e os atos do primeiro inquisidor de Coimbra eram estes, pode conjecturar-se qual seria o procedimento dos seus delegados pelo vasto território que a jurisdição daquele tribunal abrangia. Nenhum, porém, mais que o d’Aveiro se mostrava digno de tal chefe. Era ele o vigário da igreja de S. Miguel, conhecido pela sua dissolução. Entregue à caça, ao jogo, e publicamente amancebado, a perseguição dos cristãos-novos veio agradavelmente distraí-lo das suas diversões ordinárias. Apenas revestido da delegação inquisitória, tratou de arranjar delatores e testemunhas. Repelido por muitos que procurou seduzir para exercerem esse odioso mister, não lhe faltou, quem o aceitasse, tanto mais desde que recorreu ao meio, já vantajosamente experimentado, de atiçar ódios pessoais e de lisonjear a sede da vingança. A pena d’excomunhão fulminada contra os que não denunciassem os atos de judaísmo de que tivessem notícia deu-lhe também delatores, e as injúrias, que não poupava aos que recusavam servir-lhe de instrumentos, submeteram ao seu império mais de um gênio tímido. Havia, contudo, um recurso contra as violências desse homem. Era a corrupção. Mais de um réu obteve a liberdade a troco de peitas, e até, quando as capturas dos cristãos-novos eram mais freqüentes, a concubina do vigário de S. Miguel andava de casa em casa, prometendo a uns e a outros que não seriam presos, se quisessem ser generosos. Acusavam-no geralmente de ter delapidado várias alfaias da igreja, de jogar as esmolas dadas para aplicações pias, de ter prendido a mulher de um cristão-novo, a quem devia dinheiro, para no meio do tumulto rasgar o escrito de dívida; acusavam-no de mais de uma solicitação infame feita no confessionário, e de revelar o sigilo da confissão para chegar aos seus fins. Como agente da Inquisição, como sacerdote, e até como homem, o delegado do bispo de S. Tomé era um miserável. O memorial dos hebreus portugueses, tratando da perseguição em Aveiro, menciona fatos que nos repugna descrever, e que até seriam inacreditáveis, se não se invocasse naquele memorial o testemunho de dezenas de indivíduos eclesiásticos e seculares de todas as jerarquias. Se tais fatos fossem inexatos, eles teriam sido altamente desmentidos por essas testemunhas que se invocavam, e que os cristãos-novos pediam instantemente que se ouvissem(637).

No meio dos furores da intolerância, o remoto e o impérvio de alguns distritos que, de ordinário, ainda hoje como que esquecem, para o bem e para o mal, na vida administrativa do país, não eram obstáculo para a mão de ferro da tirania ir lá pesar duramente sobre a raça que, porventura, esperava nesses distritos montanhosos e agrestes obter o esquecimento de um rei fanático e de uma corte hipócrita. Os desvios da Beira oriental formavam, como vimos, uma parte do vasto território dado para assolar ao dominicano D. Bernardo da Cruz. Entretido com a salvação dos encarcerados de Coimbra, o digno prelado não podia trabalhar com tanta atividade em manter a pureza evangélica por todos os lugares cometidos ao seu apostólico zelo. Mas, ao menos, na delegação dada ao vigário de S. Miguel em Aveiro mostrara que sabia escolher agentes que compreendessem as suas intenções. Além disso, o supremo tribunal da fé ajudava-o do modo possível naquela laboriosa missão. Em 1543, quando a perseguição era mais violenta em Coimbra, um membro do conselho geral do Santo-Ofício, Rodrigo Gomes Pinheiro, corria os distritos de Viseu e de Aveiro em perseguição do judaísmo(638). As denúncias e as capturas estenderam-se em breve para a parte oriental da província. Numerosas famílias de cristãos-novos habitavam nessa época em Trancoso, e é bem de crer que ali se tivessem conservado mais vivas as crenças judaicas. As cenas de violência que se passaram naquela vila, então populosa e opulenta, foram terríveis. Apenas aí chegou, o comissário da Inquisição mandou lançar bando proibindo a saída da vila a todos os cristãos-novos e declarando que os contraventores seriam desde logo considerados como hereges. Este bando, acompanhado das admoestações usuais feitas dos púlpitos abaixo, chamando os fiéis a delatarem todos os suspeitos de judaísmo e descrevendo miudamente quais fatos o deviam tornar suspeitos, produziu tão viva impressão, que, longe de obedecerem, os cristãos-novos fugiram imediatamente quase todos, abandonando casa, bens e filhos. Trinta e cinco que ficaram foram logo presos, prova evidente de que o medo dos fugitivos fora bem fundado, ou que de antemão sabiam a sorte que os esperava. A fama do que sucedera em Trancoso soou pelos povos circunvizinhos e gerou uma verdadeira revolta. Os camponeses das cercanias correram armados à vila em número de quinhentos, arrastados pela esperança de poderem cometer todos os excessos à sombra do zelo religioso. Os fugidos e presos eram ricos, as suas famílias não tinham quem as protegesse, e a gentalha pôde a seu salvo perpetrar toda a sorte de violências e atrocidades. Trezentas crianças vagueavam pelas imediações, sem abrigo, sem rumo e dispersas, chamando em alto choro por seus pais. Os trinta e cinco cristãos-novos que se haviam deixado prender foram arrastados até Évora, e aí lançados nas escuras masmorras chamadas as covas da Inquisição(639).

O tribunal da fé, funecionando por este modo, era mais do que tirania; era a anarquia vindo da autoridade. Nas revoluções de iniciativa popular há sempre os elementos de ordem que combatem os seus desvarios; que, mais tarde ou mais cedo, as subjugam ou as transformam, quando caminham à negação da sociedade; quando derribam mais do que lhes cumpre derribar. Aqui eram os elementos principais da ordem, o sacerdócio, a monarquia, a magistratura, que tumultuavam na praça, que agitavam a plebe e a impeliam contra uma classe pacífica e obediente, que representava em grande parte, na máxima talvez, as forças econômicas do país, era a subversão dos princípios fundamentais da sociedade civil, subversão proclamada em nome do evangelho. Nunca, nem antes nem depois, o cristianismo foi caluniado assim. Até os juízes pedâneos, que constituíam o último anel da cadeia na jerarquia judicial, se erigiam de motu-proprio em comissários da Inquisição, mandavam publicar as monitorias dos inquisidores, e procediam como delegados do tribunal. Lugares houve onde as autoridades civis superiores e os donatários das terras foram constrangidos a meter na cadeia aqueles defensores da religião improvisados, para obstar de algum modo a uma completa anarquia(640).

Se, porém, alguns oficiais públicos impediam às vezes as últimas conseqüências da excitação do vulgacho, outros havia, que, assegurando-lhe a impunidade, mantinham a eficácia das causas que geravam tantos desconcertos. Na Covilhan o povo fez uma conjuração para em certo dia queimar todos os cristãos-novos. Era a Inquisição reduzida à sua mais simples fórmula. Chegou a romper o tumulto, e a acenderem-se fogueiras diante das portas das vítimas designadas. Ignoramos como se apaziguou a desordem. Abriu devassa o ouvidor do infante D. Luiz, donatário da Covilhan, interrogaram-se testemunhas, e verificaram-se os fatos. Requereram os interessados certidão no processo. Negou-se-lhes, apesar das leis do reino. Recorreram ao tribunal supremo, que ordenou se passasse a certidão requerida. Desobedeceu-se. Queixaram-se os agravados ao regedor das justiças. Este mandou então vir à sua presença os escrivães do processo e o próprio processo. Vieram; mas os papéis sumiram-se nas mãos do chefe da magistratura. Pouco depois foi por ele chamado o procurador dos ofendidos, e ordenou-se-lhe que não desse mais um passo acerca daquele negócio. Convencidos de que não podiam esperar da sociedade nem proteção nem justiça, os cristãos-novos da Covilhan abandonaram os seus lares, fugindo do reino os que tiveram para isso ensejo(641).

Havia fatos tão públicos, que não podiam ser negados pelos fautores da Inquisição, embora tentassem obscurecê-los e desculpá-los. As tiranias, as violações do direito, do próprio direito excepcional inventado para os tribunais da fé, os tormentos físicos e as agonias morais que se curtiam no interior de lôbregos calabouços, isso sim. Para os negar bastava uma pouca de impudência. Devemos hoje, porém, acreditar as negativas dos algozes ou os queixumes das vítimas? Os inquisidores tinham adotado um arbítrio, que supunham ou fingiam supor eficacíssimo para apurar a verdade. Era servir-se da confissão de um réu contra outro réu, que, como tal e por se achar ligado a eles por laços morais, devia ser-lhe favorável. Estas confissões extorquiam-se com os tratos. No potro ou na polé, o filho não duvidava de acusar o pai, o marido a mulher, a mãe a filha. Acusariam Deus, se o inquisidor lhe desse a entender que semelhante acusação os livraria daqueles intoleráveis martírios. Os cristãos-novos aplicavam à verificação das próprias afirmativas uma doutrina análoga. Pediam inquéritos civis; invocavam o testemunho de cristãos-velhos, invocavam-no com confiança; citavam em favor do seu dito sacerdotes, nobres, funcionários, magistrados, homens, enfim, que por situação, por hábito, por educação, por lisonja ao monarca deviam ser, em tese, parciais da Inquisição. O que faltava era o potro, a polé, o leito de palha podre dos cárceres, a escassez do alimento, a noite perpétua da masmorra, para as compelir a depor deste ou daquele modo. Esperavam apenas os perseguidos que a probidade e a consciência desses indivíduos falasse mais alto do que o espírito de parcialidade, do que as preocupações religiosas, do que o temor do despeito ou o desejo da benevolência do príncipe. A sua desvantagem em relação aos inquisidores, era incalculável, imensa: e todavia, as atrocidades que se perpetravam em Aveiro, em Coimbra e por outras partes, não pretendiam que as acreditassem sob sua palavra: eram por dezenas as testemunhas que citavam na larga exposição dirigida a D. João III em nome da gente da nação em 1543, documento solene, em que ainda luz um resto de esperança na justiça humana. Que pediam eles ao rei? Que praticasse este negócio com os do seu conselho e com os grandes do reino, entre os quais havia muitas pessoas judiciosas, prudentes, discretas, instruídas e de boa consciência, mas que não atendesse a homens suspeitos, tais como os frades de S. Domingos, inimigos da raça perseguida, e cujo ódio inveterado tinha por incentivo o castigo que D. Manuel dera aos motores dos assassínios de 1506(642). Queixando-se em especial dos desvarios ferozes do bispo de S. Tomé, solicitavam apenas que se mandasse a Coimbra, à custa dos réus, qualquer indivíduo de sã consciência e de alta jerarquia, que se informasse da verdade acerca de cada um dos agravos que enumeravam, dando-lhes tempo para provarem plenamente aquilo sobre que restassem dúvidas. Apurada a verdade, pediam não a liberdade, não a reparação, mas simplesmente serem processados de novo por pessoa que respeitasse o direito e a justiça(643). Que o leitor decida se quem mentia eram os que assim suplicavam, ou os que negavam que os seus atos, praticados a ocultas, na escuridão dos calabouços, fossem acordes com os que, sem pudor, sem respeito à sua responsabilidade moral, praticavam à luz do dia.

O que se passava nos bispados de Coimbra, de Lamego, de Viseu e da Guarda repetia-se com leves mudanças nos do Porto, Braga, Évora e Lisboa. No Porto a Inquisição tomara uma fisionomia particular. A sua existência tinha-se ligado com uma questão econômica. Era então bispo da diocesse o carmelita D. Fr. Balthasar Limpo, sujeito que passava por ilustrado e austero, e que, conforme se pode ajuizar das memórias que dele nos restam e da sua correspondência, não era de certo homem vulgar. Supomo-lo, até, sincero no seu zelo religioso. A nobre e independente linguagem com que falava ao papa sobre a reforma da igreja, e a sua isenção de opiniões no concílio de Trento provam que o carácter do bispo do Porto era bem diverso do do bispo de S. Tomé(644). Mas o desabrimento de D. Fr. Balthasar claramente indica um carácter impetuoso, ardente, inflexível e absoluto nas suas opiniões. Que a uma índole destas se associem profundos sentimentos religiosos, e ter-se-á um fanático. A religiosidade, ou natural, ou adquirida pela educação, lançada no molde de um espírito tenaz mas suave, produz o mártir; unida a um gênio irritável e audaz, produz o perseguidor. O fanatismo e a violência são inseparáveis onde a violência é possível. Quando o fanático ultrapassa os limites do moral e do justo é porque, pervertida a razão, a consciência que se ofusca lhe diz que a religião o exige. Transposta a barreira da consciência, não há abuso ou crime a que ele não possa atingir sem ser em rigor criminoso. É nisto que se distingue do hipócrita: é na diferença de responsabilidade. Infelizmente, porém, na história a distinção é difícil, e às vezes inteiramente impossível. Na presente hipótese, desejaríamos bem achar plena prova da irresponsabilidade de D. Fr. Balthasar Limpo.

A existência da Inquisição no Porto, dissemos nós, tinha-se ligado com uma questão econômica, ou antes fora precedida por esta. O bispo concebera o desígnio de construir uma igreja no sítio onde estivera em outro tempo a sinagoga, a qual era contigua ao bairro onde habitavam os cristãos-novos da cidade, ou pelo menos a maioria deles. Os restos da sinagoga que o bispo carmelita queria converter em igreja estavam situados na rua de S. Miguel(645), meia desabitada, e cujos edifícios em ruínas pertenciam pela maior parte a famílias hebréias. Haviam os proprietários solicitado naquela conjuntura que, para se restaurar e repovoar essa rua, uma das principais da povoação, fossem arruadas ali as lojas de tecidos de lã. Posto que já resolvida favoravelmente a súplica, tinham-se ainda suscitado dificuldades que retardavam a execução do desígnio. Querendo nessa conjuntura obter recursos para a edificação que tentava, o bispo convocou os cristãos-novos, e pediu-lhes que declarassem a soma com que cada um se oferecia a contribuir para aquela piedosa empresa. Declararam eles que, no estado em que as cousas se achavam daria cada um três ou quatro cruzados, mas que, se a pretensão que tinham chegasse à execução, construiriam eles a igreja, contribuindo para isso generosamente. Aceitou o bispo a condição; mas as dificuldades continuaram, e os cristãos-novos, talvez injustamente, começaram a acusá-lo de deslealdade, e de que, longe de favorecer o negócio do arruamento, punha em segredo por obra tudo quanto era possível para impedi-lo. A desconfiança mútua trouxe a irritação: a irritação as pretensões infundadas. O bispo exigiu os recursos prometidos: os cristãos-novos negaram-se positivamente a subministrá-los antes de se realizar a condição que limitava a promessa. A cólera do prelado traduziu-se então em ameaças terríveis de vingança, e a vingança não tardou a realizar-se desproporcionada à ofensa, se é que realmente a havia.

A gente hebréia ficou aterrada. O Porto tinha presenciado mais de uma cena violenta, fruto do carácter irascível do carmelita. O procurador dos feitos da coroa fora já mandado espancar por ele, em conseqüência de ter ofendido certos direitos episcopais no exercício do seu cargo, e um sobrinho do conde da Feira, que passara pelo prelado sem se descobrir, fora por ele insultado e advertido de que a repetição da descortesia talvez lhe custasse a vida. O ruído que fez o sucesso trouxe um inquérito judicial, que o carmelita só pôde impedir, suplicando a intervenção do próprio conde da Feira. Tal era o homem que os cristãos-novos tinham tido a imprudência de irritar.

O bispo do Porto sabia até onde chegavam seus direitos episcopais; sabia que para ser inquisidor na própria diocese não precisava da autoridade da Inquisição. Começou, portanto, a processar os cristãos-novos. O concelho geral não tardou a estabelecer uma delegação sua no Porto, mas o prelado, no qual virtualmente a própria bula de 23 de maio de 1536 reconhecia o direito de se ingerir naquelas matérias, não se esquecia, ou residindo na diocese ou na corte, de agravar a sorte da raça proscrita, cujas queixas eram principalmente dirigidas contra a sua autoridade. Não tardou que ao norte do Douro se repetissem as mesmas cenas de tirania, de espoliação e de imoralidade que se representavam no centro e no meio-dia do reino. Eram as mesmas monstruosidades na ordem dos processos, a mesma corrupção das testemunhas pelos afagos ou pelo terror, as mesmas extorsões dos agentes inferiores. A Memória que nos serve de guia, dirigida ao infante D. Henrique acerca do procedimento da inquisição do Porto(646), não é assaz explícita em relação ao membros daquele tribunal. O que parece é que um dos inquisidores de Lisboa, Jorge Rodrigues, fora para ali enviado, mas que o bispo dirigia tudo, ou como principal comissário, ou pelo direito que lhe provinha da sua qualidade de diocesano, e pelo absoluto do seu carácter. O ódio do antigo carmelita não se limitava já aos que o tinham ofendido; era uma guerra de morte a toda a gente de raça hebréia. Dirigindo-se a Mesão-frio, cuja população não excedia naquele tempo a centro e trinta ou cento e quarenta habitantes, ouviu, só num dia, o depoimento de quase trezentas testemunhas acerca dos cristãos-novos da vila, É fácil de imaginar como as perguntas seriam feitas, como escritas as respostas, e quantos ficaram culpados. Em vila do Conde e Azurara passavam-se fatos análogos. No Porto havia nove indivíduos que tinham tomado o ofício de testemunhas contra o judaísmo, jurando em quase todos os processos por parte da justiça. Entre eles distinguia-se uma Catharina Rodrigues, mulher pública da mais baixa esfera, que se prostituía até a escravos. O escrivão do tribunal, Jorge Freire, antigo recebedor de certas rendas da mitra, até então assaz pobre, enriqueceu brevemente no novo ofício, exemplo que não foi baldado para os outros oficiais. Nada disto via o bispo, a nada atendia, cego pelo rancor. A própria Catharina Rodrigues achava nesse duro e terrível sacerdote favor e trato benévolo. Quando os réus, apesar de todas as dificuldades que lhes punham à própria defesa, alcançavam provar que as denúncias e depoimentos dados contra eles eram puras calúnias, e não havia remédio senão soltá-los, os denunciantes e as testemunhas falsas ficavam impunes, e se algum dos agravados lhes movia ação nos tribunais civis, era de novo acusado e preso. A parte imoderada que o bispo tomava na decisão das causas despertou o ciúme do inquisidor Rodrigues; mas este ciúme, que noutras circunstâncias poderia aproveitar aos réus, tornava-se inútil pela situação relativa dos dous membros do tribunal. Jorge Rodrigues, velho e paralítico, posto que hábil jurisconsulto, apenas opunha frouxa resistência ao fogoso carmelita, que, educado num convento, não tivera ocasião de cursar os estudos canônicos. Assim, as sentenças em geral não representavam senão o voto incompetente do prelado, e o inqusidor delegado, quando as achava injustas, limitava-se a recusar publicá-las em audiência, ou a declarar no ato da publicação que o seu voto fora contrário, mas que tivera de ceder à inflexibilidade de D. Fr. Balthasar. O promotor da Inquisição, João do Avelar, homem de costumes dissolutos, era, bem como todos os outros ministros e agentes do tribunal, criatura do bispo. Tinham-lhe conciliado o favor deste a violência do seu gênio e o profundo rancor que manifestava contra os cristãos-novos. No exercício das suas funções, João do Avelar não reprimia aquela, nem ocultava este. Quando lhe apresentavam um desses breves de proteção especial que os cristãos-novos costumavam comprar no mercado de Roma para se esquivarem às atrocidades do tribunal da fé, protestava logo contra ele, chegando a ponto de dizer, escumando de raiva, que era mais fácil deixar prostituir por elrei uma filha sua, do que reconhecer a validade de tais breves. As audiências e julgamentos da Inquisição do Porto davam campo a cenas não menos apaixonadas da parte de D. Fr. Balthasar; cenas que são fáceis de imaginar, lembrando-nos de que, como era natural, aqueles que tinham suscitado a perseguição, recusando dar as somas prometidas para a nova igreja, não foram dos últimos a entrar nos cárceres do Santo-Ofício. Henrique Luiz, um deles, foi condenado a dez anos de reclusão; mas o bispo achou repugnância nos seus colegas a irem mais longe, e a condená-lo a vestir o sambenito. Venceu, por fim, declarando que, se nisso havia injustiça, tomaria a responsabilidade dela perante Deus. Pode supor-se quão acesa cólera deviam excitar no seu ânimo as testemunhas favoráveis aos réus, sobretudo quando os depoimentos eram precisos, e não achava meio de os atenuar ou de fazer titubear a testemunha. Prorrompia não raro em afrontas contra esses que assim ousavam contrariar os seus intuitos. Os epitetos que lhes dava de cães, de judeus mais judeus que os acusados, e o cuspir-lhes na cara eram amenidades a que Fr. Balthazar recorria às vezes para os conduzir ao silêncio. Os abusos dos ministros subalternos condiziam com este ódio fanático do bispo, ao qual a cegueira da paixão levava quase à demência. Alguns oficiais honestos, a quem aquelas demasias repugnavam, demitiam-se dos cargos, e por esse mesmo fato os agentes que debaixo da capa do zelo encobriam as suas ruins tenções mais facilmente podiam realizá-las. O primeiro escrivão do tribunal havia-se escusado por desgostos desta espécie, mas o que lhe sucedera, membro como ele do cabido, soubera amoldar-se melhor às idéias do prelado. O carcereiro e o guarda dos cárceres também pertenciam ao bando dos zelosos. Antigo criado de D. Fr. Balthazar Limpo, o carcereiro escolhera um guarda que fosse instrumento da própria maldade. De concerto, os dous oprimiam por mil modos os réus para lhes extorquirem dinheiro e submeterem-nos a todos os seus caprichos, fazendo ao mesmo tempo acreditar ao bispo que as suas mãos eram puras, e que só o zelo os tornava rigorosos até a crueldade. A carceragem de cada preso era de ordinário uma ou duas dobras; mas quando a riqueza, verdadeira ou suposta, de alguns deles acendia a cobiça do carcereiro, a taxa subia, às vezes, a vinte. A sorte dos que não podiam pagar era desgraçada. O guarda completava por sua parte as extorsões do carcereiro. Sem dinheiro não se abriam as portas para os advogados e solicitadores falarem aos presos, e nem sequer para entrarem nas lôbregas masmorras as cousas mais necessárias à vida. Posto que casado, Antonio Pires (era este o nome do chaveiro) parece que achava longas e tediosas as horas passadas nos claustros inquisitoriais. Havia aí duas cristãs-novas, mãe e filha, julgadas já, e cuja sentença fora cárcere perpétuo com o trajo chamado sambenito. Estas mulheres estavam à mercê de Antonio Pires, e palavras de um amor brutal soaram, acaso pela primeira vez, naqueles recessos umedecidos do suor de mil agonias. A donzela foi desonrada. Essa infeliz, para quem na primavera dos anos tinham deixado de existir as torrentes da luz do sol, os aspectos do firmamento, os verdores dos bosques e campinas, a alvorada e o crepúsculo, o aroma e o matiz das flores; para quem, ao passo que, por assim dizer, se lhe afundira ante os olhos a natureza física, se lhe haviam afundido também todas as esperanças do mundo moral, e cuja vida de dilatados horizontes só ficara povoada por dous sentimentos, o da perpetuidade do cárcere e o de saudades inúteis, devia ser bem desgraçada! A masmorra era-lhe como pátria adotiva; o sambenito vestidura e mortalha. Que pensamentos seriam os seus quando, prostituída, e tendo por testemunha da prostituição um amor de mãe, a consciência lhe disse que descera ainda um degrau que parecia não poder existir na escala das misérias da vida? Em circunstâncias daquelas, o coração humano ou estala, ou se alevanta à terrível grandeza de um coração de demônio. Verificou-se o segundo fenômeno. A vítima de Antonio Pires chegou a gloriar-se da desonra, mostrando orgulho de trazer no seio o fruto de torpe adultério. Eumênide no meio das suas antigas companheiras, era ela quem completava os tratos de polé e do potro, quando os esbirros davam tréguas aos martírios. A humilhação e as privações das que eram infelizes sem serem infames como que lhe refrigeravam o espírito. Os seus caprichos eram lei. À menor desobediência, a vingança descia pronta; o feroz Antonio Pires distribuía com mão larga os maus tratos e as injúrias, impedia a entrada dos alimentos, e inventava quantas opressões lhe sugeria o seu ânimo danado. Se acreditarmos as memórias dos cristãos-novos, estes fatos eram públicos no Porto. Não podia, portanto, o bispo ignorá-los. E D. Fr. Balthasar Limpo, esse homem, que, poucos anos depois, trovejava no Vaticano contra a imensa corrupção de Roma; que fazia curvar a fronte do pontífice diante das ameaças proferidas por ele em nome de Deus, tolerava os dramas repugnantes que se passavam nos calabouços da Inquisição, como se fossem uma obra pia e digna de louvor. Exemplo tremendo dos princípios a que podem arrastar-nos as três piores paixões humanas, o fanatismo, a vingança, e o orgulho insensato(647).

Em Évora o procedimento da Inquisição, posto que regulado pelo mesmo espírito de malevolência implacável que dominava esta instituição nas províncias do norte, apresentava um carácter particular. D. João III e o infante inquisidor-mor tinham singular predileção pela cidade de Sertório, onde não raro residiam por meses. O rei e a corte estavam acordes em pensamentos com os inquisidores, mas os atos em que às perseguições atrozes se associavam publicamente e devassidão, o roubo, os insultos grosseiros, os atos tumultuários nas praças ou no tribunal, não poderiam tolerá-los. Isso seria a negação de todo o governo, e não há governo, por mau que seja, que se negue e si próprio. A tirania mesma busca a plausibilidade. As cenas de perversão infrene que se repetiam ao longe tornavam-se moralmente impossíveis na presença de uma corte pontual, culta e beata. Aqui, a hipocrisia devia ser cauta, e o fanatismo grave. Assim sucedia. Os calabouços da Inquisição d’Évora eram, como já vimos, os mais temidos: as covas tinham adquirido terrível celebridade. Aí as relações com as pessoas de fora ofereciam maiores dificuldades; essas abóbadas subterrâneas afogavam melhor os gemidos das vítimas, e o segredo ocultava com mais denso véu o que lá dentro se passava. Era que ali se carecia de mais trevas. Dirigia a Inquisição d’Évora um castelhano, Pedro Álvares de Paredes, inquisidor que fora em Llerena, d’onde, se acreditarmos as memórias dos cristãos-novos(648), havia sido expulso por atos de falsificação e por outros crimes. Já se vê que o indivíduo fora escolhido com discernimento. Não só tinha as artes de fabricar provas pró ou contra, conforme as conveniências do negócio, mas também tinha aprendido à sua custa que a prudência e a astúcia deviam ser companheiras da maldade disfarçada. A longa experiência havia-lhe revelado quantos recursos cabiam na indústria humana para comprometer a gente da nação em crimes de impiedade. Aos seus conselhos se atribuíam a maior parte dos horrores que se estavam praticando em Portugal. Ninguém havia tão destro em fazer confessar delitos, quer os réus os tivessem perpetrado, quer não. Um dos seus expedientes para obter este fim era fingir bilhetes escritos em nome dos parentes dos presos e introduzi-los no pão ou nos outros alimentos que passavam pelas mãos dos guardas antes de entrarem nos cárceres. Nestes bilhetes, o imaginário pai, irmão, ou amigo suplicava instantemente ao réu que confessasse tudo quanto se pudesse imaginar, porque sem isso a morte era certa, ao passo que uma confissão plena, embora mais ou menos inexata, lhe assegurava a vida. A letra desconhecida dos bilhetes não gerava suspeitas no ânimo do preso; porque não era natural que o oficioso conselheiro quisesse arriscar-se a meter nas mãos dos inquisidores um documento do próprio punho, se casualmente o bilhete fosse apreendido. O outro meio que empregava para justificar todas as crueldades da Inquisição, todos os seus assassínios jurídicos, era fingir concluídos os processos, e ler aos réus supostas sentenças, pelas quais ficavam relaxados ao braço secular e condenados à morte. Depois, quando o terror lhes desvairava o espírito, e o suor frio da íntima agonia lhes manava da fronte, ou quando, no ímpeto da desesperação, se rolavam por terra, mordendo os punhos, e a escuma sanguinolenta lhes borbulhava nos lábios por entre os dentes cerrados, o compassivo inquisidor alumiava de súbito a noute daquelas almas com um clarão de esperança. A confissão que se exigia deles salvá-los-ia; porque tal confissão seria o pródromo do arrependimento. Naquela situação angustiada, qualquer réu confessaria, se o exigissem dele, ter devorado a lua. Era o ideal do potro e da polé; era o trato moral. Confessavam quanto se lhes ditava. Escreviam-se estas confissões, que os confitentes firmavam. Separava-se então dos autos a parte relativa ao suposto julgamento final e a sentença definitiva. A confissão escrita, junta ao processo, vinha depois a servir para uma sentença verdadeira, e a justiça do tribunal da fé ficava perfeitamente ilibada. Estes expedientes poupavam as irregularidades do processo, as testemunhas falsas, a denegação dos meios de defesa. Pedro Álvares de Paredes era o modelo dos juízes respeitadores das fórmulas e da justiça. As apelações vindas do tribunal d’Évora para o infante inquisidor-mor, e deste para o conselho supremo, haviam-se tornado inúteis. Que provimento teria cabida contra um juiz tipo d’integridade?(649)

Bem como em Évora, em Lisboa o procedimento da Inquisição devia ser mais decoroso do que nas províncias remotas, assim porque também a corte se demorava aqui uma grande parte do ano, como porque Lisboa era a capital, o centro da civilização do país, e a residência ordinária do núncio. Os atos do tribunal estavam nesta cidade incomparavelmente mais arriscados a uma apreciação desfavorável, e os gemidos das vítimas eram mais difíceis de abafar. A Inquisição de Lisboa compunha-se de quatro inquisidores. Fr. Jorge Santiago, dominicano, Jorge Rodrigues, transferido em comissão para o Porto, Antonio de Leão e João de Mello. Presidia este, e pode-se dizer que era a alma do tribunal. João de Mello fora um dos primeiros escolhidos em 1536 pelo ínquisidor-mor Fr. Diogo da Silva para membro do conselho geral. O carácter moderado de Fr. Diogo da Silva não consentira ao seu assessor desenvolver as próprias tendências; mas a renuncia de Fr. Diogo, e a nomeação do infante D. Henrique para aquele cargo deram-lhe grande preponderância. João de Mello era quem no conselho representava melhor o espírito da época; era o mais inexorável inimigo da gente da nação. Como Jorge Rodrigues foi transferido para o Porto, do mesmo modo ele descera para um tribunal de primeira instância; mas o comissário em Lisboa não tivera que submeter-se à vontade de um prelado írascível e impetuoso e mais perseguidor dos cristãos-novos do que o próprio delegado do conselho. A atividade de João de Mello podia na sua nova situação desenvolver-se melhor do que num tribunal de recurso: e os fatos provaram em breve que o inquisidor-mor não se tinha enganado, colocando-o à frente da mais importante das Inquisições especiais(650).

O chefe da Inquisição de Lisboa, conforme o que se pode inferir das memórias que acerca dele nos restam e daquela parte dos seus atos que nos são conhecidos, era um carácter que, participando mais ou menos das diversas índoles do bispo do Porto e do inquisidor Pedro Álvares, não se confundia com nenhum dos dous caracteres. O seu ódio entranhável contra a raça hebréia não era menor que o de D. Fr. Balthasar; mas que a cegueira do fanatismo fosse quem lh’o inspirava é para nós mais que duvidoso. Não lhe faltava certo grau de inteligência e de saber positivo, adquirido pelo estudo; mas faltava-lhe a austeridade de costumes do prelado portuense. De gênio, talvez, tão violento como este, sabia-o reprimir melhor, e posto que não igualasse na ciência de simular equanimidade e ternura o inquisidor d’Évora, tinha arte de as fingir nas ocasiões em que a falta dos ademanes e esgares pios e de uma linguagem agridoce pudesse comprometê-lo na opinião popular. Como Pedro Álvares de Paredes, João de Mello amava a plausibilidade.

Entretanto, debaixo dos tetos da Inquisição de Lisboa repetiam-se as mesmas cenas de corrupção e de maldade que se representavam por outras partes. A dar crédito aos cristãos-novos, aqui o segredo era maior, maior a falta de comunicações para os desgraçados que caíam nas mãos dos inquisidores. Por tristes e infectas que fossem as famosas covas de Évora, a soledade nos cárceres de Lisboa era mais completa. Nem um raio de luz noturna ou diurna transudava jamais nessas lôbregas moradas, e a única voz que por vezes ouvia qualquer novo habitante daquela espécie de sepulcros era a dos ministros do tribunal, que desciam a consolá-lo para que pedisse misericórdia, asseverando-lhe que a existência das suas enormes culpas estava plenamente provada(651). Se não caía no laço e resistia constante a estas importunações prolongadas, levavam-no ao lugar do martírio. Primeiro davam-lhe um trato de polé. Se, culpado ou não, continuava a afirmar a sua inocência, retalhavam-lhe as plantas dos pés, untavam-lh’as com manteiga e aproximavam-lh’as do fogo(652). Ordinariamente o resultado deste expediente era uma confissão absurda, mas satisfatória para os inquisidores.

A bula de 23 de maio de 1536 autorizava os réus para nomearem os seus procuradores e advogados como entendessem. Esta livre escolha podia trazer sérios embaraços. Podia uma voz eloqüente fazer soar na capital a negra história de tantas atrocidades. A Inquisição qualificou para litigarem perante ela apenas dous a três advogados dos mais obscuros. Aos réus não era lícito escolher senão um deles. Ajuramentados pelos inquisidores não para ultrapassarem nas defesas as metas que lhes eram prescritas, esses homens, colocados entre morrerem de fome por inábeis na sua profissão e enriquecerem à custa dos seus clientes forçados, que não sabiam nem lh’as importava salvar, reduziam as suas alegações a uma pura formalidade, a um vão simulacro de defesa. Não havia assim para o réu outra esperança senão pedir misericórdia. Mas qual era a condição para a obter? Era confessar; confessar tudo quanto se achasse contido no libelo de acusação, embora fosse contraditório, absurdo, impossível. Restava, porém, saber se na súplica de perdão guardava pontualmente o formulário prescrito; restava calcular se o arrependimento vinha dos lábios ou do coração. A quantidade das lágrimas do suplicante pesava-se na balança moral dos inquisidores, e aquele que tinha o coração assaz de homem para as não verter pagava caro o ter os olhos enxutos no momento solene. Reduzia-se tudo, em suma, a ficar a sorte dos culpados só dependente do arbítrio dos seus julgadores. Era a jurisprudência, a doutrina prática, a organização completa e irresistível do assassínio legal.

Entre os muitos fatos atrozes que se mencionam nos vários memoriais dos cristãos-novos, e cuja confirmação às vezes vamos encontrar ainda hoje nos processos daquela época, talvez nenhuns são tão odiosos como os que se referem à Inquisição de Lisboa. Se alguns desses quadros irritam pela crueldade, outros há que repugnam pela vilania, embora lhes suponhamos carregadas as cores nas memórias que no-los transmitiram. Entre os indivíduos que atulhavam as masmorras do Tribunal da fé havia uma mulher, Maria Nunes, acusada de judaísmo. As provas contra ela faltavam, e seu marido forcejava por salvá-la; mas parece que os inquisidores tinham resolvido perdê-la. Era preciso aduzir testemunhas. Souberam achá-las. Um certo Montenegro, queimado cinco anos antes, com a esperança de escapar tinha culpado muitas pessoas. Entre estas figurava Maria Nunes. Conduzido, porém, ao patíbulo, Montenegro declarara que as suas denúncias haviam sido falsas, e que as fizera por lhe terem prometido em troco delas a vida. As acusações de Montenegro puseram-se, portanto, de parte; mas a necessidade de buscar provas contra a pobre mulher fê-las recordar, e a voz do supliciado foi evocada contra ela. Um mendigo, habitualmente embriagado, e que meio nu corria as ruas da cidade, deixando, a troco de um real, que os rapazes o levassem preso por uma corda de singular maneira(653), foi a segunda testemunha. A terceira, que faltava, supriu-se no processo com um depoimento anônimo. Era com provas tais que às vezes se lançavam nas fogueiras réus do suposto crime de crerem no Deus de Moisés. Votada ao extermínio, uma família inteira, marido, mulher e filha, fora conduzida aos cárceres do Santo-Ofício. A mulher não tardou a ser queimada num auto-de-fé. O marido, fechado numa estreita masmorra e carregado de ferros, era atormentado diariamente para se confessar culpado, ao que o infeliz tenazmente resistia. Tentaram a filha com a esperança da liberdade para que acusasse o pai; mas, apesar de sair apenas da puerícia, a donzela houve-se com valor. A chave do seu calabouço foi então entregue a um galego, servente do tribunal, única pessoa com quem lhe era permitido falar, e que entrava ali quando queria. Suspeitou-se que esse homem abusava da cativa; mas quem poderia devassar tais segredos? O processo, tanto dela como de seu pai, não se fez, e o ulterior destino das duas vítimas ficou sendo um mistério(654).

Pode imaginar-se qual seria o terror dos indivíduos da raça proscrita quando ouviam da boca de um familiar do Santo-Ofício a ordem para o acompanharem aos cárceres do tribunal. Entrando ali, aqueles cujos ânimos eram mais fracos perdiam não raro o juízo. Dous presos conduzidos de Aveiro a Lisboa receberam tais tratos pelo caminho, possuíram-se de tal aflição com a perspectiva do futuro, que, chegando ao seu destino, estavam completamente alienados. Uma pobre mulher, rodeada de cinco filhinhos, o mais velho dos quais contava apenas oito anos, conduzida à Inquisição, perguntava porque a prendiam e qual seria a sua sorte. Divertiam-se os familiares em persuadi-la de que ia ser queimada. Num acesso de loucura, a desgraçada precipitou-se de uma janela abaixo, e quando a foram buscar ao pátio onde caíra, acharam-na completamente desconjuntada. Esses terrores que cercavam aquela situação angustiada produziam o aborto quando as presas vinham grávidas(655). Nem a beleza e o pudor dos anos floridos, nem a velhice, tão digna de compaixão na mulher, eximiam o sexo mais débil da ferocidade brutal dos supostos defensores da religião. Havia dias em que sete ou oito eram metidas a tormento. Essas cenas reservavam-nas os inquisidores para depois de jantar. Serviam-lhes de pospasto. Muitas vezes, naquele ato, competiam uns com outros em mostrar-se apreciadores da beleza das formas humanas, Enquanto a desgraçada donzela se estorcia nas dores intoleráveis dos tratos ou desmaiava na intensidade da agonia, um aplaudia-lhe os toques angélicos do rosto, outro o fulgor dos olhos, outro os contornos voluptuosos do seio, outro o torneado das mãos. Nesta conjuntura os homens de sangue convertiam-se em verdadeiros artistas(656). E João de Mello, no vigor da mocidade, devia achar aquelas cenas deliciosamente esquisitas.

O número das pessoas que entraram nos cárceres de Lisboa de 1540 a 1543 nem remotamente se pode calcular. Tinham-se construído prisões especiais para réus de judaísmo; mas em breve esse receptáculo de supremas misérias ficou atulhado. Converteu-se em masmorra o vasto edifício das Escolas-gerais; mas as novas prisões dentro em pouco se tornaram insuficientes. Os Estaos, paços reais situados no Rocio, foram então entregues ao Santo-Ofício. Não bastaram, porém. Os edifícios públicos da capital corriam risco de ser transformados, uns após outros, em calabouços. Pararam, talvez, diante desta idéia; mas a corrente de entes humanos que se precipitava nos antros da Inquisição não cessava. Nos pátios interiores edificaram-se umas como pocilgas para se receberem novos hóspedes(657). A freqüência dos autos-de-fé devia, portanto, tornar-se em providência higiênica. Uma epidemia podia surgir daqueles lugares infectos, d’entre uma população empilhada em recintos sem ar e sem luz, devorada pelos padecimentos físicos e enfraquecida pela dor moral. A saúde pública, a boa ordem das prisões, o serviço do rei e do estado exigiam de tempos a tempos a redução daquele acervo enorme de carne humana a proporções mais razoáveis. As fogueiras dos autos-de-fé, ao passo que eram uma diversão para o povo, satisfaziam as indicações administrativas. As cinzas dos mortos nem sequer ocupavam um breve espaço de terra; porque as correntes do Tejo iam depositá-las no fundo solitário do mar.

Resta-nos uma carta de João de Mello escrita a elrei, sem data de ano, mas que coincide com esta época(658). É a descripção de um auto-de-fé, redigida no mesmo dia, e poucas horas depois daquela festa de canibais. Ao tomar nas mãos o horrível documento, como que nos sussurra aos ouvidos o crepitar das chamas e o murmúrio anelante dos que se asfixiam nos rolos de fumo; como que respiramos o cheiro das carnes que se carbonizam, dos ossos que se calcinam. É uma ilusão de fantasia. O que está diante de nós é uma folha de papel, que os séculos amareleceram, coberta de caracteres legíveis e firmes, traçados por mão que não tremia, por mão que está ali revelando um coração de bronze. Feliz o nosso século, em que tais corações são pouco vulgares! O chefe da Inquisição em Lisboa começa por dizer a elrei que o céu estava esplêndido. Aquele homem ousava olhar para o céu. Os dias antecedentes haviam sido procelosos, e João de Mello notava essa circunstância, porque o povo acreditaria que a formosura do dia era sinal do favor celeste. O préstito saiu depois das seis horas da manhã da Misericórdia e dirigiu-se ao cadafalso. A fidalguia rodeava o clero. Os membros do tribunal da fé foram assentar-se ao lado do juízes do tribunal eclesiástico da diocese. Não tardaram a chegar os sentenciados. Eram proximamente cem, que, notava o inquisidor, faziam um préstito magnifico. Conduziam-nos as justiças seculares, e acompanhava-os a clerezia das duas paróquias de Santiago e de S. Martinho. Chegados junto ao cadafalso, cantou-se o hino Veni creator Spiritus. Um frade subiu ao púlpito, e orou. Devia ser o discurso um admirável tecido de blasfêmias. Foi breve o frade; porque a obra talhada para aquele dia era longa. Começou a leitura das sentenças; primeiro as de degredo e de prisão temporária, depois as de cárcere perpétuo, afinal as de morte. Estas eram vinte. Os padecentes, sete mulheres e doze homens, foram sucessivamente atados ao poste fatal e assados vivos. Uma só mulher pôde escapar ao seu horrível destino, porque, diz a carta, se mostrou verdadeiramente arrependida, confessando melhor as suas culpas. Além disso, no entender do inquisidor, aquele ato de indulgência servia para provar a comiseração e brandura do tribunal. Quanto ao arrependimento dos outros, esse era mais duvidoso. Tinham, em geral, sido relaxados ao braço secular por judaizarem nos cárceres. Isto provava quanto era necessária a inflexibilidade. Advertia o inquisidor que conservava ainda aferrolhada muita gente prestes para servir em igual espetáculo, e que o pejamento das masmorras era excessivo, restando, além disso, muitos réus que processar. A inferência destes fatos tira-la-ia elrei. Se naquele dia não queimara ou não atirara para a sepultura em vida, destino talvez mais atroz, maior número de indivíduos, era que não gostava de excessos de severidade. É difícil dizer o que predomina naquela carta, se a hipocrisia, se a ferocidade. No fim dela escapa, todavia, ao inquisidor um grito de remorso. Uma cousa havia que lhe tinha feito impressão. Ao separarem-se os pais dos filhos, as mulheres dos maridos, os irmãos dos irmãos, nem uma lágrima caira, nem um gemido soara. A última benção paterna, o último beijo d’esposos, o último e estreito abraço fraterno tinham sido silenciosos e tranqüilos. Era uma tranqüilidade que o algoz não compreendia. João de Mello devia espantar-se de ver mártires e heróis. Na corte de D. João III não era fácil encontrá-los, e ele provavelmente ignorava a história dos primitivos cristãos. Se não a ignorasse, e cresse que era verdadeira, não seria inquisidor(659).

As memórias dos cristãos-novos completam o quadro da carta dirigida a D. João III(660). Se as acreditarmos, perante aquele espetáculo João de Mello vertia lágrimas. Aperfeiçoava assim o efeito que esperava tirar da súbita comiseração para com uma das vítimas. No que varia o memorial dos perseguidos é na explicação dessa inesperada piedade. A confissão da mulher, tão extraordinariamente salva, não versava sobre as próprias culpas; versava sobre as alheias. Reconduzida do patibulo aos cárceres, a penitente convertia-se em acusadora de metade dos habitantes de Aveiro. Aquela redenção inesperada não fora, porventura, senão uma cena preparada e prevista, um trato moral dado à infeliz, sem deixar por isso de ser, como se colhe da carta, um embeleco para a grosseira credulidade popular.

Em que se fundavam as sentenças de tantas criaturas votadas ao atroz suplício das chamas? Em terem judaizado nos cárceres, segundo dizia o inquisidor. Mas o que diz o senso comum? Era possível que velhos enfraquecidos de ânimo e de corpo, que mães rodeadas de filhos, que donzelas tímidas ousassem repetir nas masmorras, sob as chaves dos inquisidores, no meio de guardas inexoráveis, de espias vigilantes, atos externos de uma religião que não tinham esforço para confessar, quando interrogados acerca da sua crença? Que ritos de judaísmo eram esses que se praticavam sem templos, sem sacerdotes, sem fórmulas, sem preces? Se abrimos os processos que nos restam daquela época de sangue, que é o que vemos de ordinário servir de pretexto à ruína e ao extermínio de tantas famílias? O limpar candieiros ou vestir roupa lavada à sexta-feira, o abster-se de certas comidas, o trabalhar ao domingo, o ignorar ou repetir mal esta ou aquela passagem do catecismo, e outras cousas análogas; em parte acusações ridículas; em parte fatos mais ou menos repreensíveis, mas que nunca se poderiam qualificar de crimes capitais, e que seria absurdo reputar essencialmente inerentes à crença judaica. Como, pois, acreditar que esses mesmos que não ousavam confessar os dogmas do mosaísmo, que blasfemavam dele proclamando-se cristãos, expusessem as vidas só para conservar cerimônias e atos puramente acidentais? Admitindo, porém, tamanho absurdo, como explicar o modo por que esses indivíduos morriam? Se pelas memórias dos cristãos-novos não soubéssemos que os padecentes expiravam abraçados ao crucifixo e com todos os sinais de cristãos, a carta de João de Mello bastaria para no-lo revelar. Era, portanto, uma adivinhação que fazia, suspeitando que não acabavam contritos e verdadeiramente arrependidos. É evidente que os atos externos dos supliciados não o autorizavam para ir mais longe. Um que morresse invocando o Deus de Moisés justificaria a Inquisição e os seus ministros, segundo as idéias de então. Não era fato que o inquisidor omitisse na sua carta. Se, porém, morriam com as exterioridades de cristãos, supor que os desgraçados, no transe tremendo do passamento, quando já não lhes restavam senão alguns momentos de vida, e a ponto de aparecerem diante de Deus, mentiam a si e ao mundo, e blasfemavam da crença que tinham no coração e que era toda a sua esperança futura, sem um único interesse em conservar a máscara hipócrita de simulado cristianismo, é uma idéia tão extravagante, que seria infalível prova de loucura o refutá-la seriamente(661).

Depois do precedente extrato da carta de João de Mello e das reflexões que ela sugere fora inútil multiplicar os exemplos, que aliás abundam nas memórias dos cristãos-novos, das violências e atrocidades que, debaixo de aparente regularidade, se praticavam na Inquisição de Lisboa. Advertiremos só que o homem cuja índole e cujas idéias se revelam naquele documento era o mais influente entre todos os inquisidores, e que, debaixo das aparências de justiça, a vida ou a morte de qualquer encarcerado dependia pura e simplesmente do seu alvedrio. Para obrigar o acusado a confessar-se criminoso tinha os tratos físicos e a coação moral; tinha os expedientes de Paredes e os que lhe inspirava a própria inventiva. Logo, porém, que o réu confessava, todos os caminhos de salvação ficavam fechados a este, menos o de pedir misericórdia, e em tal conjuntura João de Mello nada perdia em ser misericordioso. O perdão importava sempre uma retenção mais ou menos dilatada nos cárceres, para a penitência de culpas que o próprio acusado reconhecera existirem. Desde esse momento, o penitenciado equivalia a uma rez, a uma peça de caça, que João de Mello podia quando quisesse enviar ao matadouro para despejar os seus estábulos. Reduzia-se tudo a um processo de reincidência, em que os aceusadores e as testemunhas únicas de acusação ou de defesa eram forçosamente os guardas e serventes dos cárceres, criados e familiares do inquisidor. A reincidência manifestava-se em qualquer ato indiferente, como vestir ou deixar de vestir roupa lavada neste ou naquele dia. Então o criminoso, já uma vez confesso, convertia-se em relapso, e para os relapsos a pena legal era a fogueira. Debalde se apelava do tribunal para o infante inquisidor-mor, ou deste para o conselho. O infante rejeitava a apelação, porque, a sua confiança naquele homem era ilimitada, e no conselho, a que João de Mello também pertencia, quem teria bastante audácia para reprovar o procedimento daquele de quem tudo confiavam o infante e até o próprio rei(662)?

A estes fatos, que ainda guardavam, ao menos pelas fórmulas, um simulacro de ordem, associavam-se outros francamente brutais, mas que aos olhos do vulgo se coonestavam como resultado do zelo religioso. Conforme vimos em outro lugar, a torrente da emigração era contínua e caudal, e dirigia-se em boa parte para os Países-baixos, o que bastaria para explicar o favor que em Carlos V achavam os loucos esforços do cunhado para destruir a classe mais rica e mais industriosa dos próprios estados. As cidades comerciais de Flandres ofereciam aos cristãos-novos portugueses, não só um refúgio contra a intolerância, mas também um teatro adequado à sua industriosa atividade. Muitos, mais previdentes ou menos afetuosos para com a pátria, haviam com tempo buscado ali a segurança e a paz que a terra natal lhes não prometia. A prosperidade e a opulência, que lhes douravam os dias do desterro, eram um incitamento irresistível para os que tinham esperado a pé firme o estourar da tempestade. Embarcar de Lisboa para um porto de Flandres não era, porém, o mesmo que dirigir-se à Itália; não havia o pretexto de ir a Roma solicitar o favor ou a justiça da sé apostólica para um parente ou um amigo perseguidos; e a urgência de negócios nem sempre, nem para todos era explicação plausível. Fiado na proteção da corte, João de Mello julgou, portanto, dever por si mesmo pôr cobro no abuso da emigração. Embora o incomodasse o pejamento dos cárceres, tinha receitas mais heróicas para remediar esse inconveniente do que sofrer que lhe escapassem incólumes algumas vítimas possíveis. Acompanhado de um colega e rodeado dos familiares e esbirros, viam-no às vezes entrar de súbito em um navio prestes a desfraldar as velas. Não tardava a sair, trazendo maniatados alguns cristãos-novos, que ainda não eram réus, mas que podiam vir a sê-lo, e que preventivamente se lançavam nas masmorras do Santo-Ofício. A notícia destas prisões animava o povo a praticar atos análogos contra esses homens que lhe tinham ensinado a detestar. Assim, mais de uma vez aconteceu verem-se repentinamente presos pelos camponeses e conduzidos à cidade, sob pretexto de que pretendiam fugir, cristãos-novos conhecidos pela sua fortuna ou pelas suas qualificações que se atreviam a sair de Lisboa e alongar pelas cercanias(663).

O quadro que extraímos, assim do Memorial e das narrativas e documentos que o acompanham, como de outros que lhe são correlativos, é apenas um esboço desenhado com traços soltos. Omitimos numerosos fatos, que talvez lhe avivariam as cores e lhe tornariam os contornos mais precisos, mas que seriam demasiado minuciosos. Baste dizer que, além de provarem a deliberação antecipada de exterminar a raça hebréia, levam também à evidência que essas mesmas garantias, estabelecidas na bula de 23 de maio de 1536 e nos outros diplomas pontifícios de execução permanente, a favor dos réus de judaísmo eram diariamente postergadas e escarnecidas, e que os breves relativos a indivíduos ou a famílias cujas causas o papa avocava a si, ou a que dava juízes especiais, eram por via de regra iludidos, ou pela resistência formal da Inquisição auxiliada pelo poder civil, ou pelo temor que os juízes apostólicos tinham de despertar a malquerença do rei ou de seus irmãos, desempenhando a missão que lhes era imposta e sustentando com vigor a própria autoridade. Acrescente-se a isto a indiferença do núncio, inteiramente submisso à vontade d’elrei, e imagine-se quão desesperada seria a situação a que os hebreus portugueses tinham chegado.

Nem este estado de cousas podia ser desconhecido em Roma, nem dele era lícito duvidar, à vista desse acervo de fatos e de provas que os procuradores dos cristãos-novos apresentavam em justificação dos seus reiterados clamores. Ainda supondo que as provisões da bula de 23 de maio de 1536 e os atos posteriores que a haviam modificado ou completado fossem perfeitamente justos, nem essa mesma bula e os atos consecutivos a ela haviam sido respeitados. As providências do pontífice para reparar um ou outro abuso individual de que tomava conhecimento eram sistematicamente ludibriadas. A responsabilidade de tão graves males recaía toda sobre ele, que, instituindo a Inquisição em Portugal, abrira largo campo aos desvarios de um ódio fanático. Paulo III mais de uma vez o confessara, e mais de uma vez tinha invocado a sua responsabilidade para repelir pretensões exageradas de D. João III sobre o assunto. A nímia condescendência que ultimamente mostrara para com os desejos do monarca, em vez de ensinar a moderação aos inquisidores, só servira para exaltar mais as suas ruins paixões. Quando nenhuns motivos ocultos movessem a cúria romana a mudar de sistema, as cousas tinham enfim chegado a termos tais, que se tornava altamente escandalosa a espécie de indiferença e torpor em que o pontífice parecia sepultado acerca da Inquisição de Portugal.

Apesar, portanto, das diligências de Baltazar de Faria para iludir os espíritos ou corromper as vontades, Paulo III entendeu que era tempo de intervir de novo a favor dos hebreus portugueses. O espetáculo que Portugal estava dando ao mundo tornava esta resolução mais que plausível. Às considerações morais de humanidade e justiça outras vinham associar-se de interesse material, igualmente se não mais eficazes, para mover a cúria romana. No princípio deste livro vimos quais elas eram: a renovada generosidade dos cristãos-novos, e o despeito pela isenção quase grosseira com que D. João III respondera às propostas relativas à mitra de Viseu, isenção que mostrava o seu ódio inextinguível contra D. Miguel da Silva, a quem, aliás, o cardeal Farnese continuava a proteger mais ou menos disfarçadamente. Tomou-se afinal a resolução de intervir e de verificar os fatos cuja negra história se repetia diariamente em Roma. O núncio bispo de Bergamo não era, porém, o homem próprio para isso na situação subserviente em que se colocara, nem é provável que os cristãos-novos o aceitassem para defensor. Foi pois escolhido para o substituir João Ricci de Montepoliziano, clérigo da câmara apostólica e mordomo do cardeal Farnese. Tanto este como o papa ocultaram a Baltazar de Faria os verdadeiros fins daquela nomeação, e parece que chegaram a convencê-lo de que, se era possível, o novo núncio seria nas mãos de D. João III um instrumento ainda mais dócil do que o seu antecessor(664). A aquiescência do agente d’elrei era um argumento que se deixava em reserva para as inevitáveis discussões futuras.

A corte de Lisboa não se iludiu, porém, com as informações que a este respeito lhe dava Baltazar de Faria, talvez por saber de mais segura origem que a substituição do representante pontifício não era tão indiferente como se antolhava ao procurador da Inquisição em Roma. Assim, cuidou desde logo em prevenir-se para aparar o golpe. Era porventura o último combate que havia a vencer, e em que a vitória, acabando de levar a desanimação aos arraiais adversos, podia fixar de uma vez para sempre a sorte, ainda até certo ponto dúbia, do tribunal da fé.

LIVRO IX

Proíbe-se a entrada no reino ao núncio Ricci. Explicações e promessas deste. Dá-se-lhe a permissão de entrar, debaixo de certas condições restritas, que ele não aceita. Breve de 22 de setembro de 1544 mandando suspender a Inquisição. Procedimento audaz do núncio Lipomano. — Enviatura de Simão da Veiga a Roma. Carta d’elrei a Paulo III. — Suspeitas contra Baltazar de Faria. Expedientes para conciliar os ânimos na cúria romana. — Breve de 16 de junho de 1545 em resposta à carta d’elrei. — Renovação das negociações amigáveis. Transação. — Entrada do núncio Ricci. Procedimento irritante deste em Lisboa. Apresenta a elrei o breve de 16 de junho. Réplica frouxa àquele singular documento. — Novas fases da luta. Propostas e acordos ignóbeis. Dificuldades procedidas da parcialidade ostensiva de Ricci a favor dos cristãos-novos. Resoluções apresentadas mutuamente pelas duas cortes acerca do estabelecimento definitivo da Inquisição. — Simão da Veiga parte para Portugal com a última decisão do papa, e morre no caminho. — Elrei recebe mal aquela decisão, não na substância, mas nos acidentes. Nota enérgica ao núncio, e demonstrações de desgosto dirigidas a Baltazar de Faria. — Parecer notável de quatro cristãos-novos dado a elrei sobre o modo de remover as resistências ao estabelecimento do tribunal da fé. Os inquisidores rebatem as propostas dos quatros hebreus. — Probabilidades de um triunfo completo para os fautores da Inquisição.

A notícia da vinda de Ricci, eleito, segundo parece, nesta conjuntura arcebispo sipontino, era acompanhada dos usuais comentários, comentários que o procedimento anterior da cúria romana infelizmente justificava. O próprio governo cria, ou fingia crer, a respeito dele o que já correra de plano a respeito do bispo de Bergamo, isto é, que vinha comprado pelos cristãos-novos(665). O sistema que desde logo se adotou foi o da moderação e firmeza. Escreveu-se a D. Christovam de Castro, deão da capela da infanta D. Maria, mulher do príncipe D. Felipe de Castela, que se fosse encontrar a Valadolid com o arcebispo sipontino, e que da parte d’elrei lhe dissesse que, constando não ser simplesmente a sua missão substituir o núncio Luiz Lipomano, mas também embaraçar a ação do tribunal da fé, sua alteza o advertia de que não era possível consentir na sua entrada em Portugal, e lhe pedia que sobrestivesse na viagem até que o pontífice respondesse definitivamente às considerações que ainda uma vez lhe iam ser submetidas a este respeito. Não tardou a resposta. Montepoliziano protestava que as informações dadas a elrei eram inexatas; que o fim da sua enviatura, além da substituição de Lipomano, era unicamente tratar da reunião do futuro concílio; que, na verdade, vinha incumbido de lhe fazer algumas comunicações relativas à questão do cardeal de Viseu e à Inquisição, mas que de nenhum modo queria intervir nos atos desta e que, ainda antes de sair de Roma, sendo solicitado pelos agentes dos cristãos-novos para usar da sua autoridade a favor deles, o havia formalmente recusado; que, todavia, para obedecer a sua alteza, se demoraria em Castela enquanto se lhe não ordenasse o contrário(666).

Estas declarações de Montepoliziano eram tão conciliadoras, que a insistência da corte de Portugal em lhe proibir a entrada no reino, quando ele asseverava que o seu procedimento não podia ser diverso do de Lipomano, e quando este, nomeado coadjutor do bispo de Verona, tinha necessariamente de largar o cargo para ir administrar aquela diocese, seria uma prova de que absolutamente se não queria em Lisboa um representante do pontífice, embora ele se abstivesse de intervir nos negócios do tribunal da fé, como o coadjutor de Verona até então o fizera. Expediu-se, portanto, um correio a D. Christovam de Castro com uma carta d’elrei para o novo núncio, na qual se lhe significava que, vistas as suas explicações, e supondo que seguiria o exemplo do seu antecessor, cessavam todos os obstáculos à sua entrada no reino. Aquela resolução foi igualmente comunicada ao bispo coadjutor de Verona(667).

O que parece resultar destes fatos e dos que subseqüentemente ocorreram é que tanto o delegado pontifício como elrei tinham feito o seu cálculo. O primeiro esperava remover em parte os embaraços que devia encontrar no desempenho da sua missão, atenuando a princípio a importância dela e inculcando que se tratava apenas de uma substituição de núncio: o segundo, que provavelmente tinha notícias mais exatas sobre a missão de Ricci do que as dadas por Baltazar de Faria, queria evidentemente colocar o novo núncio na alternativa ou de não a cumprir, tornando-se inútil a sua vinda, ou de se conservar em Espanha, deixando a Inquisição ainda mais desafrontada, se era possível, do que até aí estivera. A permissão que dava a Montepoliziano, acompanhada da condição de serem os seus atos regulados precisamente pelo anterior proceder do bispo de Bergamo, punha em grande perplexidade o novo núncio, que esperava, talvez, que D. João III se contentasse com a sua resposta, na verdade obsequiosa, mas assaz vaga para dar campo depois às interpretações e aos expedientes em que era tão fértil a diplomacia romana.

Passava-se isto nos últimos meses de 1544. Apesar da permissão comunicada a Montepoliziano por D. Christovam de Castro, ele não se dirigira à corte de Portugal. As restrições que se lhe impunham e, provavelmente, ordens mais terminantes de Roma obrigavam-no a desmentir as próprias palavras. Em tal situação, era forçoso tirar a máscara. De feito o coadjutor de Verona recebeu inesperadamente um correio enviado pelo seu futuro sucessor com comunicações importantes. Paulo III expedira a 22 de setembro um breve, que Luiz Lipomano devia intimar aos prelados e aos inquisidores e mandar afixar nas portas da sé de Lisboa e de qualquer outra do reino. Era o conteúdo do breve que, tendo sido enviado o arcebispo eleito sipontino para averiguar até que ponto tinham fundamento as altas queixas alevantadas em Roma contra a Inquisição de Portugal, se não desse à execução sentença alguma definitiva do tribunal antes da sua chegada, e que nos processos pendentes ou intentados de novo se procedesse em tudo do modo ordinário, menos a julgamento final até que o pontífice fosse devidamente informado do estado da questão pelo novo núncio. Esta resolução era sancionada com as penas de excomunhão e interdito contra quaisquer indivíduos que direta ou indiretamente pusessem obstáculo ao cumprimento dos mandatos apostólicos(668).

É de crer que o breve de 22 de setembro fosse acompanhado de instruções particulares para Luiz Lipomano. Este homem, até aí tão moderado, ou antes tão indiferente a tudo quanto dizia respeito à Inquisição, possuiu-se de repente de um vigor inesperado. A corte achava-se em Évora. O primeiro ato do núncio foi intimar ao infante inquisidor-mor as inopinadas determinações do pontífice, mandando depois afixar cópias autênticas do breve nas portas das catedrais d’Évora, de Lisboa e de Coimbra. Foi depois de praticar estes atos de autoridade, que deu conta a elrei das resoluções do papa e de que, na parte que lhe tocava, elas estavam cumpridas(669).

O efeito moral deste procedimento audaz devia ser tanto mais profundo, quando menos era de esperar do homem que o tivera. O primeiro ímpeto de D. João III foi mandar sair do reino Luiz Lipomano, e proibir expressamente a entrada de Ricci, não obstante haver-se-lhe já expedido a permissão para a realizar. Acalmada, porém, a irritação momentânea, entendeu-se que era melhor proceder com vigor, mas com prudência(670). Sobresteve-se na expulsão de Lipomano, e enviaram-se ordens a D. Christovam de Castro para que avisasse o arcebispo sipontino de que elrei se via obrigado a manter por enquanto a primeira resolução acerca da sua entrada no reino. Depois do que se passara com o bispo de Verona, de nenhum modo podia ser ele admitido sem explicações do pontífice, a quem se mandaria um agente especialmente encarregado de tratar aquele assunto. Escrevendo em particular ao imperador, D. João III ordenou a D. Christovam de Castro que desse conta do sucesso a várias personagens da corte de Castela, fazendo-lhes sentir quanto era justo o ressentimento que em Portugal produzira aquele impensado sucesso.

Em harmonia com o que se acabava de comunicar a Montepoliziano tomou-se a resolução de se enviar a Roma um agente extraordinário encarregado de entregar ao papa uma carta d’elrei concebida em termos enérgicos, na qual se pintava ao vivo o profundo desgosto que no seu ânimo tinham produzido, não só as providências contidas no breve de 22 de setembro, mas também o modo como o núncio Lipomano procedera em tal conjuntura. Simão da Veiga, de quem elrei muito fiava, foi escolhido para aquela missão, acerca da qual se lhe deram as instruções necessárias. Resumia-se nestas a matéria da carta que se dirigia ao pontífice, e previam-se os diversos resultados que ela podia ter. Se o papa não concedesse senão parte do que elrei aí pedia em satisfação de seus agravos, não devia aceitar essa concessão, declarando que não estava para isso autorizado. Comunicaria para Lisboa o ocorrido, e esperaria pela decisão final. Se a recusa, porém, fosse absoluta, deviam, ele ou Baltazar de Faria, ou ambos juntos, dar conhecimento da questão àqueles cardeais a quem parecesse conveniente dá-lo, anunciando-lhes a intenção de fazer propor o negócio em consistório. Supondo que o papa não se movesse com esta ameaça, feita de um modo indireto, deviam fazê-la eles ao próprio pontífice, pedindo-lhe licença para cumprirem as ordens terminantes que tinham de fazer ler na assembléia dos cardeais a carta do seu soberano, no caso de ser a resposta a esta uma completa denegação de justiça. Tinha elrei razões de crer que o papa não deixaria ir as cousas tão longe; mas, quando assim sucedesse, a ameaça seria cumprida. Dado este último passo, Simão da Veiga exigiria uma certidão de haver comunicado aquele documento ao colégio dos cardeais e, obtida a certidão, ou ainda sendo-lhe negada, sairia imediatamente de Roma(671).

Numa instrução separada recomendava-se, porém, que na audiência do papa, Baltazar de Faria, fingindo-se indiscreto, oferecesse mostrar aquel’outra instrução, e que, tanto ele como Simão da Veiga, repetissem o seu conteúdo, com igual indiscrição, a todas as pessoas que pudessem prever as conseqüências das ordens terminantes que encerrava. Não devia Simão da Veiga dar-se por satisfeito sem a revogação do breve de 22 de setembro, a concessão pura e simples da Inquisição conforme o direito comum, a redução da nunciatura aos limites em que a exercera Lipomano e a abstenção absoluta do papa em intervir a favor de D. Miguel da Silva. Tais eram as definitivas exigências d’elrei, ordenando-se aos dous dessem a entender geralmente que, não sendo elas satisfeitas, nunca Montepoliziano entraria em Portugal, e seria, provavelmente, expulso o coadjutor de Verona. Todavia, e apesar da primeira instrução, Simão da Veiga não devia em caso nenhum retirar-se de Roma sem escrever a elrei e receber de Portugal ulteriores comunicações(672).

A carta para o papa, datada de 13 de janeiro, era um longo arrazoado em que se rememoravam todos os fatos anteriores relativos à conversão dos hebreus, ao estabelecimento da Inquisição, ao proceder desta e ao delrei, e às resistências que se haviam suscitado. Em toda essa longa Ilíada só houvera da parte do príncipe, de seu irmão D. Henrique e dos inquisidores zelo de religião, desprezo de proveitos mundanos, abnegação, caridade, brandura, sacrifícios; da parte de Roma tibieza, instabilidade, corrupção de ministros, favor para os sacrílegos, esquecimento dos interesses da fé; da parte dos conversos, ingratidão, calúnias, dissimulação, impiedade, vinganças atrozes. Se nessa terrível luta de vinte anos havia vítimas que deplorar era no grupo que prendia, que processava, que atormentava, que sentenciava, que sepultava em cárceres perpétuos, que queimava, que negava às cinzas dos mortos uma sepultura cristã, e que nem sequer tolerava aos perseguidos a triste redenção do desterro. Quase até o fim, este notável documento é um estudo curioso dos recursos que a longa prática pode subministrar à hipocrisia; coleção completa de todas as fórmulas devotas, de todas as pias irritações, de todas as humildades insolentes, com que um zelo fingido sabe tecer a sua linguagem e mascarar ruins paixões. É quase ao concluir que ao autor daquele singular papel escapam frases de mal reprimida ironia, as quais terminam num rugido semelhante ao do tigre que lambe alegre as garras, saciado de sangue e carniça. O rei perguntava ao pontífice se ele esperava que o novo núncio o informasse melhor do que o antigo. Supunha-se que Ricci vinha prevenido a favor dos cristãos-novos, e essa presunção tomava em Portugal maior plausibilidade pelo alvoroço com que os interessados esperavam sua vinda. Na verdade devia reputar-se exempto de corrupção um homem que sua santidade tinha em tão subida conta; mas seria mais digno de confiança que esse homem, que se propunha agora estudar a questão, do que ele rei, que tantos anos havia a estudava? Se Montepoliziano vinha porque o núncio atual e os seus predecessores não tinham informado bem a corte de Roma, que neles depositava inteira confiança, isso provava a inutilidade de os ter em Portugal. Em tal caso, o papa devia convir em que se acabasse com a nunciatura, como tantas vezes lhe fora pedido. «Entretanto, o escândalo que se temia — acrescentava a carta — contra a santa Inquisição parece ter sido prevenido pelo juízo de Deus. O breve de 22 de setembro, negociado em parte para salvar os réus sentenciados em Lisboa, como remédio chegou tarde»! Vê-se que o rei e a Inquisição, receosos da missão de Montepoliziano, tinham, de prevenção, reduzido a cinzas todos os desgraçados que ele podia salvar. E o rei, blasfemando da Providência, convertia-a em ré da própria atrocidade. Depois, ponderando os inconvenientes da entrada do núncio e da execução do último breve, pedia ao papa a revogação deste, e justificava por esses inconvenientes a resolução que tomara acerca do delegado apostólico. Pedia, por fim, como reparação de ofensas tão repetidas, o estabelecimento definitivo da Inquisição com as condições d’existência que tinha por toda a parte, de modo que ela pudesse proceder com plena liberdade, e terminava, depois de mil protestos de afeto filial ao supremo pastor e de obediência rendida aos mandados apostólicos, por ameaças assaz explícitas: «Se vossa santidade não prover neste caso como deve e como espero, não poderei deixar de dar eu o remédio, confiando não somente em que vossa santidade me terá por sem culpa do que suceder, mas também que o comum dos fiéis e os princípios cristãos reconheçam que não fui eu quem deu causa aos males que possam sobrevir»(673).

Escreveu-se na mesma conjuntura a Baltazar de Faria, com quem, segundo parece, elrei estava irritado. Tinham-se recebido informações pouco favoráveis ao procurador da Inquisição. Dizia-se que, não só ele conviera na vinda de Montepoliziano, mas até na expedição do breve de 22 de setembro, fato na verdade inexplicável. Escrevendo ao seu agente, elrei mostrava duvidar de tais boatos, e os motivos que dava para essa equivaliam a amargas repreensões, a ser verdade o que se dizia. O fato, porém, era que o cardeal Farnese, remetendo aquele breve a Montepoliziano, lhe afirmara que fora expedido com a anuência do agente português. Elrei esperava que este lhe explicasse tão singular mistério(674).

A inesperada frouxidão de Baltazar de Faria, cuja causa a corrupção dos tempos faz suspeitar, e a morte do cardeal Santiquatro, do homem que mais lealmente servira por muitos anos ao rei de Portugal, explicam em parte o bom resultado que os esforços dos cristãos-novos acabavam de conseguir. Santiquatro falecera em outubro de 1544, e o protetorado de Portugal vagara. Era cargo que muitos ambicionavam, não só pela importância que dava na cúria o ser protetor desta ou daquela potência católica, mas também pelos proventos materiais que d’aí resultavam(675). O deixar em suspenso a escolha do sucessor era meio poderoso de conciliar benevolências numa conjuntura em que tão necessárias se tornavam, visto que, conforme as instruções dadas a Simão da Veiga, o negócio da Inquisição poderia ser levado ao consistório. Para predispor ainda melhor os ânimos, escreveu-se uma espécie de circular a dez cardeais de maior confiança, e deram-se a Simão da Veiga mais três exemplares dela com os subscritos em branco, para serem endereçados a alguns outros membros do sacro colégio aos quais fosse conveniente lisonjear(676). Ao cardeal Farnese dirigiu-se, porém, uma carta especial, em que elrei lhe significava o profundo desgosto que lhe causara o breve de 22 de setembro e os atos praticados pelo eleito de Verona. A expedição daquele breve magoava-o tanto mais, quanto era certo que devia ter passado pelas mãos do cardeal, como ministro de seu avô, e que os protestos de benevolência dele recebidos o faziam até aí acreditar que nunca teria consentido em resoluções, que, redundando em desserviço de Deus, não podiam deixar de ser, para ele rei, uma gravíssima ofensa(677).

Com os elementos que se preparavam para combater a preponderância que os cristãos-novos haviam tornado a adquirir na cúria, e com as demonstrações de firmeza que o poder civil dava ao papa, era dificultoso que o ânimo deste e dos seus ministros não vacilasse. A irritação da corte de Portugal tomava um carácter assaz grave. A proibição da entrada do novo núncio, acompanhada da ameaça de fazer sair de Lisboa o bispo eleito de Verona, era um aresto que não convinha deixar na história das relações diplomáticas entre as duas cortes. É certo, porém, que, apesar de todos os elementos que se haviam coligido para assegurar êxito feliz à negociação, Roma entendeu que, diante da altivez com que o assunto era tratado e da linguagem aspérrima da carta dirigida por D. João III ao pontífice, deveria manter, ao menos na aparência, a própria dignidade, recusando ostensivamente ceder. Como veremos, as negociações eram ativamente conduzidas por Simão da Veiga e por Baltazar de Faria; mas, posto que tudo fizesse esperar feliz desenlace, o pontífice não podia deixar de fazer uma pública manifestação de despeito. A 16 deste mês, Paulo III expediu um breve, em que respondia no tom da dignidade ofendida à carta mais que severa do rei de Portugal. Ponderava que as suspeitas caluniosas que na questão dos judeus portugueses e da Inquisição se lançavam sobre os ministros e oficiais da cúria romana podiam ser retorquidas com igual fundamento contra os ministros e oficiais da coroa, porque em toda a parte as funções públicas acarretavam aos que as exerciam o inconveniente da difamação. O breve inibitório, pelo qual se obstara à execução de sentenças por crimes religiosos até a chegada de Ricci, não podia explicar o procedimento que se tivera com o núncio, porque esse procedimento fora anterior ao breve. Este era apenas um ato de equidade e justiça. As queixas que se faziam em Roma contra a Inquisição de Portugal eram terríveis, e os próprios agentes d’elrei tinham convindo em que os fatos se averiguassem por intervenção do novo núncio, e se verificasse assim de que lado estava a verdade. As instruções dadas a Montepoliziano limitavam-se a este exame; mas depois da partida do núncio tinham recrescido novos e mais altos clamores sobre as cenas tremendas que se passavam em Portugal, onde já muitos cristãos-novos haviam sido pasto das chamas, e muitos mais, no fundo das masmorras, esperavam igual suplício. Entendera então ele pontífice que as informações de Montepoliziano seriam uma inutilidade quando só lhes restasse procurá-las acerca de homens reduzidos a cinzas. Pôr um dique a tais horrores era não só obrigação sua como supremo pastor, mas era-o, até, como simples cristão. Suspendendo a execução das sentenças, não favorecia a impunidade; porque os réus lá ficavam em poder dos inquisidores. Se fossem culpados, podiam depois ser punidos; se fossem inocentes, podiam ser salvos. Qualificando-se de parcial tão justo procedimento, mostrava-se, porventura, mais desejo de encobrir os erros dos juízes, do que de impor condigno castigo aos culpados. A Inquisição era uma delegação da sé apostólica, e o seu objeto inteiramente espiritual: ninguém, portanto, podia disputar-lhe a ele papa o direito de examinar os atos dos inquisidores, e de escutar as queixas dos perseguidos. Em vez de o injuriar e de ofender a santa sé na pessoa do núncio, elrei devera ter agradecido aquele arbítrio, se as suas intenções eram sinceras e puras. Evitava-se assim que Deus buscasse algum dia nas mãos de ambos, rei e papa, os vestígios do sangue de tantas vítimas. Acerca da questão do bispo de Viseu, Paulo III não se exprimia menos energicamente, posto que as doutrinas que estabelecia e os fatos que citava estivessem longe da solidez dos que invocava a respeito dos cristãos-novos. Pondo no esquecimento as fases por que esse negócio passara, o pontífice recordava-se tão somente de que elrei devera ter restituído a D. Miguel da Silva as rendas e benefícios de que o privara, ou, supondo-o criminoso, tê-los entregado ao núncio ou a outro delegado da santa sé. Se as provas dos seus crimes lhe tivessem sido presentes, ele papa não o teria eximido de severo castigo. Se não o fizera, fora por ignorar quais eram os seus delitos. Mas, ainda na hipótese de ser criminoso o bispo, era à sé apostólica que competia dispor das rendas eclesiásticas do bispado. Terminava, deplorando que neste assunto elrei se mostrasse tão diferente, não só dos seus antepassados, mas também de si próprio, e dava a entender que, se o rei de Portugal não viesse a melhores termos, usaria para com ele de mais heróicos remédios(678).

Posto que se houvesse expedido esta áspera resposta a Montepoliziano para a apresentar a D. João III quando entrasse em Portugal, nem por isso deixavam as negociações de se ter continuado sempre. Chegou-se, até, a um acordo, e foi ceder-se um pouco de parte a parte. O cardeal Santafiore, neto do papa, escreveu uma carta a elrei, na qual declarava que o pontífice tinha ultimamente resolvido fazer a respeito da Inquisição as concessões solicitadas por Simão da Veiga, em conformidade das suas instruções; mas que para isso era indispensável que se permitisse ao núncio Montepoliziano o livre acesso em Portugal. Esta carta era acompanhada de outras de Simão da Veiga e de Ignacio de Loyola, o célebre fundador da companhia de Jesus, particular afeiçoado de D. João III, em que se lhe assegurava que, acedendo àquela condição, se chegariam a resolver de modo satisfatório as dificuldades ainda uma vez suscitadas ao definitivo estabelecimento da Inquisição(679).

Havia entre a linguagem firme e altiva do breve de 26 de junho e esta facilidade em vir a um acordo, pressuposta a admissão do núncio Ricci, contradição evidente. Se o procedimento do papa dependia das informações dele, como podia comprometer-se a fazer uma concessão que seria, à vista das suas próprias expressões, uma flagrante injustiça, se as informações fossem desfavoráveis aos inquisidores? Como se defenderia, quando, na frase do breve, Deus lhe buscasse nas mãos os vestígios do sangue de tantas vítimas? As diligências de Ignacio de Loyola, a benevolência maior ou menor dos cardeais a quem se escrevera, quaisquer influências, em suma, que se movessem para minorar no ânimo do pontífice os efeitos da audaz resistência de elrei, efeitos que se fingia durarem ainda ao expedir-se o breve de 22 de junho, não bastam para explicar a intenção manifestada de virem a fazer-se tão grandes concessões. Outras circunstâncias, porém, concorriam que legitimam a conjectura de que se haviam empregado meios mais eficazes para facilitar o bom desempenho de Simão da Veiga no negócio de que fora incumbido. Os fatos referidos nos livos precedentes fazem por certo antever desde já ao leitor de que natureza eram esses outros meios a que se recorria.

Temos visto ao decurso desta narrativa quanto o cardial Farnese, o principal ministro de Paulo III seu avô, favorecia D. Miguel da Silva, e as estreitas relações que a identidade de ódios travara entre este e os cristãos-novos. O bispo de Viseu tinha sido sempre, mais ou menos ostensivamente, um tropeço em todas as negociações sobre aquele assunto. Posto que de modo indireto, já, como vimos, elrei se queixara de Farnese por causa do breve de suspensão, que levantara tamanha tempestade e que não podia ter sido expedido sem anuência dele. Assim, os dado ao prelado português era uma causa não menos poderosa de irritação. Assim, os termos entre a corte de Lisboa e o primeiro ministro do papa hão podiam ser os mais amigáveis. O figurar na negociação o cardeal Santafiore, não aparecendo o menor vestígio de intervir nela seu primo(680), é indício bem claro desse mútuo desgosto. Independente de quaisquer incentivos secretos que Farnese tivesse para favorecer as pretensões dos hebreus portugueses, havia um motivo assaz sério para lhe esfriar a benevolência para com D. João III. A longa espectativa da avultada pensão que ele solicitava havia tantos anos tinha-se afinal realizado em 1544, quando os clamores e esforços dos cristãos-novos, atrozmente perseguidos, começavam a despertar Roma da sua indiferença. Reconhecera-se a oportunidade de resolver a pretensão do cardeal, impondo a pensão de três mil e duzentos cruzados anuais, não em bens de mosteiros, conforme até aí se tratara, mas em rendas mais seguras e bem paradas das mitras de Braga e de Coimbra. A concessão, porém, tinha ficado, digamos assim, nas regiões da doutrina, e até os princípios de 1545 Farnese não recebera um ceitil das somas a que se lhe assegurara ter direito desde os fins de 1543. Não devia estar o cardeal satisfeito, circunstância que talvez explique em parte a recrudescência da compaixão da corte de Roma pelos hebreus portugueses. Chegadas, porém, as cousas da Inquisição a termos em que a má vontade do primeiro ministro do papa podia inutilizar todos os esforços a favor dela, D. João III lembrou-se da dívida. Não só se reservaram os rendimentos das duas mitras necessários para se remir o encargo, mas até se remeteu logo o dinheiro para Roma. E ainda a generosidade d’elrei não ficou em tão pouoo: mandaram-se pagar mais três anos, o corrente e dous adiantados. O fulgor de tanto ouro devia iluminar o ânimo do prelado romano e varrer-lhe da consciência mais de um escrúpulo acerca da justiça e imparcialidade dos membros do tribunal da fé(681).

Aproveitou-se igualmente de um modo hábil o óbito do cardeal Santiquatro. Havia a obter a confirmação de prelados para antigas sés vagas e a de novas ereções de bispados, de que então se tratava para satisfazer a vaidade ou a cobiça daqueles indivíduos importantes da corte fradesca de D. João III, os quais não tinha sido possível acomodar em reformadores e provinciais das ordens monásticas, ou que punham mais alto a mira das suas ambições. Havia também providências relativas a certos mosteiros opulentos, acerca das quais cumpria solicitar a aprovação de Roma. Eram negócios que tinham de ir ao consistório, e cuja apresentação no conselho pontifício não era cousa que se fizesse de graça. As propostas desta espécie pertenciam aos cardeais protetores das diversas nações a que os negócios tocavam, e constituíam um dos proventos mais sólidos dos protetorados. Era por isso que o de Portugal se tornara extremamente importante nos meados do século XVI. A necessidade de recorrer a Roma aumentava diariamente numa corte onde as questões e intrigas clericais e monásticas mereciam os mais extremosos cuidados. Em vez, pois, de atender às solicitações diretas ou indiretas dos que pretendiam suceder a Santiquatro, D. João III ordenou ao seu agente que oferecesse ao papa encarregar-se ele próprio das propostas, tirando d’aí os emolumentos do estilo, que nesta conjuntura tinham de ser assaz avultados. Era um modo delicado de abrandar as asperezas do velho Paulo III. Fatos anteriores induziam elrei a acreditar que a oferta não havia de ser mal recebida, e ao mesmo tempo esperava que o expediente fosse útil, não só às propostas de que se tratava, mas ainda à solução dos outros negócios então pendentes na cúria(682).

Estas transações ignóbeis precediam a expedição do breve de 16 de junho. Não passava aquele breve de uma ostentação vã, de uma demonstração estéril destinada a alimentar de futuro as esperanças dos cristãos-novos por mais algum tempo? Não queremos asseverá-lo. Na aparência, essa resposta enérgica à violenta missiva d’elrei devia trazer um completo rompimento entre as duas cortes: podia ser, porém, na realidade, apenas um véu lançado sobre os preliminares do acordo definitivo que as cartas de Roma asseguravam, suposta a admissão do núncio Montepoliziano. É, talvez, isto o mais provável.

Ignorando a existência daquele breve, e à vista da tão explícita declaração de Santafiore e do que lhe afirmavam os próprios agentes, D. João III entendeu que lhe cumpria ceder na questão do núncio. Ordenou-se a D. Christovam de Castro que se dirigisse a Valadolid, em cujas imediações o arcebispo sipontino se conservava, e que transmitisse a este a permissão de entrar em Portugal, debaixo da condição de exercer as funções de núncio sem ultrapassar a meta imposta ao eleito de Verona(683). Esta resolução foi comunicada para Roma, tanto a Santafiore(684) e a Ignacio de Loyola, como a Simão da Veiga e a Baltazar de Faria. Nessas correspondências, porém, insistia-se fortemente em que, tendo elrei cedido sem a menor hesitação aos desejos manifestados pelo papa, este devia realizar sem detença as promessas feitas solenemente pelo cardeal seu neto(685). Estava, porém, prevenido de antemão Baltazar de Faria a fim de que, no caso de não se chegar desde logo à conclusão naquele negócio, fizesse todos os esforços a fim de que de nenhum modo no concílio, que, depois de tantas demoras e embaraços, se ia definitivamente ajuntar, se tratasse do assunto da Inquisição portuguesa, porque todos os desejos d’elrei eram que se resolvesse o negócio unicamente entre ele e o papa. A mesma recomendação se fizera acerca da pendência relativa ao cardeal da Silva, para aclarar a qual tinha proposto o papa cometer-se a negociação ao núncio e ao célebre Fr. João Soares, agora bispo de Coimbra, proposta que elrei estava pronto a aceitar, com tanto que dessa deplorável contenda não tomasse conhecimento o concílio(686).

Uma circunstância extraordinária veio, porém, nesta conjuntura, não impedir o êxito da negociação, mas demorá-lo. Foi a ausência do principal negociador, a cuja capacidade e energia se deviam os termos a que chegara. A escassez das colheitas ameaçava Portugal de uma daquelas fomes, ainda não raras no século XVI, que vinham acompanhadas de outros flagelos, e a que só mui imperfeitos remédios sabiam achar os governos e os povos. O mais óbvio era mandar comprar cereais por conta d’elrei, no que então podia considerar-se como o granel da Europa, a Sicília. Achou-se que o homem mais próprio para se obter bom e rápido desempenho naquela ocorrência era Simão da Veiga. Expediram-se-lhe ordens que o obrigaram a partir para Palermo(687). Ficou só Baltazar de Faria, cuja influência e importância não podia ter deixado de padecer quebra pelo fato de se lhe haver dado um colega mais autorizado. E de feito, como veremos, as negociações entorpecidas pela saída de Simão da Veiga, dilataram-se, através de fases obscuras, até os primeiros meses de 1546.

Entretanto Ricci de Montepoliziano transpunha a fronteira nos princípios de setembro de 1545 e apresentava-se na corte de D. João III. Recebido com grande distinção, recordou-se-lhe a condição de não exercer outros poderes que não fossem os de simples núncio, tomando por norma o procedimento que por muito tempo tivera o seu antecessor, único meio de se manter a boa harmonia. Eram, porém, diversas as intenções do arcebispo sipontino. Tendo posto nas mãos d’elrei o breve de 22 de junho, nas primeiras visitas que fez ao infante D. Henrique apresentou-lhe a cópia dos queixumes que os cristãos-novos faziam, e, prometendo o infante dar-lhe explicações acerca dessas queixas, como a resposta se demorasse, escreveu para Roma, segundo parece, de modo pouco favorável à Inquisição. Ao mesmo tempo oferecia a elrei um memorial, em que largamente se expunham os agravos da gente da nação, e quando falava com os prelados do reino dava-lhes cópia do memorial, espraiando-se em invectivas contra o tribunal da fé. Em breve se tornou evidente que a Inquisição ia encontrar no novo núncio um resoluto adversário(688).

A política da cúria romana mostrava-se assim com toda a sua habitual astúcia. Enquanto as negociações que deviam terminar pela completa ruína dos hebreus portugueses caminhavam nas trevas para o desenlace, o representante do papa ostentava em Portugal um favor exagerado para com os perseguidos e mantinha-lhes viva a esperança, naturalmente crédula. Por que preço saíam a D. João III as vantagens diplomáticas que obtinha em Roma, acabamos de vê-lo: por que preço os cristãos-novos obteriam em Portugal a proteção do núncio podemos suspeitá-lo, ainda não acreditando que estivesse inteiramente vendido aos cristãos-novos, como os fautores da Inquisição espalhavam. O que havia mais sério nas agressões de Montepoliziano era o envolverem uma ofensa pessoal ao infante, mas o papa tratava ao mesmo tempo de remediar esse inconveniente. Apesar das sentidas escusas com que elrei anteriormente rejeitara para seu irmão o barrete cardinalício, o pontífice elevou D. Henrique à dignidade de cardeal. No breve em que comunicava ao monarca a eleição do infante, Paulo III aludia obscuramente à repulsa que dilatara aquela eleição e espraiava-se em elogios aos dotes de inteligência e de coração que resplandeciam no novo eleito, elogios em que nos é lícito duvidar um pouco da sinceridade do papa, mas que evidentemente deviam contribuir para adoçar a irritação causada pelo procedimento hostil do arcebispo sipontino(689).

Este seguia entretanto o caminho que provavelmente lhe indicavam as suas instruções secretas. Elrei, que a princípio recusara admitir a exposição dos agravos dos seus súditos de raça hebréia, tinha-a aceitado por fim da mão do núncio, e os inquisidores, a quem fora comunicada, haviam respondido amplamente a ela(690). Era, por um lado, a eterna repetição dos fatos que o leitor sobradamente conhece; eram, por outro, as mesmas negativas ou as mesmas apologias, repetidas mais de uma vez pelos chefes da fé. Ultrapassando as limitações com que entrara no reino, o núncio mostrava-se resolvido a ir mais longe, e, entretanto, dizia a algumas pessoas que, se elrei conviesse em se dar um perdão geral, o papa acederia também a que a Inquisição se estabelecesse para os delitos futuros, do mesmo modo e com a mesma organização definitiva com que existia em Castela. A inferência que daí se deduzia vinha a ser que o único ponto em que Ricci estava empenhado era em salvar os réus ou ainda em processo ou já sentenciados, sem lhe importar que depois, satisfeito este empenho, a Inquisição perseguisse ou deixasse de perseguir os cristãos-novos. Bastava isto para legitimar as suspeitas de que não eram motivos de consciência, mas de interesse que o dirigiam. O que, todavia, o tornava dobradamente suspeito era o muito que ele falava na sua honra e na incorruptibilidade com que sempre se houvera nos cargos que exercera em Roma(691).

Entretanto, é singular como, depois das restrições que lhe haviam sido impostas admitindo-o no reino, se lhe toleravam atos que eram quebra formal dessas restrições. Os debates entre ele e os inquisidores sobre o modo de proceder do tribunal da fé importavam o reconhecimento tácito do seu direito de intervenção, e fora o exercício desse direito que absolutamente se lhe negara. Como explicar tão estranha contradição? A explicação mais plausível é o efeito que devia ter produzido no ânimo do monarca a tardia leitura do breve de 22 de junho. A chancelaria romana parece ter guardado acerca dele completo segredo. Ao menos não achamos vestígio de que ou D. João III ou os seus agentes em Roma tivessem notícia antecipada daquela enérgica resposta, que fora transmitida a Montepoliziano, e que este só apresentara por ocasião da sua entrada. A réplica às ponderações do papa não era fácil, e a impressão que fizeram devia ser profunda. Naquele diploma brilhavam, na parte relativa aos cristãos-novos, a sã razão e a firmeza. Ainda supondo que o procedimento da cúria tivesse na sua origem motivos mais ou menos ignóbeis, cumpre confessar que o breve de 22 de junho era, na substância e na forma, digno do chefe da igreja. Atribuindo-o a inspiração do cardeal da Silva, D. João III, sem o querer nem saber, honrava o foragido prelado, que tão cordialmente aborrecia(692). As razões do papa quebravam os ânimos para se obstar seriamente às averiguações que o núncio tinha missão de fazer, e a necessidade de transigir nesta parte devia tornar-se evidente. Naturalmente ocorriam ainda outras considerações. Por uma parte não convinha suscitar novos conflitos que complicassem a questão, de modo que ela houvesse de ser levada ao concílio que ia proximamente reunir-se. Era uma das cousas que, como vimos, elrei mais temia. Por outro lado, ainda quando a questão não chegasse a esses termos, cumpria evitar todos os incidentes que pudessem impedir ou retardar as negociações pendentes na cúria.

Replicar ao breve de 22 de junho era, todavia, indispensável; porque o silêncio importaria a aceitação das doutrinas nele contidas, mas parece que, sob a impressão das precedentes considerações, não se julgou oportuno fazê-lo por escrito. Mandaram-se instruções aos agentes em Roma, nas quais se especificavam os termos em que haviam de falar ao papa sobre aquele delicado assunto. Eram escassas na parte relativa aos cristãos-novos. Limitava-se elrei à alegação mil vezes repetida da sinceridade das suas intenções, provada pelas perdas que lhe resultavam da perseguição dos hebreus; defesa inepta, porque (ainda acreditando que nesse procedimento não houvesse a idéia de que um dia se estabeleceriam definitivamente os confiscos, e portanto não se imolassem a previsões de cobiça os interesses então atuais do país) nessa época, como em todas, eram vulgares os exemplos de se preferir a satisfação das próprias paixões e caprichos aos mais subidos interesses.

No que as instruções se dilatavam era na questão do bispo de Viseu. Estranhava-se, e com razão, que o papa fingisse ignorar os queixumes fundados ou infundados que havia contra ele. Recordavam-se os fatos que tinham passado, e as instâncias tantas vezes feitas para obter o castigo daquele grande criminoso. Recomendava-se, depois, aos agentes que increpassem seriamente o cardeal Farnese da sua intimidade com D. Miguel da Silva, e que lhe pedissem não quisesse escandalizar elrei a ponto que d’aí resultassem conseqüências desagradáveis. Por obscuras e tortuosas que fossem as frases das instruções, essas frases envolviam ameaças mais ou menos disfarçadas. Advertia-se especialmente a Baltazar de Faria que, se o papa ou qualquer outro falasse na questão das rendas do bispado de Viseu, declarasse categoricamente que nunca se havia de consentir que, direta ou indiretamente, estas fossem parar às mãos do bispo, certificando que se conservariam em escrupuloso depósito, para serem empregadas do modo mais conveniente em serviço de Deus. Prevenindo, enfim, a possibilidade de Simão da Veiga ter partido já para Sicília, autorizava-se Baltazar de Faria para dar cumprimento por si só àquelas instruções(693).

As matérias relativas ao tribunal da fé caminhavam em Roma com extrema lentidão, como dissemos, depois da partida para Palermo do agente extraordinário. Devia-se isto principalmente a um frade franciscano confessor do papa, que os hebreus portugueses tinham sabido converter em seu defensor(694). A promessa, porém, vinda de Lisboa, de se permitir a entrada a Montepoliziano, colocava a cúria romana na necessidade de também cumprir por sua parte a que fizera de conceder a bula definitiva da Inquisição na forma em que se pedia, suposta a admissão do núncio. Efetivamente assegurou-se a Simão da Veiga antes de sair de Roma que se ia tratar sem detença do assunto; mas os embaraços começaram logo a surgir. Era o mais grave a ignorância em que se estava acerca do cumprimento das promessas d’elrei. Achava-se Montepoliziano em Portugal? Eis o que se ignorava e que por muito tempo se ignorou, visto ter-se verificado a sua entrada só em setembro de 1545. Depois de sabido o fato, sobreveio nova dificuldade. Para redigir a pretendida bula, que tinha de substituir completamente a de 1536, cujos efeitos cessavam em 1546, eram precisas certas informações de Ricci, devendo estatuir-se de novo sobre todas as questões que o assunto envolvia. Apertava Baltazar de Faria com os cardeais De Crescentiis, Ardinghelo e Sfrondato, encarregados especialmente do negócio: mostravam-lhe eles os maiores desejos; não chegavam, porém, a conclusão alguma(695). Por outro lado o agente d’elrei era obrigado a distrair-se daquele objeto com a questão do bispo de Viseu. D. João III aceitara a proposta do papa para ser submetida essa interminável contenda a dous negociadores, que eram o novo núncio e o bispo de Coimbra, Fr. João Soares; mas, apesar disso, a luta de enredos a tal propósito continuava na corte pontifícia com a mesma atividade(696). Assim, passados alguns meses, Simão da Veiga, voltando a Roma (fevereiro de 1546), achou tudo a ponto de se concluir, segundo afirmavam Santafiore e o mesmo papa e, até, conforme cria Baltazar de Faria, mas, na realidade, no mesmo estado em que o deixara. A falta de cartas de Ricci, dizia-se, era o único obstáculo à redação da nova bula; mas este era insuperável. Debalde o ativo agente inculcava ao pontífice que se iludiam os seus compromissos com este pretexto; debalde pintava a Farnese o descontentamento d’elrei e recordava a Santafíore o que por seu próprio punho escrevera para Portugal. Nada conseguia em definitiva, senão boas palavras, e descobrir pelos seus informadores secretos que estava sendo procurador dos cristãos-novos o confessor do papa(697).

Se na importância que se ligava às comunicações do arcebispo sipontino havia boa fé, ignoramo-lo. O que é certo é que as opiniões de Ricci e os fatos comunicados por ele não deviam contribuir demasiado para o desenlace final da contenda, atendendo ao que se passava em Portugal. O representante do pontífice, ao passo que propalava a idéia de que conviria admitir um novo perdão geral para os crimes de heresia, apertava nas suas insistências para que lhe deixassem examinar os processos, tanto julgados como pendentes. Resistiam os inquisidores, e recusava positivamente elrei, com o pretexto ou fundamento de que esse dilatado exame eternizaria a situação provisória do negócio. Por fim, conveio Ricci em limitar as suas averiguações a cinco causas que apontou. Foram os respectivos processos revistos em repetidas conferências, a que assistiam, por uma parte o infante e vários membros do tribunal, e por outra o núncio e os seus auditores. A acreditarmos as memórias favoráveis à Inquisição, o arcebispo sipontino declarou a elrei que ficava satisfeito com o exame, e que achava regulares os processos; mas estas mesmas memórias nos dizem que os pedira depois para segundo exame; que efetivamente se lhe deram, e que, todavia, fulminara excomunhões contra os notários do tribunal da fé por lh’os não haverem entregado(698). Esta narrativa contraditória e pueril, que, a ser verdadeira, significaria que Ricci era demente, está confirmando o fato que se deduz das representações dos cristãos-novos, substanciadas no antecedente livro, e do qual ainda hoje se estão descobrindo vestígios nos arquivos da Inquisição, isto é, que onde e quando convinha, se truncavam os autos, ou eram suprimidas as peças importantes dos processos(699). É, em nosso entender, este procedimento que se busca encobrir nessa narrativa tão pouco digna de crédito. Provavelmente o núncio, bem informado pelos cristãos-novos, tinha pedido cinco processos dos mais monstruosos, que os inquisidores lhe apresentaram viciados, de modo que do exame nada pudesse resultar contra eles. Pedindo-os para novo exame, devia estar advertido pelos interessados dos documentos ou atas que aí faltavam. Eis o motivo das excomunhões que nos parece mais provável.

Fosse, porém, qual fosse a causa daquele procedimento, é fácil imaginar qual seria o despeito de D. João III e dos inquisidores à vista de tanta ousadia. Se pelo passado se houvesse de calcular o futuro, era inevitável um ato de vigor da parte d’elrei. Ricci fizera por arbítrio próprio mais ofensiva agressão do que a do breve suspensivo de 22 de setembro, e a retaliação cumpria que fosse violenta. Todavia o monarca limitou-se a repreender o núncio, que, segundo se diz, respondeu de modo pouco satisfatório, e a escrever para Roma o mesmo conto ridículo acerca dos cinco processos que se espalhara em Portugal, concluindo pela repetição das súplicas a favor do estabelecimento definitivo do tribunal da fé e de plena liberdade para os inquisidores. Pedia-se ao mesmo tempo que por uma vez acabassem as concessões de juízes especiais e a intervenção dos núncios nas matérias da Inquisição. Estas súplicas eram estofadas com as considerações que se repetiam havia dez anos, e com todas as frases pias e sentidos queixumes com que se costumavam adornar as comunicações oficiais dirigidas à cúria romana sobre aquele assunto(700). Excesso singular de paciência, que indica não ter sido o procedimento do arcebispo sipontino tão desarrazoado como se pretendia inculcar.

No mesmo dia em que se davam a Baltazar de Faria instruções a este respeito, expediam-se-lhe outras acerca da questão do bispo de Viseu, que explicam sobejamente a impensada moderação d’elrei. Depois de tantos anos de luta, este compreendera, enfim, o que ainda hoje mais de um estado católico parece ou ignorar ou esquecer. Aos governos fortes e honestos, que sabem manter a dignidade do seu país e o próprio direito, é fácil reprimir pela energia as tendências sempre abusivas da cúria romana: mas aos governos fracos não resta outra escolha senão a de saciar-lhe a cobiça pela corrupção, ou a de curvar a cabeça diante das suas pretensões. D. João III preferiu a corrupção. Tinha larga experiência do que era Roma, e que podia ser franca, e quase que diríamos brutalmente, corruptor. Farnese, o neto e ministro de Paulo III, não estava saciado com as grossas somas remetidas a Baltazar de Faria. Cumpria dar-se-lhe mais. As rendas ordinárias do bispado de Viseu e dos benefícios que desfrutara o cardeal da Silva eram avultadas. Ordenou, portanto, elrei ao seu agente que oferecesse diretamente ao papa a administração daquele bispado e daqueles benefícios para Farnese. Era o preço que oferecia pela concessão definitiva da Inquisição, mas devia acrescentar-se na veniaga a recusa de um perdão geral, que se dizia estarem a ponto de obter os cristãos-novos, em harmonia com o parecer de Ricci. Nesta parte ordenava que se fizessem as mais vivas instâncias, mas advertia que, se o papa insistisse naquela idéia, nem por isso se deixasse de concluir a transação(701). O expediente era hábil: Farnese convertia-se assim de protetor de D. Miguel em seu êmulo, e de afeiçoado à causa dos hebreus em adversário resoluto dela. Na idade de vinte seis anos, nessa época de paixões ardentes, a perspectiva de uma rica prelazia e de pingues benefícios, acumulados à pensão que já desfrutava em Portugal, devia acabar de abrir os olhos ao moço ministro sobre o serviço que a Inquisição fazia a Deus e sobre a legitimidade do implacável ódio que D. João III votara ao seu antigo escrivão da puridade. Abandonar o sistema de corrupções mais ou menos obscuras ou subalternas, para corromper diretamente, e de um modo amplamente generoso, o governo pontifício, era caminhar com segurança à conclusão da longa luta empreendida para firmar em Portugal a Inquisição, resolvendo-se ao mesmo tempo o problema da completa ruína de D. Miguel da Silva. Mas cumpria não enfraquecer este grande meio com as inúteis pretensões de nobre altivez, que o breve de 22 de junho provava ter perdido a sua antiga eficácia para com o papa. D. João III não agradecera a concessão da dignidade cardinalícia feita ao infante D. Henrique. Era o que decentemente podia fazer, visto subsistirem os mesmos motivos que outr’ora o haviam levado a rejeitar uma oferta análoga. Tinha-se irritado o pontífice com semelhante procedimento, e Simão da Veiga comunicou para Lisboa qual fora o profundo desgosto que o fato causara(702). A comunicação, porém, era inútil: o despeito delrei passara. Baltazar de Faria recebia pouco depois ordem para apresentar a Paulo III uma carta do seu soberano, em que este agradecia ao supremo pastor aquela demonstração de benevolência e em que se fingia completamente esquecido dos descontentamentos passados(703).

Tudo isto era necessário para contrastar a resoluta parcialidade de Ricci a favor dos cristãos-novos. Se o núncio era pago para seguir este sistema, cumpre confessar que procedia como honrado obreiro. Usando de linguagem firme, posto que moderada, elrei intimara ao arcebispo que, visto estar habilitado para dar a sua santidade as informações que lhe haviam sido cometidas acerca da Inquisição e dos inquisidores, suspendesse qualquer procedimento ulterior nas matérias pertencentes àquele tribunal, até receber novas instruções do pontífice. Evitavam-se assim as colisões em Lisboa; não se obstava, porém, a que essas informações fossem altamente desfavoráveis aos inquisidores, o que atenuaria mais ou menos o efeito do vantajoso negócio proposto ao papa e a seu neto Farnese. Faria era por isso encarregado de apresentar a Paulo III uma carta recheada de queixas contra o seu núncio e de ponderar, tanto ao avô como ao neto, a necessidade de porem termo àquela tão protraída questão(704).

O estado das cousas em Roma justificava estas precauções. Tinha-se aí cerrado a porta a todos os debates com a resolução de esperar as informações de Ricci. Delas se afirmava depender tudo, porque se ignoravam ainda as generosas propostas d’elrei. No meio destas tréguas forçadas, os cristãos-novos continuavam a impetrar breves a favor de indivíduos presos pela Inquisição, que solicitavam serem tirados das garras dos inquisidores e julgados por juízes apostólicos especiais. Eram estes breves que não deixavam um momento de repouso a Baltazar de Faria. Pretendia ele que, assim como se entendera ser conveniente sobrestar na questão geral, até se conhecer o resultado do inquérito do núncio, assim também cumpria não a prejudicar por atos tendentes a deprimir a força moral dos inquisidores. Foi no meio destas lutas obscuras que se passaram os primeiros meses de 1546. Logrou, porém, quase sempre o agente obstar a que o ouro dos mais opulentos cristãos-novos os pusesse a salvo, a eles ou aos seus apaniguados da sorte comum da raça hebréia(705).

O que Baltazar de Faria especialmente recomendava para Portugal era que se empregassem todos os meios, inclusivamente as ameaças, para obter de Ricci informações favoráveis. O inconveniente não estava em que do inquérito resultasse um ou outro fato de abuso de autoridade da parte deste ou daquele inquisidor: estava em pintar o núncio as tendências, o sistema e o proceder em geral da Inquisição como apaixonados e injustos. Custasse o que custasse, era preciso que ele, além de dar informação favorável, se não limitasse a termos vagos sobre poder-se tolerar a existência do tribunal da fé: cumpria que afirmasse a sua necessidade como instituição profícua à religião, e que o carácter e mais dotes dos seus ministros os habilitavam para exercerem dignamente as funções de inquisidores. Sem isto, supunha ele, esta longa e tediosa contenda teria, a bem dizer, de passar de novo pelas fases anteriores logo que expirassem os dez anos a que se limitavam os efeitos da bula constitutiva de 1536(706). Os receios do agente português provam, todavia, que na conjuntura em que escrevera as precedentes ponderações ainda não havia recebido a carta d’elrei em que se lhe ordenava fizesse ao papa as vantajosas ofertas que deviam reverter em benefício do cardeal Farnese. Se assim não fosse, tinha bastante experiência das cousas de Roma para apreciar toda a eficácia daquele alvitre e modificar profundamente os temores que o assaltavam.

Os documentos relativos aos sucessos dos meados de 1546 são escassos, mas a precedente narrativa explica de sobejo os acontecimentos dessa época. As comunicações da corte de Lisboa nos primeiros meses deste ano tinham sido dirigidas só a Baltazar de Faria, provavelmente porque se ignorava ainda a volta de Simão da Veiga a Roma. Entretanto este desde que ali chegara tinha empregado, como vimos, todos os esforços possíveis para concluir a sua missão. O único obstáculo aparente era, conforme também temos visto, a tardança das informações de Montepoliziano. Apareceram, enfim, essas informações, e a cúria romana, privada daquele último pretexto das suas longas tergiversações, viu-se obrigada a dar uma solução definitiva.

Mas o que os procuradores dos conversos esperavam, e Baltazar de Faria receava(707). verificou-se, não sabemos até que ponto. As informações de Ricci não eram, de certo, excessivamente favoráveis à Inquisição. Se acreditássemos o que ele próprio escrevia a um íntimo amigo, não fizera nisso senão seguir as instruções que a tal respeito se lhe mandavam de Roma(708). Aí os agentes dos cristãos-novos ainda tinham bastantes recursos e protetores para obterem que não só se dessem secretamenta essas instruções, mas que também o papa fizesse demonstrações públicas de que não havia abandonado inteiramente a sua causa. Deu-as, de feito, Paulo III, mandando expedir uma bula para prorrogar por mais um ano as disposições da de 23 de maio de 1536, em virtude das quais o confisco dos bens dos réus de judaísmo tinha ficado suspenso por dez anos. Esta prorrogação era necessária, dizia o pontífice, para dar tempo a colherem-se o resto das informações que Montepoliziano estava encarregado de coligir(709). A astúcia romana saía assim vantajosamente de um mau passo Concedendo ao rei a Inquisição na forma pretendida, apesar das informações já alcança das, mostrava-lhe uma condescendência digno de ser correspondida com a realização das ofertas relativas aos benefícios de D. Miguel da Silva. Essas mesmas informações, porém, habilitavam-no para mostrar certa solicitude pelos interesses dos cristãos-novos e pare não ceder no ponto do perdão, que Montepoliziano tinha o cuidado de espalhar ser indispensável, e a que das cartas dirigidas a Baltazar de Faria se depreende que o próprio D. João III não tinha inteira esperança de obstar. O preço deste perdão, que de certo não era negociado gratuitamente, podia assim conciliar-se com as generosas propostas secretamente feitas pelo monarca.

Foi o que se fez. Simão da Veiga partiu de Roma com a final resolução sobre o assunto nos fins de setembro ou princípios de outubro(710). Quando, porém, atravessava a França, adoeceu e veio a morrer em Avinhão. Um criado seu trouxe a notícia a Lisboa e juntamente os despachos de que ele era portador. Estes despachos continham uma espécie de ultimatum da corte de Roma. O papa, concedendo o estabelecimento da Inquisição conforme os princípios que geralmente regulavam aquela instituição, satisfazia aos ardentes votos do rei de Portugal, até aí tão vivamente contrariados; na doçura, porém, de um desejo satisfeito misturara o absinto. O perdão geral aos réus de judaísmo acompanhava a concessão, e procurava-se evitar, nas condições com que ele se devia aplicar, que os inquisidores o tornassem ilusório. Protestando sempre que não estavam autorizados para virem a acordo sobre o definitivo estabelecimento do tribunal da fé com aquelas restrições, Simão da Veiga e o seu colega, convencidos da inutilidade de novas insistências, só tinham, todavia, aceitado a resolucão pontifícia para a transmitirem ao seu governo, partindo com ela o agente extraordinário a dar, enfim, conta a elrei do bom, posto que imperfeito, resultado da sua demorada missão(711).

Apesar de Faria ter sido autorizado para ceder no ponto do perdão geral, uma vez que o papa e seu neto vendessem pelas rendas dos benefícios de D. Miguel da Silva a concessão do tribunal da fé em toda a plenitude, os despachos trazidos pelo familiar de Simão da Veiga excitaram a cólera verdadeira ou fingida d’elrei. Ricci recebeu uma comunicação redigida em termos acres, na qual se repetiam os usuais queixumes contra as condescendências de Roma para com os cristãos-novos, e se respondia com explícitas exigências ao pressuposto ultimatum do papa. Pretendia-se que a nova bula da instituição permanente do tribunal da fé revogasse todas as exempções e breves de perdões índividuais, concedendo-se aos inquisidores os poderes e privilégios que eles pediam em certos apontamentos juntos àquela nota. Só se poderia tratar de perdão se este se referisse unicamente a indivíduos de raça hebréia, excluindo quaisquer outros réus de judaísmo. Todos os confessos e convictos deviam abjurar solenemente antes de se lhes aplicar aquela graça, para serem punidos como relapsos se reincidissem. Quanto aos presos, contra os quais não havia prova plena, mas só indícios, deviam estes abjurar em audiência particular dos inquisidores, sujeitando-se às penitências que lhes fossem impostas, mas podendo ser metidos de novo em processo, se aparecessem provas ulteriores contra eles. Evitariam as conseqüências desse fato, se em tempo legal viessem confessar seus erros e abjurá-los, deixando elrei ao papa decidir se estes tais, reincidindo, deveriam ser tratados como relapsos. A mesma doutrina se estabelecia acerca dos levemente suspeitos, mas já presos, com a exceção de serem no entanto soltos sem abjuração nem penitências. Os indivíduos culpados ou simplesmente indiciados nos registros e processos da Inquisição, mas contra os quais não se houvesse ainda procedido, obteriam perdão vindo secretamente pedi-lo dentro do termo marcado. Deixava-se neste caso também ao papa resolver se, caindo posteriormente em erro de fé, seriam considerados ou não como relapsos. Todos os indivíduos compreendidos nas precedentes categorias que no prazo assinalado não solicitassem o perdão não o poderiam obter depois, e seriam excluídos dele todos os negativos, isto é, os que negassem o delito, ainda depois de provado judicialmente, e os confitentes contumazes, isto é, os que, sectários sinceros da lei de Moisés, nos cárceres, nos tormentos, e ante o prospecto de cruel suplício confessassem nobremente a própria crença. Elrei concluía declarando que estava pronto a abster-se dos confiscos por mais três anos, como já em 1536 se abstivera por dez(712).

Estas resoluções definitivas toram transmitidas a Baltazar de Faria, não para que as apresentasse oficialmente ao pontífice, mas para que tivesse conhecimento delas. Dirigindo-se ao supremo pastor por intervenção do núncio, elrei dava ao seu ministro em Roma aquela demonstração de desgosto pelo modo altamente inconveniente por que se houvera no desfecho da negociação, cujo progresso lhe ordenava observasse sem nela intervir de outro modo(713). Suspeitamos, todavia, que a carta dirigida ao agente em Roma não tinha na realidade o valor que fingia ter. Que elrei estivesse descontente com o incompleto da concessão e que os inquisidores lhe excitassem o ânimo para não admitir o perdão, senão em termos tais que eles pudessem iludi-lo, é assaz crível, mas também é crível que essa carta fosse redigida para servir as indiscrições que se costumavam ordenar aos agentes em Roma, quando elrei queria indiretamente assustar a cúria com as suas cóleras, que podiam nem sempre ser vãs e pueris. Concebe-se que D. João III se houvesse arrependido da vaga autorização que dera a Faria para transigir na matéria do perdão: não se compreendem, porém, tão rigorosas demonstrações de despeito por ele haver efetivamente transigido nessa parte, se nelas não virmos o pensamento reservado de iludir a cúria.

O que, porém, parece poder-se afirmar com certeza, é que, recebendo os despachos dados a Simão da Veiga, elrei mostrava não estar longe de aceitar o seu conteúdo. Fora, pelo menos, disto que o núncio informara a sua corte. Tinha-se reunido em Lisboa uma junta de teólogos, onde, segundo Ricci dizia, se forcejava para que as resoluções do papa quanto ao perdão não fossem aceitas. Persuadia-se, porém, o núncio de que elrei saberia resistir a pretensões exageradas, embora se houvesse queixado de que o papa nunca lhe fizesse uma concessão ampla e em tudo conforme a seus desejos. A comunicação que depois recebeu veio desenganá-lo em breve de que se iludira. Entretanto, apesar das esperanças do núncio, a sua carta fizera mau efeito em Roma. Espantavam-se todos de que os parciais da Inquisição ainda não estivessem satisfeitos. Alguns cardeais chegaram a prorromper em invectivas. «Que querem os inquisidores? — diziam eles. — Querem carne?» — Ponderavam que, se o perdão servisse de emenda aos cristãos-novos, eram almas que se ganhavam; se não servisse, fácil seria depois processá-los e puni-los. O papa segundo os avisos ocultos dados a Baltazar de Faria, afirmara, num momento de irritação, que procederia do modo que julgava oportuno, quer elrei o quisesse quer não. Era este sentir da cúria que o agente português comunicava ao seu soberano pouco antes de receber severas repreensões por ter cedido, sem ultrapassar as anteriores instruções, num ponto em que a pertinácia, visto o estado dos ânimos, podia comprometer tudo(714).

Um fato singular, ocorrido por aquele tempo, nos mostra como, vacilante ante as pretensões extremas dos parciais da intolerância e as ponderações do núncio, D. João III buscava, bem que tarde, algum alvitre prudente para sair das dificuldades que lhe suscitava a luta de encontradas paixões e de opostos interesses, sem, todavia, arriscar de novo o muito que enfim ganhara. Talvez o quadro que o seu agente lhe desenhava do péssimo efeito que produzira na cúria romana a resistência a uma parte das recentes resoluções pontifícias contribuísse para o fato a que nos referimos, ou, talvez, no momento de triunfar, lhe surgisse na consciência uma voz de remorso. Fosse o que fosse, um raio fugitivo de cordura pareceu alumiar as trevas daquela alma. Entre os cristãos-novos mais qualificados, havia quatro, cujos nomes ignoramos, os quais, ao passo que exerciam grande influência na gente da sua raça, mereciam também a confiança do príncipe. Chamou-os elrei e ordenou-lhes que lhe redigissem uma exposição sobre os meios que se poderiam empregar com vantagem para tranqüilizar os conversos e reduzi-los a submeterem-se ao tribunal da fé, abandonando um sistema de resistência, fatal para eles, danoso para o reino, e só útil à cobiça insaciável de Roma. D. João III proibia, contudo, a esses homens que consultassem a matéria com os da sua nação. Era o juízo deles que exclusivamente queria conhecer(715). Deram-lh’o. Em primeiro lugar criam necessário aceitar-se com sinceridade o perdão geral quanto ao passado, que se dizia ter-se obtido do papa, e em segundo lugar que os rigores da Inquisição fossem modificados em tudo aquilo que parecia ou excesso de severidade ou ofensa de justiça. Assim, cumpria que aos réus se comunicassem os nomes dos acusadores e das testemunhas, declarando-se não-poderosos os cristãos-novos, para isso se conciliar com as leis canônicas. Não seria, quanto a eles, senão declarar um fato sabido de todos. Nunca, diziam os quatro hebreus, durante mais de dez anos, uma única testemunha de acusação contra os conversos fora vítima da vingança dos réus. Era prova da timidez da raça proscrita o procedimento de Francisco Gil, que conduzira, sozinho, de Trás-os-Montes um grande número de presos, fazendo-lhes pelo caminho inúmeras atrocidades, sem que nenhum ousasse resistir-lhe. Lembravam o assassínio que este mesmo homem cometera em Lisboa, sem que d’aí lhe resultasse o menor perigo, e que, quando saíam do reino, na ocasião do embarque bastava um indivíduo para roubar vinte. Ponderavam a elrei que era impossível tranqüilizarem-se os seus súditos de origem hebréia enquanto neles fossem reputados crimes atos que noutros nem pecados veniais seriam, e enquanto se admitissem a testemunhar nos processos da Inquisição pessoas da mais baixa plebe, dessa plebe que já os metera à espada, e para quem era um espetáculo delicioso vê-los estorcer nas chamas do suplício.

Refletiam também os quatro conversos nos tristes resultados de processar e condenar réus por confissões e denúncias dos seus companheiros d’infortúnio. Lembravam os efeitos morais da violência dos tratos, do terror antecipado dos tormentos, da esperança do perdão, das promessas ilusórias que se faziam, de todas as artes diabólicas com que se buscava que os próprios presos fossem virtualmente os algozes uns dos outros. Com destreza, davam a entender que muitos desses depoimentos eram forjados, porque, diziam eles, não alcançavam como alguns que francamente se haviam declarado judeus e subido ao cadafalso impenitentes, deixavam depoimentos (aliás impossíveis de arrancar a quem estava resolvido a morrer) em conseqüência dos quais as suas famílias e os seus parentes e amigos vinham a ser também sacrificados. Que tais expedientes não eram precisos para se descobrirem os culpados provava-se com mais de quinhentos indivíduos encarcerados naquela conjuntura por denúncias de cristãos-velhos e de conversos que se achavam no gozo da sua plena liberdade. Mostravam a necessidade de fazer com que a abolição dos confiscos se convertesse em realidade, e que as prisões não fossem segredos horríveis como eram as chamadas covas da Inquisição de Évora. Na forma de processar os culpados notavam especialmente o admitirem-se denúncias e depoimentos de escravos, o que tornava intolerável a situação das famílias de raça hebréia, que se viam servos dos seus próprios servos, não havendo, aliás, criados livres que quisessem servi-las, e não se atrevendo a punir um escravo com medo de cruéis vinganças, favorecidas pelo carinho com que eram tratados os que iam delatar seus senhores. Solicitando remédio para os desconcertos que enumeravam, os quatro hebreus, cuja linguagem era a de homens sinceramente convertidos e que parecia não temerem a Inquisição nem desejar que fosse abolida, recordavam a elrei que esse remédio estava em manter as promessas solenes feitas aos conversos por D. Manuel e por ele próprio, promessas que as atuais tiranias formalmente desmentiam. Não se limitavam, porém, a pedir para os da nação aquilo que se podia reputar de rigorosa justiça; pediam também misericórdia. Consideravam esse meio como o mais eficaz para reconduzir à estrada do cristianísmo os que dela se haviam desviado. Devia-se, na opinião deles, conceder o perdão a todos os sentenciados, não sendo relapsos, que se mostrassem arrependidos, ainda mesmo nos degraus do patibulo, embora esse arrependimento fosse inspirado só pelo horror da morte e não por uma conversão sincera. Apontavam muitos abusos que havia na aceitação de denúncias, principalmente de denúncias sobre fatos praticados muitos anos antes, na forma das capturas, na ordem do processo, e ainda na espécie de correições que pelo reino faziam os inquisidores, um dos quais, só em Trancoso, obrigara a fugirem, dentro de dous ou três dias, cento e setenta chefes de família, pela maior parte abastados mercadores. Concluíam os quatro conversos por algumas reflexões cuja gravidade desejamos que o leitor aprecie por si mesmo. Transcreveremos em substância as principais, reduzindo-as, para as tornar claras, à linguagem moderna.

«Senhor — diziam eles — não promulgue vossa alteza leis, nem tolere estatutos ou regimentos de corporações em que se faça uma seleção odiosa entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Atualmente, embora muitos destes últimos tenham capacidade sobeja, não os admitem, nem nas misericórdias, nem nas confrarias nem sequer entre os mesteres das cidades e vilas. Mancebos valentes e robustos que vão alistar-se para as guerras da Índia, rejeitam-nos, cobrindo-os de afrontas; e, todavia, não consta que os que lá foram antes praticassem nenhum ato vil. Rogam a homens incapazes que aceitem cargos públicos, desprezando os mais hábeis, só pelo sangue que lhes corre nas veias, e a alguns que anteriormente as adquiriram, procuram exclui-los deles com o pretexto de raça. Os homens que estimam a honra preferem por isso abandonar o país. Se lhes dessem paz, ficariam os que ainda restam e que são o maior número, voltariam os que andam errantes por Galiza e Castela e ainda muitos dos que já se estabeleceram em Flandres, em França e em Itália, regressando à pátria, viriam assentar aqui de novo casas de comércio e restaurar o tráfico amortecido. Com esses favores, não ficará menos temida a Inquisição, nem os que delinquirem contra a fé evitarão o castigo. Que mais vigilante sentinela do que o ódio popular? Tumultos, sublevações, escândalos diários praticados contra os conversos completam nas ruas e praças as representações feitas em cortes com eles. O povo só pensa em persegui-los e em metê-los debaixo dos pés. Não faltarão nunca testemunhas que sirvam para condenar os verdadeiros réus, no meio da malevolência do vulgo e num país onde as leis proíbem as devassas gerais pela tendência que o povo tem para jurar falso. Toda a indulgência parece pouca, tratando-se de indivíduos colocados em tal situação. Antes deixar impune um criminoso do que punir um inocente. As leis da igreja e as da sociedade dissimulam muitas vezes pequenos males para obviar a outros maiores. Deve seguir-se este exemplo. Nem se aleguem os rigores da ínquisição de Castela. Os portugueses têm maior resolução para abandonarem a pátria, e estão de sobreaviso, justamente pelo exemplo do que viram naquele país. Proibir-lhes a saída é inútil. A experiência tem ensinado com que facilidade abandonam bens e tudo, com que temeridade afrontam quaisquer perigos, para deixar a terra natal. Sem moderação e tolerância, bem poucos ficarão no reino. Depois, em Castela não os maltratavam, não os envileciam antes de serem declarados réus. Lá, o povo não lhes mostrava igual ódio; não fazia assuadas para os matar. Lá, gozavam das mesmas honras que os cristãos-velhos; eram regedores das terras, e a simples injúria de se lhes chamar judeus ou tornadiços punia-se com severidade. Desse modo arriscavam-se aos perigos da Inquisição. E, ainda assim, quantos não saíram de Espanha? Foram, a bem dizer, inumeráveis, que estão espalhados por todo o mundo. E, todavia, dava-se uma diferença: hoje os que saem de Portugal são acolhidos nos diversos países cristãos com a melhor vontade, e protegidos com singulares privilégios, o que d’antes não cremos que sucedesse. Eis o que pensamos, senhor. Mande vossa alteza examinar o nosso voto, e Deus ilumine o seu coração para escolher o que for mais acertado».

Os precedentes conselhos e reflexões são obviamente sensatos. A razão, a justiça, a humanidade e a boa política parece terem-nos inspirado. Ouvidos, porém, sobre eles os fautores da Inquisição ou os próprios inquisidores(716), foram achados quase inteiramente inadmissíveis. Era natural. E o mais é, que a impugnação parece às vezes concludente, partindo das doutrinas jurídicas então recebidas. Até certo ponto, os agravos enumerados na consulta eram infundados, admitida a doutrina de que a igreja ou o estado tinham o direito de intervenção nas crenças dos indivíduos, e de que a violência e a crueldade podiam ser um meio de salvação. Assim, parte dos males que resultavam da existência do tribunal da fé, derivando de idéias falsas, seria injustiça atribui-los à vontade dos homens. Não sucedia o mesmo quanto a certa ordem de fatos. Propunha, por exemplo, a consulta que não se prendesse nem processasse ninguém por delações ou testemunhos de presos e que bastassem à intolerância as denúncias feitas por chnstãos-velhos e por conversos no uso da sua liberdade: dava-se em prova de que este meio racionai era suficiente o estarem encarcerados e processados, em conseqüência de tais denúncias, mais de quinhentas pessoas, e ponderava-se que o ódio popular seria sobejo para promover acusações de tal ordem. Não negavam estes fatos os inquisidores, mas recorriam à consideração de que, sendo o judaizar am crime oculto só os réus presos podiam saber quem eram os seus co-réus, como se os tormentos e os terrores empregados para fazer falar as vítimas e obrigá-las a inventar cúmplices fossem fatos indiferentes. O corretivo para isso e a garantia para os culpados que ofereciam era a própria sutileza e integridade no discriminar depoimentos de tal ordem. Quanto às prisões feitas em virtude de delações de cristãos-velhos, afirmavam que essas delações só apareciam a princípio, quando se estabelecia de novo a Inquisição em qualquer distrito, e que depois cessavam; defesa pueril, porque nada mais natural do que cevarem-se desde logo todos os ódios acumulados, perseguirem-se de chofre todos os homens impopulares, quando, em qualquer lugar, se oferecesse o meio de satisfazer as vinganças pessoais e as malevolências da praça pública. Esperar o contrário é que seria absurdo. Confessando as propensões do vulgo para jurar falso, opunham fatos a fatos, citando processos em que os conversos tinham corrompido as testemunhas em seu favor, como se isso não fosse mais uma prova de que a plebe podia ser corrompida também contra eles, e tanto mais que os nomes de acusadores e de testemunhas ficavam secretos. Este ponto, porém, de ignorarem os réus os nomes dos que os culpavam era um dos que os inquisidores reputavam inseparavelmente ligados à existência do tribunal, d’onde resultava manterem tenazmente a doutrina de que se deviam considerar indistintamente como pessoas poderosas os cristãos-novos, esses homens sobre quem pesava o rancor populai, a perseguição fanática e cobiçosa do rei e de seus irmãos, e a crueldade onipotente da maior parte do clero secular e regular; homens poderosos, que, aterrados, só pensavam em fugir do reino, e contra cuja saída se tomavam, por apuro de barbaridade, severas providências, homens poderosos, em suma, que tremiam, e é claro que deviam tremer, não só ante qualquet indivíduo da plebe, mas também ante os próprios escravos, quando eram assaz abastados para recorrerem a esse único meio de terem servidores domésticos, situação que ninguém da raça chamada pura aceitaria em relação a uma família de conversos. Aos fatos públicos e sabidos que os consultores ofereciam em prova da timidez da sua nação contrapunham os inquisidores exemplos de vinganças individuais, tomadas por parentes ou amigos de uma ou de outra vítima, negando, nesta parte, as afirmativas demasiado absolutas dos quatro conversos. Mas supondo-os verdadeiros, que provariam tais exemplos? Provariam a necessidade de declarar poderosos todos os habitantes do país, para em nenhum processo crime se revelarem ao réu os nomes do acusador e das testemunhas de acusação. Que sangue vertido de homem não pode clamar por vingança e achar coração e braço de pai ou de filho, de irmão ou de amigo, para castigar o assassínio legal, sobretudo quando, pervertidas as idéias a sociedade aplaude atos odiosos, em vez de os condenar, despertando o instinto bárbaro do desagravo pessoal? Propunham os consultores que aos criminosos não relapsos se perdoasse ainda depois de entregues ao braço secular, sem que se apurassem os quilates da espontaneidade do seu arrependimento. Era um ponto em que também os inquisidores não convinham, com o fundamento de que, sem o exame da sinceridade dos arrependidos, continuando a ser ocultamente judeus, dar-se-ia o desacato de freqüentarem os sacramentos. Eles, que tanto fiavam de si para afirmarem que sabiam sempre atinar com a verdade, no meio de testemunhos suspeitos e através de um processo monstruoso, não sabiam como acautelar a perpetração de um sacrilégio pelo réu salvo da morte. A fogueira resumia o seu sistema preventivo. Em suma, não havia em todo o papel dos quatro hebreus um único ponto em que os inquisidores concordassem plenamente, e se alguma cousa concediam era com restrições tais que anulavam a concessão. Para dar uma idéia do seu modo de discorrer, transcreveremos também aqui a parte do parecer em que rebatiam a proposta da supressão dos confiscos. «Este apontamento — diziam eles — não é fundado. Ao menos, não deviam pedir bens para quem mereceu perdê-los. Seria também inconvenientíssimo dá-lo a seus filhos e representantes. Os réus esforçar-se-ão assim por salvar estes e encobrir-lhes as culpas, visto que, por meio deles, conservarão as próprias fazendas, arriscando-se e preferindo tudo a denunciarem o judaísmo e os erros dos seus próximos herdeiros». Ponderação inepta, porque, na hipótese da pena capital não tinha aplicação alguma, e era justamente a esta que sempre acompanhava o confisco. O inconveniente verdadeiro consistia em deixarem de espoliar as vítimas. Entretanto, com certas restrições, os inquisidores toleravam que se concedesse este favor por algum tempo(717).

As razões dos inquisidores, ou antes a sua pertinácia e os seus meios de influência, eram poderoso obstáculo ao transitório apetite de moderação e cordura que turbara o ânimo, friamente fanático, do monarca, A esperança de obter, se não tudo, ao menos melhores condições quanto ao perdão, renascera também nessa conjuntura com a aquisição de um novo e importante agente. Era este um camareiro valido do papa, chamado Estevam del Bufalo, o qual chegara a Lisboa nos fins de 1546, trazendo o barrete de cardeal para o infante D. Henrique. Os ardentes fautores da Inquisição tinham-se desde logo apoderado desse homem, tinham-no lisonjeado, e, provavelmente, corrompido com ouro ou com promessas. Partindo para a Itália nos princípios de 1547, Estevam del Bufalo prometera pintar com vivas cores ao pontífice as vantagens da Inquisição e desfazer como caluniosas as acusações dirigidas contra os inquisidores, resolvendo assim por uma vez o papa a aquiescer inteiramente aos desejos da corte de Portugal. Suspeitoso, porém, como a experiência o devia ter tornado, da lealdade romana, D. João III, escrevendo a Baltazar de Faria, recomendava-lhe que espiasse os passos de Estevam del Bufalo, verificando com dissimulação por que modo cumpria as suas magníficas promessas, mas assegurando-o ao mesmo tempo da plena confiança que nele depositava o monarca(718).

A verdade é que, no essencial, a questão do definitivo estabelecimento da Inquisição estava resolvida, e que o debate se reduzia ao maior ou menor grau de opressão que tinha de pesar sobre os cristão-novos. Os inquisidores desejavam obter a extrema liberdade para o seu terrível poder, e Roma parecia vacilante em abandonar inteiramente à ferocidade do fanatismo homens que haviam comprado por alto preço a sua proteção, tantas vezes estéril. Já não havia quem se lembrasse das máximas de tolerância da nossa idade média, ainda tão eloqüentemente defendidas nos conselhos de D. João II e de D. Manuel. Agora, como vimos da consulta dos quatro cristãos-novos, a raça hebréia, a gente da nação, pobres estrangeiros no seio da pátria, contentava-se com algumas garantias de regularidade e de justiça nas praxes do tribunal da fé. Nos documentos desaparecem gradualmente todos os vestígios dos enérgicos esforços, dos enredos hábeis, dos sacrifícios pecuniários feitos por tantos anos em Roma. Tudo se reduz a solicitarem que o perdão, quanto ao passado, não seja absolutamente ilusório. É o desalento das vítimas que cruzam os braços, resignadas na sua suprema aflição. Acaso a notícia da veniaga proposta pelo rei, e de cuja aceitação pelo pontífice os fatos ulteriores nos dão irrefragável testemunho, fora mal guardada, e os cristãos-novos haviam avaliado, talvez, esse pacto de injustiça e de sangue como um golpe irreparável. De feito, podiam eles assegurar ao joven cardeal Farnese, ao neto querido de Paulo III, uma pensão vitalícia igual à soma anual que em seu benefício elrei queria distrair dos réditos da igreja portuguesa? E, ainda supondo que pudessem, por um grande sacrifício, oferecer igual ou maior pensão, qual era a garantia da sua perpetuidade? De um lado estava um contrato sobre sólidas hipotecas e a que haviam de servir de título bulas pontifícias e atos do poder real: do outro só podia haver convenções ocultas com uma raça avara e perseguida, convenções cujo cumprimento ficaria dependente da lealdade e dos incertos recursos de milhares de indivíduos. A escolha não era duvidosa. Exigir que a família Farnese sacrificasse interesses gravíssimos e seguros aos preceitos do evangelho e às leis da humanidade era exigir demasiado. Na verdade, o pontífice declara solenemente que, se abandonasse os cristãos-novos aos furores da Inquisição, Deus buscaria um dia as manchas do sangue das vítimas, tanto nas mãos do rei de Portugal como nas dele, mas isso eram frases vãs que haviam esquecido. A raça hebréia fora, afinal, achada mais leve na balança da justiça de Roma, e por isso era condenada. A discussão, numa ou noutra particularidade do negócio, significava apenas a necessidade de guardar certas fórmulas convencionais de decência, ou era, talvez, uma destas transações com o remorso, que se fazem para iludir a consciência, a qual nem sempre a suprema corrupção alcança reduzir ao silêncio. Na realidade, porém, todas essas disputas, mais ou menos insignificantes, não alteravam essencialmente o definitivo resultado.

LIVRO X

Últimas resoluções do papa sobre o perdão dos cristãos-novos e organização definitiva do tribunal da fé, que Baltazar de Faria aceita ad referendum. Instrução de Farnese ao núncio Ricci acerca da inteligência daquelas resoluções e acerca do preço da concessão. — Pouco satisfeito das restrições que ainda se lhe impunham, elrei revalida a lei de 1535, proibindo à gente da nação a saída do reino, e comunica ao seu agente em Roma alterações que aceita. — Faria abstém-se de propor estas últimas e insiste na concessão pura e simples. Motivos que para isso havia. — A corte de Roma resolve-se a enviar a Portugal o cavaleiro Ugolino com as bulas e breves redigidos na forma das decisões tomadas. Instruções secretas que ele recebe. — Mútuos receios das duas cortes. — Procedimento encontrado de Faria em Roma e de Ricci em Lisboa. — O bispo do Porto D. Fr. Balthasar Limpo em Itália. Intervenção deste no negócio do tribunal da fé. Temor que o prelado português incute pela audácia da sua linguagem. A cúria cede gradualmente. — Partida de Ugolino para Lisboa. Diplomas pontifícios trazidos por ele. A Inquisição é instituída na sua forma mais completa pela bula de 16 de julho de 1547. — Termina-se a questão das rendas de D. Miguel da Silva, e a administração da diocese de Viseu é entregue a Farnese. — Cálculo incompleto do que a Inquisição custou ao país. — Situação e procedimento do cardeal de Viseu. — Idéia rápida da ulterior história da Inquisição. Testemunho insuspeito do bispo de Chisamo. Epílogo

Tal era o estado a que as cousas tinham chegado nos primeiros meses de 1547. O drama precipitava-se evidentemente para o desenlace. Em abril, os cardeais encarregados de tratar aquele difícil assunto tomaram, enfim, um acordo, que Baltazar de Faria, cansado de longos debates, entendeu dever comunicar a elrei como derradeira resolução do pontífice. Esta decisão satisfazia em grande parte às últimas proposições feitas por intervenção do núncio. O perdão seria aplicado aos réus convictos, que, confessando os seus erros, os abjurassem solenemente, pelo que ficariam soltos e livres sem penitência alguma. Não era, porém, uma anistia completa, porque o delito não esquecia de todo: novos atos de judaísmo colocariam desde logo o réu perdoado na condição de relapso ou reincidente. Os que na conjuntura do perdão se achassem já nesta categoria seriam penitenciados a arbítrio dos inquisidores, não podendo, todavia, ser relaxados à cúria secular; isto é, ficariam salvos da pena última, que em regra se impunha aos relapsos. Excluíam-se do benefício do perdão: 1.º, todos os delinqüentes que não fossem de raça hebréia; 2.º, todos os confitentes, contumazes no erro; 3.º, todos os que, julgados e sentenciados já a penas temporárias, andassem cumprindo sentença. Tal seria, em substância, a matéria da bula do perdão. Acompanhá-la-ia um breve, pelo qual se revogariam de golpe todos os que se haviam concedido a quaisquer indivíduos, ou para os exemptar de serem metidos em processo, ou para os subtrair à jurisdição dos inquisidores, dando-lhes juízes apostólicos especiais. Roma tinha havido, durante vinte anos, somas avultadas pela venda desses breves; mas fazendo aquela espécie de bancarrota de misericórdia, ainda mostrava uns restos de boa consciência: a revogação não se estendia aos breves concedidos aos procuradores que defendiam na corte pontifícia a causa dos cristãos-novos ou aos seus parentes que residiam em Portugal. Entretanto, a exceção não prometia demasiada segurança aos favorecidos. Uma carta, dirigida oficialmente a elrei por Santafiore, em nome do papa, modificaria aquela exceção. O pontífice mantê-la-ia enquanto o excetuado procedesse bem, e o excetuado procederia bem enquanto elrei não representasse ao papa que procedia mal. Suposta semelhante queixa, o respectivo breve de exempção seria revogado. Finalmente, dirigir-se-ia a elrei outro breve, não preceptivo, para que fosse permitida durante um ano a saída do reino aos cristãos-novos que dele quisessem ausentar-se, sem os prenderem ou meterem em processo enquanto durasse aquele prazo, e para que pudessem levar o que possuíam, não sendo cousas cuja exportação fosse proibida. Neste ponto, os agentes da raça votada ao extermínio tinham tirado do excesso do desalento energia para um derradeiro esforço. Tinham suplicado e clamado que se deixasse aos seus infelizes comitentes ao menos a liberdade do desterro voluntário. Observavam que, de outro modo, o perdão seria perfeitamente ilusório; porque os perdoados poderiam ser presos, apenas soltos, ou por novas denúncias, ou por simples suspeições de recentes delitos, que, supondo-se provados, os levariam imediatamente à fogueira como relapsos. Pediam, pois, que lhes fosse permitido fugir, não se procedendo contra eles durante um certo prazo, sem o que também essa permissão seria inútil. Tão justificada parecera a súplica, que Paulo III não se atrevera a desatendê-la inteiramente, e por isso se devia expedir aquele breve. Mas, supostos o ânimo implacável d’elrei e a inflexibilidade dos inquisidores, as disposições desse breve, privadas de carácter preceptivo, eram bem frágil garantia. Entretanto, como se isso não bastasse, as simples rogativas do papa ainda eram modificadas pelo mesmo meio por que se modificara a exempção dos procuradores dos cristãos-novos em Roma. Santafiore escreveria outra carta a elrei em que se daria uma interpretação mais restrita às solicitações do pontífice. Deviam estas entender-se como só relativas aos suspeitos ou acusados de delitos ocultos e não quanto àqueles cujos atos heréticos fossem públicos e notórios, contra os quais se procederia, dando depois conta ao papa. Exigir-se-ia. além disso, da gente da nação uma fiança de quarenta a cinqüenta mil ducados, pela qual se obrigassem em geral os cristãos-novos a que nenhum dos que obtivessem a permissão de sair do reino se acolheria a terra de infiéis. O preço que dessa soma se havia de deduzir por cada contravenção, deixava o papa a elrei determiná-lo; mas a sua aplicação havia de ser para as obras de S. Pedro em Roma. Era uma aplicação que aplanava todas as dificuldades, e Faria chegara facilmente a esse acordo(719).

Ao passo que o agente português comunicava a D. João III o estado do negócio, Farnese comunicava-o igualmente a Ricci, expondo-lhe os motivos e a significação das últimas resoluções, e habilitando-o assim para satisfazer a quaisquer reparos e para obviar a interpretações menos exatas, que pudessem falsear as intenções do pontífice. O ponto que ele reputava, com razão, mais grave era o da liberdade que se pedia para os cristãos-novos de saírem do reino por espaço de um ano, tomando-se as providências para que esta concessão não fosse sofismada. A certeza, dizia o cardeal ministro, que sua santidade tinha de que elrei nunca impedira essa saída, conforme ele próprio afirmava, e por conseqüência a esperança de que acederia facilmente a semelhante condição, fora um dos principais motivos que o haviam movido a conceder a Inquisição em toda sua plenitude. Aquela providência era da mais alta justiça, visto que cessavam todos os favores e exempções concedidos até aí à gente hebréia, e que o tribunal da fé ia pesar sobre ela todo o seu rigor. A própria reputação do rei e dos inquisidores ganhava com tal concessão, porque, de outro modo, poder-se-ia dizer que os fins ocultos de tanto zelo vinham a ser somente despojar os cristão-novos dos bens e da vida, e não manter o reino ileso de heresias. As intenções do papa a este respeito eram decisivas. O preferir-se a fórmula de as manifestar em breve separado, e em forma de exortação, fora só porque o agente português o exigira, como demonstração de confiança em elrei e com a promessa de que efetivamente se daria licença para sair do reino a quem quer que a pedisse, não se podendo recorrer a nenhum pretexto para a denegar, nem sequer ao de estar o indivíduo que a pretendesse indiciado já de heresia oculta. Assim, os que se ausentassem não fariam dano, e os que expontaneamente ficassem poderiam ser castigados, em passando o ano, se delinquissem, ou ainda dentro do ano, se perpetrassem algum delito contra a fé público e escandaloso. No ponto que particularmente lhe interessava, Farnese advertia o núncio de que o papa conviera em o encarregar a ele cardeal-ministro da administração do bispado de Viseu e em provê-lo nos benefícios de D. Miguel da Silva, sobre o que iam ser expedidas as bulas e os mais despachos necessários; mas prevenia-o de que sua santidade tinha aplicado todos os frutos e rendas, até aí sequestrados, à fabrica de S. Pedro, fazendo assim o gosto a elrei de não ir nem um ceitil parar às mãos do cardeal da Silva, e de se dar a essas avultadas somas uma aplicação inteiramente pia, desprezada, aliás, a inaudita pretensão do religioso monarca, que suspirava por ser quinhoeiro naqueles despojos opimos. Bastava o que bastava. Muito fizera sua santidade em não pugnar pelas imunidades eclesiásticas, mantendo os direitos de D. Miguel da Silva. Fazia o sacrifício de ficar com tudo. Se elrei se mostrasse pertinaz em querer o seu quinhão, podia estar certo de que todo o negócio da Inquisição se transtornaria, o que seria pena, visto haverem chegado as cousas a termos tão plausíveis(720).

Não achou, porém, D. João III esses termos tão vantajosos, quando soube do último acordo. Se o papa não queria perder um real do preço do sangue dos cristãos-novos e da vingança implacável contra D. Miguel da Silva, também ele pela sua parte não estava muito inclinado a aceitar concessões incompletas e limitações que diminuíam o valor intrínseco do gênero que comprava. A primeira resposta que deu às comunicações que se lhe faziam, por via tanto do núncio como de Baltazar de Faria, foi revalidar por mais três anos a lei de 1535, que proibia a todos os cristãos-novos e saída do reino sem expressa licença régia, ou sem darem fiança de quinhentos cruzados, pelo menos(721). Mandou depois escrever para Roma uma carta severa ao seu agente por ter admitido naquela forma a conclusão do negócio. Aí, analisando-se o perdão, mostravam-se os inconvenientes de se deixarem ir soltos e livres os que confessassem e abjurassem seus erros, sem serem doutrinados e penitenciados espiritualmente. Faziam-se altas queixas de que os que estavam já relapsos ficassem exemptos do castigo civil, o que nem no tempo de Clemente VII se fizera. Ponderava-se a necessidade que havia de se declarar que os presos, os suspeitos, e os que já estavam acusados em juízo deveriam abjurar também, vista a suspeição veemente, e indicava-se a não menor necessidade de se ordenarem reconciliações secretas para os que se sentissem culpados, a fim de gozarem do perdão. Recordava-se a Baltazar de Faria que era com estas prevenções que se conviera em admitir aquele perdão, quando o papa, tendo suspendido a autoridade dos inquisidores, parecia inclinado a não ceder sem esse ato de clemência. Tais haviam sido as instruções que recebera naquela conjuntura e que não deveria ter esquecido. Repelia-se igualmente a idéia de não se haverem de sindicar durante um ano os crimes ocultos de judaísmo e de se dar conhecimento à cúria romana dos processos por crimes públicos antes da sentença final. Estas dilações não faziam senão escandalizar o povo e anular os salutares efeitos do castigo. Rejeitava-se, ainda com maior energia, a idéia do breve exortatório para se deixarem os cristãos-novos sair livremente do reino durante um ano. Era matéria que já se havia debatido largamente em Portugai numa junta de teólogos e jurisconsultos, os quais haviam resolvido negativamente a questão. O arbítrio da fiança geral, no entender da corte de Lisboa, era cousa inexequível, além de que nenhum proveito d’aí vinha nem ao rei nem ao reino. Tudo, pois, quanto nas resoluções pontifícias relativas às últimas propostas enviadas para Roma desdizia destas devia rejeitar-se; e quando, em último caso, o papa recusasse formalmente mudar de resolução, ordenava-se a Baltazar de Faria que cedesse em tudo, menos em se conceder o ano de espera para a Inquisição proceder contra os delinqüentes ocultos. Suposto fazer-se uma exceção a favor dos procuradores dos cristãos-novos e das suas famílias na revogação geral dos breves de exempção, cumpria também que se declarassem especificadamente os nomes de todos os indivíduos a quem a exceção era aplicável, para que não sucedesse aproveitarem-se muitos indevidamente dessa vantagem(722).

Das cartas tanto de Farnese para Ricci, como d’elrei para Faria, conhece-se evidentemente que a última esperança dos hebreus portugueses consistia em abandonarem a pátria, num novo êxodo, como o do Egito, desenganados já de que não lhes restava outro meio de evitar a perseguição implacável do Faraó cristão. A resolução em que estavam não a escondiam, afirmando publicamente que nem um ficaria em Portugal(723), imprudência grave, a que, talvez, os excitava o excesso da desesperação, ou o terem já notícia, provavelmente pelo núncio, de que o papa, concedendo o estabelecimento definitivo da Inquisição, lhes facilitava a saída do reino. Na realidade, o breve que se referia a este assunto, puramente exortatório, estava longe de ser na aparência garantia suficiente; mas da carta de Farnese a Ricci conhece-se que havia a intenção de se lhe dar um valor mais positivo. A idéia reservada que estava, digamos assim, atrás dele, como veremos em breve, faria com que Roma o mantivesse com mais energia do que se fosse preceptivo. Por outra parte, é evidente que D. João III receava não ter meios para obstar à fuga dos conversos. Numa época em que era cem vezes mais fácil do que hoje esquivar-se o indivíduo à vigilância da autoridade e em que a polícia interna e a dos portos marítimos e fronteiras quase que não existia, nem sempre seria fácil obstar à saída oculta de indivíduos dispostos a tentar tudo para salvarem as vidas. A dificuldade, porém, subiria de ponto, se durante um ano ficassem reduzidos à inação os olhos perspicazes dos inquisidores e as firmes garras dos seus agentes. Na verdade, a lei de 15 de julho, que renovava por três anos a de 1535 sobre a saída do reino dos hebreus convertidos, declarava crime a fuga oculta; mas nem num país profundamente corrompido se devia contar demasiado com a incorruptibilidade dos magistrados e oficiais públicos, nem a lei serviria de nada para os que pudessem e quisessem perder a fiança de quinhentos cruzados, mediante a qual, todos os hebreus um pouco abastados poderiam abandonar o reino com pretextos comerciais. A longa luta que se havia sustentado, a vitória que se podia dizer estava alcançada, o preço por que se tinha obtido, tudo ficava em grande parte inutilizado. Sem vítimas, sem cárceres atulhados, sem autos de fé, a Inquisição era uma puerilidade. A frase enérgica dos cardeais acerca dos desejos dos inquisidores portugueses era uma terrível verdade: queriam carne. As riquezas dos hebreus podiam locupletar os ministros e agentes do tribunal ou os cofres régios, pelos seqüestros e confiscos dos bens dos que se ausentassem, mas aos ecos das masmorras faleceriam os gemidos, às fogueiras o alimento, aos ódios profundos o espetáculo de variadas agonias, à hipocrisia os mais favoráveis ensejos para simular zelo religioso. Em tudo se podia ceder, menos em consentir a livre saída dos cristãos-novos, concedendo para isso, depois do perdão, o longo prazo de um ano, em que a Inquisição ficaria inerte. Nesta condição estava principalmente o veneno. Sem ela, era fácil iludir o indulto: com ela tudo ficava perdido. Por certo, pertencia exclusivamente ao rei manter a proibição da saída do reino aos cristãos-novos, mas também pertencia exclusivamente ao papa, estabelecendo a Inquisição com a maior latitude, proibir que ela funcionasse por certo período. Nesta parte, pois, estava a dificuldade. No fim da carta a Baltazar de Faria indicava-se-lhe, dada a hipótese de se conservar firme o papa em todas as condições que estabelecera, o último meio a que devia recorrer. Referia-se-lhe, em substância, o que resultara da consulta dos quatro conversos, da qual anteriormente demos particularizada notícia. Elrei estava resolvido a anuir em parte a essa consulta, mantendo por mais dez anos a exempção dos confiscos e tolerando que se estatuísse preceptivamente a revelação dos nomes dos delatores e das testemunhas de acusação aos réus não poderosos. Convinha igualmente em que se admitisse a reconciliação dos relaxados ao braço secular, não depois de entregues aos magistrados civis, como os consultores propunham, mas antes daquele ato. Suposto este acordo, nem o papa devia estranhar que ele tivesse revalidado a lei de 1535, nem insistir nas suas resoluções. Propunha aquelas vantagens para os conversos como compensação, uma vez que fossem suprimidas as condições respectivas destinadas a embaraçar a livre ação do tribunal da fé. Era a última concessão que estava resolvido a fazer ao pontífice(724).

Esta concessão, porém, era um erro político em tal conjuntura. Não só desvendava os intuitos dos inquisidores, o preferirem a tudo não deixar escapar as vítimas, justificando os que em Roma os acusavam de devoradores de carne humana, mas também provava que a firmeza que até aí se ostentara não era tão inteira e incontrastável como a linguagem adotada recentemente pela corte de Lisboa parecia indicá-lo. Baltazar de Faria, tantas vezes taxado de falta de perseverança, mostrou nesta conjuntura mais tato que os acérrimos fautores da Inquisição. Dissimulou as instruções que recebera e continuou a insistir na manutenção das bases que aceitara, escrevendo a elrei para o persuadir de quanto eram inconvenientes as novas propostas. Ajudava-o a manter na sua persistência um passo imprudente que dera a cúria romana. Segundo parece, os agentes dos hebreus portugueses tinham obtido um salvo-conduto geral para estes serem admitidos nos estados da igreja(725). Descoberta a existência deste diploma secreto, Faria queixou-se altamente, não só da concessão, mas também da forma dela, porque os fundamentos do breve eram injuriosos para o governo português. Fossem quais fossem os motivos pelos quais aquele diploma se redigira na chancelaria romana, ocorreu desde logo o pensamento de que o salvo-conduto e a insistência para que se permitisse a livre saída dos cristãos-novos durante um ano tinha mútua correlação. Assim, a questão tomava outra face, e as bases de um acordo que ele aceitara e a favor das quais insistira com o seu governo, tornavam-se inaceitáveis. Sem o descobrimento do salvo-conduto, e prevalecendo a resolução do papa sobre a faculdade da expatriação para a gente da raça hebréia, D. João III, que comprara por tão alto preço a Inquisição na sua mais completa forma, teria feito uma aquisição quase inútil e ficaria, a bem dizer, burlado em tudo, menos na vingança contra o velho cardeal da Silva, que Farnese atirava rindo às garras do tigre coroado. Dir-se-ia que Roma adotava, em conjuntura infinitamente mais oportuna, a política que noutro lugar vimos ter adotado Carlos V, e da qual era seu instrumento na corte do cunhado o infante D. Luiz(726). Oferecendo um asilo aos hebreus fugitivos, o governo pontifício achava mais um meio de se locupletar com os despojos de Portugal. A existência da Inquisição romana não obstava a que fossem tolerados nos domínios da igreja os que faziam profissão pública de judaísmo, e os hebreus portugueses que ainda guardassem intacta no coração a crença de seus pais alcançariam na Itália a liberdade e a segurança que não encontravam na pátria, levando para ali todos os cabedais que pudessem salvar.

Faria mostrara-se altamente escandalizado com aquele ato de evidente dobrez e enchera Roma dos seus clamores, tanto contra um procedimento que denunciava intenções reservadas, como por causa das expressões inconvenientes do breve. Não houve remédio senão aplacá-lo para salvar, quando mais não fosse, as aparências de desinteresse. Propuseram-lhe que de três partidos se escolhesse um: ou que mandasse elrei ao papa um alvará secreto em que concedesse por mais dez anos a suspensão dos confiscos, mantendo a proibição da saída dos hebreus; ou que se permitisse esta, tomando-se as precauções que se julgassem convenientes para que não se acolhessem a terras de infiéis, e ficando para o fisco os proventos das penas impostas aos infratores; ou, finalmente, que se deixassem sair, tirando-lhes os filhos. O agente português conhecia, porém, que a mínima hesitação lhe faria perder a vantajosa situação que a imprudência ou a corrupção da chancelaria apostólica lhe proporcionara, e todos os três arbítrios foram formalmente rejeitados. Faria não tinha outra resposta senão que, deixando-se tudo à clemência d’elrei, ele saberia ser amplamente generoso, mas que impor-lhe a generosidade era cousa que não se podia aceitar(727).

À vista desta inflexibilidade, a cúria romana desautorizada pelo seu procedimento dúplice, que o agente português não se esquecia nunca de lhe recordar, resolveu-se a expedir um comissário que trouxesse a Portugal as bulas definitivas da Inquisição e do perdão, e os mais diplomas e cartas, que, segundo anteriormente vimos, deviam completar ou modificar as disposições daquelas bulas. Era uma espécie de apelação que se fazia do agente diplomático para o soberano. O cavaleiro Ugolino, sobrinho do falecido cardeal Santiquatro, foi escolhido por mensageiro daqueles despachos. Posto que, na aparência, o papa insistisse nas suas últimas resoluções, a realidade era que Ugolino trazia instruções secretas para fechar os olhos, pressuposto o caso de elrei não atender às restrições que se lhe impunham ou às concessões que se lhe pediam nas cartas que acompanhavam as bulas. Comunicando a D. João III esta circunstância, que ocultamente lhe havia sido revelada por Santafiore e pelo próprio Ugolino, Baltazar de Faria lembrava que seria prudente, no que tocava à proibição da saída dos hebreus, não fazer demasiado ruído com a repulsa, ruído em que Paulo III veria uma intenção de acinte e menoscabo. Devia elrei contentar-se com a promulgação da lei de 15 de julho e com empregar a máxima vigilância para que os cristãos-novos não pudessem fugir. Ugolino trazia um breve em que autorizava a apreensão dos bens daqueles que tentassem acolher-se a terras de infiéis. Com este breve podia-se fazer tudo, e até obrigar a voltarem muitos dos que andavam ausentes. De resto, Faria aconselhava que elrei fizesse espontaneamente e como pura mercê as concessões que, como transação, se lhe haviam mandado fazer a ele. Desvantajosas a esta luz, desde que se tornassem voluntárias não só serviriam para aquietar os cristãos-novos, mas também conciliariam a estima pública ao soberano, que assim se mostrava indulgente(728).

Nas questões políticas entre dous governos, a pertinácia das mútuas pretensões, e não raro as exagerações de amor próprio, suscitam a cada passo incidentes que aumentam as dificuldades com que os negociadores têm de lutar e demoram o acordo, às vezes pouco difícil, na matéria essencial. Naquela conjuntura, porém, o incidente que veio pôr novos estorvos a um negócio que parecia terminado nasceu de uma causa singular; a mesma de que Faria tirara vantagens para obter um resultado com que ele próprio não contava inteiramente. Esta causa era o medo. A cúria romana, colhida numa deslealdade, e presa pela transação feita entre o rei de Portugal e o papa em benefício de Farnese, resolvera sacrificar completamente os malfadados hebreus. Enviando os breves e cartas destinados a protegê-los no primeiro ímpeto da perseguição, mas recomendando ao mesmo tempo ao seu agente que não curasse de saber se o rei fazia ou não caso deles, cria salvar as aparências e desonerar-se da própria responsabilidade moral, deixando-a a D. João III. Importava-lhe pouco o julgamento d’Aquele que vê nu o coração do homem. Corrompida e mundana, bastava-lhe que o mundo a absolvesse. O essencial era não arriscar uma tão excelente veniaga. Se, porém, havia temores em Roma, também em Portugal não faltavam entre os fautores implacáveis da Inquisição. Vimos já porque. Eram esses temores que tinham inspirado as últimas instruções a Baltazar de Faria, o qual, mais experiente e mais desassombrado, lhes medira o alcance e soubera evitar as suas conseqüências. Mas o medo não fora em Lisboa corrigido pela cordura de alguém, como o tinha sido em Roma. O núncio não somente descobrira que se trepidava; obtivera, até, que se lhe comunicassem as novas concessões que elrei estava resolvido a fazer em tudo, contanto que se abandonasse a idéia de facilitar, pela imunidade temporária, a fuga dos cristãos-novos momentaneamente libertados. É fácil de conjecturar se Ricci se apressaria a transmitir para Roma o que se sabia acerca do sobresalto em que ficara a corte fradesca de D. João III(729). Os efeitos das comunicações do núncio experimentou-os desde logo Faria. No dia seguinte àquele em que chegou um estafeta com as cartas de Montepoliziano devia o cavaleiro Ugolino partir para Portugal; mas suspendeu-se imediatamente a sua partida, visto que elrei vacilara. Não se enganava o núncio, asseverando que o excesso da inflexibilidade, com que se buscava fosse resolvido afinal o negócio dos cristãos-novos, provinha unicamente de Baltazar de Faria, que ultrapassara as suas últimas instruções. Deu-se então a entender ao agente português que o papa sabia tudo, e que atenta a sua pertinácia, em vez de se tratar com ele a conclusão do negócio, seria Ricci incumbido de o terminar em Lisboa. Tinha Faria prevenido já elrei, e por isso dissimulou, mantendo-se firme nas suas últimas declarações. Os fatos subseqüentes vieram ainda uma vez provar que a energia e a firmeza são as armas de mais fina têmpera para domar as pretensões ou desbaratar as astúcias da cúria romana(730).

Achava-se então em Roma um personagem que o leitor conhece já de sobejo. Era o bispo do Porto, D. Fr. Balthasar Limpo. Tinha ele passado à Itália para assistir ao concílio, que então se continuava em Bolonha, depois de celebradas algumas sessões em Trento. No meio da corrupção geral, o carácter austero e o gênio violento do prelado portuense faziam-no temer na cúria. O inquisidor Fr. Jorge de Santiago, que igualmente fora enviado a Trento como teólogo de D. João III e que se achava casualmente na corte pontifícia quando as cartas de Ricci vieram complicar o negócio da Inquisição, dirigiu-se a Bolonha e, pintando a D. Fr. Balthasar os novos obstáculos que o demônio parecia suscitar à final conclusão de um negócio em que ambos tão vivamente se empenhavam, ponderou-lhe quanto seria conveniente que ele corresse a auxiliar os esforços do agente de elrei para se obter pronto e favorável desenlace. Estavam suspensos os trabalhos conciliares por disputas entre o papa e o imperador Carlos V, que protestava contra a mudança do concílio de Trento para aquela cidade. O bispo do Porto partiu, portanto, para Roma, onde, aliás, também o chamava o desejo de dizer duas verdades ao papa sobre as intrigas que se agitavam na assembléia de Bolonha(731).

Que idéia se fazia em Roma do pensar do bispo do Porto e do seu carácter, vimo-lo já noutra parte. No que essa apreciação parece ter sido menos exata é no que dizia respeito à sua pouca ousadia. Se, como também vimos, recuava, e até se humilhava diante do perigo, quando os excessos do seu gênio arrebatado encontravam resistência e o colocavam numa situação dificultosa, onde e quando o perigo material não existia, e ele sinceramente acreditava ter razão, D. Fr. Balthasar Limpo, longe de ser tímido, era dotado de ilimitada audácia. A liberdade da sua linguagem, a severidade com que revocava os díscolos ao sentimento do dever, tinham-lhe dado certa importância entre os padres do concílio, o que talvez o iludia sobre a extensão da própria capacidade. O primeiro encontro com o papa foi tempestuoso, apesar das demonstrações de afeto com que o recebeu Paulo III, empenhado em conciliar os ânimos dos prelados estrangeiros no meio das suas discórdias com Carlos V sobre o lugar onde se deviam celebrar as sessões do concílio. O prelado portuense, antes de entrar no assunto especial que o trouxera a Roma, falou asperamente ao pontífice nos negócios gerais da igreja. Humilhando-o primeiro num terreno em que toda a vantagem era sua, tirava d’aí força moral para vencer as resistências nas menos justificadas pretensões acerca da Inquisição. Entendia ele, e era o que teria aconselhado, se, quando se tratava da celebração do concílio, estivesse em Roma, que este devia ter sido convocado só para ventilar e resolver as questões de doutrina e condenar as heresias que pululavam na Europa, mas que a reforma disciplinar devia partir do papa e unicamente do papa. Quanto ao dogma, confiava no concílio: quanto à reforma disciplinar, não. «O remédio da igreja, dizia o bispo, está em evacuar os maus humores». Era preciso que o clero voltasse aos cânones apostólicos e aos conselhos dos santos-padres. Sem isso, o cristianismo perder-se-ia quase irremediavelmente. Aconselhava ao papa que se mostrasse grato a Deus pelos bens terrenos que lhe concedera, ao menos agora que tão poucos dias de vida lhe restavam, e que reformasse os costumes da igreja; porque Deus lhe retribuiria conforme as suas obras. Lembrava-lhe que, se não o fizesse, talvez experimentasse a vingança divina nos próprios interesses temporais. Era inevitável acudir à igreja. Se ele papa ou o seu sucessor o não fizessem, fá-lo-iam os príncipes seculares: se o não fizessem estes, fá-lo-ia Deus. Rogava a sua santidade que interviesse com firmeza neste assunto, recordando-se da glória que tinha cabido a Inocêncio III pelo que fizera por ocasião do terceiro concílio lateranense, e da infâmia que recaíra sobre o procedimento de Leão X na conjuntura de um novo concílio geral de Latrão. O estado da igreja era intolerável, e a reforma devia começar pela cúria romana, que era origem das desordens de toda a cristandade. De que serviam as reformações do concílio, se ele papa não lhe dera faculdade para as fazer em Roma? E ainda pelo que tocava às outras igrejas, assevera, como testemunha ocular, que não havia no concílio dez bispos que quisessem essas reformas. Nada esperava daquela assembléia de prelados e teólogos, nem cria que d’ali viesse remédio para acabarem as heresias; porque não era possível chamar ao grêmio católico os dissidentes enquanto eles contemplassem o espetáculo que lhes estava dando a igreja(732). Na matéria da Inquisição portuguesa, objeto principal da sua vinda a Roma, Fr. Balthasar Limpo repetia todos os lugares comuns que se reproduziam havia dez anos por parte da corte de Portugal; mas chegou, finalmente, ao assunto capital da questão pendente, aos destinos do breve destinado a facilitar a saída do reino aos judeus portugueses. Afeiou em especial ao papa o acolhimento que estes achavam nos estados pontifícios. Saíam, às claras e ocultas, de Portugal, com o nome e carácter de cristãos, trazendo consigo seus filhos, para os quais tinham aceitado voluntariamente o batismo. Chegavam a Itália, declaravam-se judeus e circuncidavam publicamente aqueles inocentes. Fazia-se isto, a bem dizer, perante o papa e o concílio, às portas de Bolonha e de Roma; fazia-se, porque sua santidade lhes dera um privilégio para ninguém os poder inquietar em Ancona por motivos de religião. Em tal estado de cousas era impossível querer ele que elrei lhes permitisse a livre saída do reino, para virem declarar-se judeus nas terras da igreja, só porque a corte de Roma ganhava com isso. Longe, pois, de empecer a Inquisição portuguesa, sua santidade deveria generalizá-la nos próprios domínios. Aconselhava isto em nome da religião: exigia aquilo em nome do seu soberano, e em recompensa dos serviços que ao cristianismo tinha feito e estava fazendo o reino de Portugal(733).

A eloqüência de D. Fr. Balthasar não parece ter atraído a atenção do pontífice, na segunda parte do seu discurso, do mesmo modo que a despertara nas questões gerais da igreja. Tinha ouvido tantas vezes repetir aqueles lugares comuns em abono da Inquisição, que os olhos se lhe cerravam sonolentos no meio do entusiasmo do antigo carmelita. Se este, porém, se calava, o papa, até aí embalado por aquele som monótono, despertava com o silêncio e dizia-lhe que continuasse(734). Mal podendo resistir, por fim, ao sono, Paulo III ergueu-se e começou a passear pelo aposento. Redobrava o zelo do prelado. Faria estava presente, e é crível que forcejasse também por excitar o ânimo dormente do velho e aborrido pontífice. Enfim, este despediu-os com expressões corteses e com vagas promessas acerca da Inquisição, recomendando ao bispo que repetisse o que lhe dissera sobre a reformação do clero aos cardeais seus netos e que se recolhesse a Bolonha, confiando na sua solicitude pelo bem da igreja universal(735).

Mas nem o prelado do Porto, nem Baltazar de Faria eram homens que se embalassem com vãs palavras. O bispo não tardou a descobrir que, imbuído pelo cardeal De Crescentiis, o papa queria manter em grande parte o que resolvera acerca dos hebreus portugueses, acaso porque as últimas informações do núncio lhe faziam esperar que elrei se resignasse a aceitar essas resoluções. Ocultavam, porém, a Faria o propósito do papa, o que indicava que não era uma simples astúcia a insinuação que lhe haviam feito de que prefeririam negociar por intervenção do núncio, se ele não descesse da sua pertinácia. D. Frei Balthasar dirigiu-se de novo ao Vaticano. Exigia do pontífice uma solução precisa, sem o que não voltaria a Bolonha. Era tão positiva a linguagem do carmelita, que Paulo III teve de dar clara e terminante resposta. Foi esta que estava resolvido a conceder tanto quanto elrei quisesse, uma vez que se não negasse aos cristãos-novos a liberdade de saírem do reino, só limitada pela promessa de não se acolherem a terra de infiéis, de que dariam fiança. O despeito do prelado sugeriu-lhe então frases que, de certo, não pecavam por excesso de brandura. Aquela condição de darem fiança, querendo sair do reino, era uma burla. «Que monta, dizia ele, irem para terras de infiéis ou para Itália? Vêm circuncidar-se a Ancona, a Ferrara ou a Veneza, e d’aqui passam para a Turquia. Têm privilégio pontifício para ninguém lhes perguntar se porventura são judeus: não trazem sequer sinais que os distingam, e vão livremente celebrar o seu culto nas sinagogas». Ponderava quão grande número deles as freqüentavam, uns batizados em Portugal na infância, outros condenados à pena última e queimados em estátua por judaizarem. Com a liberdade que se lhes queria dar, todos os cristãos-novos portugueses poderiam ser judeus à sua vontade, sem um só pôr pé em terra de infiéis. Nunca, porém, elrei aceitaria tal situação; nem haveria teólogo, ou sequer simples cristão, que para isso o aconselhasse. Em vez de tentar pôr a salvo os judeus portugueses, o papa devia multiplicar as Inquisições nos seus estados, e punir não só os hereges luteranos que os inficionavam, mas também os réus de judaísmo que se acolhiam à Itália(736).

Provavelmente no meio do seu discurso o intolerante prelado deixara transparecer alguma alusão ao preço por que elrei comprara as complacências que exigia do papa. Este, pelo menos, respondendo ao bispo, confessou os favores que ultimamente recebera do monarca nas mercês feitas a Farnese e a Santafiore, que de fato estava exercendo o pingue cargo de protetor de Portugal; mas limitou-se a dizer-lhe que tratasse o negócio com De Crescentiis, dando a entender que tudo se faria como ele solicitava.

De feito, ajudado por Farnese e por Baltazar de Faria, o bispo chegou a obter do cardeal De Crescentiis que cedesse na questão capital da livre saída dos cristãos-novos. Se acreditássemos Faria, o prelado portuense mostrou-se então inclinado a admitir que, assentado este ponto, fossem os crimes de heresia processados segundo as regras de direito comum, e não conforme os estilos e fórmulas especiais da Inquisição. A sua ignorância nas matérias jurídicas, de que dera tantos documentos como inquisidor, não lhe deixava alcançar as conseqüências de semelhante concessão. No entender do agente ordinário, isso equivaleria a renovar todos os anteriores debates. Convenceu-se D. Fr. Balthasar, e ambos acordes continuaram em manter as suas pretensões absolutas. A pertinácia dos dous triunfou afinal: sucessivamente foram suprimidas todas as limitações ao amplo exercício do poder concedido aos inquisidores. Teriam plena faculdade para prenderem os cristãos-novos logo depois de perdoados, e de os processarem em conformidade do absurdo sistema dos tribunais da fé, ao passo que a autoridade civil poderia pôr quaisquer obstáculos à sua saída do reino, convertendo-se assim numa graça ilusória a bula do perdão. As únicas restrições que deviam manter-se consistiam na suspensão dos confiscos por mais dez anos, e em não serem relaxados ao braço secular por um ano os réus de crime capital. Estas duas concessões eram, porém, daquelas que elrei espontaneamente admitira entre as que lhe haviam sido sugeridas na consulta dos quatro conversos(737).

Das correspondências do bispo do Porto e do agente ordinário vê-se que ambos eles buscavam atribuir-se a principal glória do feliz desenlace daquele espinhoso e tão disputado negócio, sem, todavia deixarem de elogiar-se mutuamente pelo seu zelo. A verdade é que, embora a longa experiência e os conhecimentos jurídicos tornassem Baltazar de Faria mais hábil negociador, o gênio impetuoso, a austeridade fanática e a situação especial do antigo carmelita foram que romperam por uma vez a rede das astúcias romanas. No estado vacilante em que se achavam as cousas do concílio, o que sobretudo o papa não queria era que D. Fr. Balthasar se retirasse para Bolonha descontente dele(738). Forçava-o isso a ceder às suas vivas, ou antes rudes instâncias, acerca da Inquisição portuguesa. Mas acima disso estava uma consideração de maior momento. O bispo, que parece ter-se limitado nos seus debates com o papa a alusões indiretas sobre o preço por elrei pagara as concessões que pedia, foi um pouco mais explícito com o cardeal De Crescentiis e com o cavaleiro Ugolino, fazendo-lhes perceber que o negócio de Farnese não chegaria jamais a conclusão definitiva enquanto a ela não chegasse igualmente o assunto da Inquisição. Para resistir a um argumento tão peremptório não havia arma que valesse no arsenal das sutilezas de Roma(739).

Assim se ímergia no horizonte a última luz de esperança dos desditosos hebreus. Noticiando a elrei a próxima partida de Ugolino e a feliz solução do negócio, Faria inculcava com arte a conveniência da moderação. Mostrava quão pouco valiam certas particularidades da bula de perdão a que em Lisboa se dava grande importância, e sobre que se haviam feito recomendações pueris: talvez eram o não se terem autorizado os inquisidores para darem penitências espirituais aos que pela bula ficavam perdoados, o eximir os relapsos de serem entregues, por aquela vez, à cúria secular, e não se mandarem abjurar os veemente suspeitos, nem fazer reconciliações secretas a quaisquer outras pessoas que quisessem aproveitar-se do benefício do perdão geral. Tudo isso importava pouquíssimo, visto que, relapsos ou não relapsos, processados ou não processados, suspeitos ou não suspeitos, todos ficavam, passada a vã cerimônia do perdão, sujeitos à ilimitada autoridade dos inquisidores, sem apelação, sem garantias, sem a esperança sequer de poderem declinar o foro do tribunal da fé, obtendo juízes apostólicos. A batalha estava completamente ganha desde que se decidira que as vítimas não saíssem do reino, e que os algozes pudessem exercer livre, plena e imediatamente seu ofício. O agente advertia elrei dos inconvenientes que poderia trazer insistir-se em bagatelas e em vãs sutilezas, quando tudo quanto era essencial se tinha amplamente obtido, sem excetuar a remoção do núncio Montepoliziano que se mostrara tão parcial dos cristãos-novos, e que o papa prometia substituir(740).

Ao passo que D. Fr. Balthasar partia para Bolonha, saía de Roma para Lisboa, pelos fins de novembro(741), o cavaleiro João Ugolino com a bula definitiva da Inquisição e mais diplomas concernentes a este objeto. Trazia igualmente poderes para convir no modo prático de se realizar a translação das rendas do bispado de Viseu e dos mais benefícios de D. Miguel da Silva para o antigo protetor do infeliz prelado. Antes de partir João Ugolino recebeu do cardeal-ministro largas instruções, tanto sobre um como sobre outro assunto. Dividiam-se os diplomas pontifícios relativos ao negócio dos cristãos-novos em duas categorias: uma dos que lhes eram, ou antes simulavam ser favoráveis: outra dos que se referiam ao estabelecimento definitivo do tribunal da fé. Eram os primeiros, além da bula de perdão, um breve eximindo do confisco por dez anos os criminosos sentenciados; outro suspendendo por um ano a entrega ao braço secular dos réus de crime capital; outro, enfim, dirigido a elrei para interpor a sua paternal solicitude, a fim de que a Inquisição procedesse com brandura(742). Explicava-se, porém, nas instruções a interpretação, na verdade demasiado lata, que o papa queria se desse àquela vaga recomendação de benevolência. Tanto o comissário como o núncio deviam insistir com elrei para que aceitasse essa interpretação. Era, sob a forma exortatória, quase o mesmo que anteriormente se exigira como condição forçada. O papa desejava ardentemente que se não prendessem durante o primeiro ano os réus de crimes ocultos. Ficava-lhe assim, a ele pontífice, aliviada a consciência do remorso de ter submetido a raça hebréia a todos os rigores da Inquisição, ao passo que elrei tiraria dessa inesperada indulgência grandes vantagens materiais. Desejava também o papa que por algum tempo não usassem os inquisidores das faculdades da nova bula em toda a sua plenitude, ou mais claro, que se procedesse nos crimes de heresia como se estatuira na bula de 1536, conforme as regras do processo civil para os crimes comuns. Na bula de perdão estabelecia-se que os convictos e confitentes fizessem abjuração pública, e todavia desejava sua santidade que só abjurassem perante um notário e algumas testemunhas, em vez de servirem de espetáculo ao povo num cadafalso(743). Os diplomas relativos ao tribunal da fé eram a nova bula orgânica, outra por que se anulavam e cassavam todas as exempções, e um breve dirigido a elrei que devia servir de carta de crença ao cavaleiro Ugolino. Todos estes documentos, ignoramos porque, vinham com antedata(744). Na bula orgânica, destinada a substituir a de 23 de maio de 1536, depois de um preâmbulo, onde se epitomava a história das fases por que até aí passara a Inquisição portuguesa desde a sua primeira fundação, aludia-se ao perdão geral que se acabava de conceder aos até então culpados do crime de heresia. Depois desta prova de indulgência, o pontífice estava resolvido a proceder severamente. Para isso, abrogando a bula de 1536, avocava a si todos os poderes conferidos por ela ou dela derivados, dando-os de novo ao infante cardeal D. Henrique e aos inquisidores seus delegados. Suprimia todas as modificações e limitações até aí impostas à Inquisição de Portugal e cassava sem exceção a autoridade concedida a qualquer delegado apostólico para conhecer de tal ou tal delito contra a religião. A Inquisição, assim constituída, procederia em conformidade da jurisprudência que geralmente regulava aquela instituição, e os inquisidores usariam de toda a jurisdição, preeminências e prerrogativas que por direito, uso e costume pertenciam aos indivíduos revestidos de semelhante dignidade, continuando e terminando todos os processos de heresia, sem excetuar sequer os avocados à cúria pontifícia. Concluía declarando irrito e nulo tudo quanto pudesse contrariar as amplíssimas disposiçães daquela bula(745). Todavia, o próprio papa a limitara noutra bula (que se fingia preceder aquela) destinada à revogação expressa dos breves de exempção, singulares ou coletivos, passados a favor da raça hebréia, mas em que se declaravam exemptos da jurisdição do Santo Ofício os procuradores e agentes dos cristãos-novos que estavam ou tinham estado em Roma tratando dos negócios comuns e os indivíduos pertencentes às famílias dos mesmos procuradores e agentes(746).

No breve dirigido a elrei em que se anunciava a expedição das precedentes bulas, e que era como a carta de crença do cavaleiro Ugolino, resumía-se a matéria delas, manifestando aí o papa os seus desejos e as suas esperanças de que a Inquisição, revestida de tão ilimitados poderes, procedesse com a maior moderação. Esse breve era, porém, ao mesmo tempo um triste documento de impudência. Sobre o que ele mais se dilatava era acerca da questão das rendas da mitra de Viseu e dos benefícios de que fora espoliado D. Miguel da Silva. Como dissemos, João Ugolino vinha autorizado para reduzir a efeito aquele ignóbil contrato, e não houvera sequer o pudor de anunciar isto num diploma diverso. Conforme a opinião dos membros do sacro colégio, os inquisidores queriam carne humana: a cúria subministrava-lh’a; mas na carta de aviso certificava aos compradores que tinham de pagar à vista o preço da mercadoria(747).

Para sermos justos cumpre, todavia, confessar que se Roma levava a tal ponto as precauções comerciais manifestava também os instintos dessa generosidade honesta que para o negociante é uma parte do seu capital. Nas instruções a Ugolino, Farnese proibia-lhe, não só a ele, como também ao núncio e a qualquer ministro da nunciatura, que recebessem dos pobres cristãos-novos cousa alguma, ou como dádiva, ou por outro qualquer título(748). Como se a bula do perdão fosse mais do que uma burla, o neto de Paulo III advertia o agente pontifício de que seu avô não quisera que em Roma se levasse aos interessados nem um ceitil por aquela mercê, quando, noutra conjuntura, seria graça essa para render bem vinte mil ducados ao pai comum dos fiéis(749).

A luta estava concluída. A Inquisição, na plenitude do seu terrível poder, ia enfim apresentar-se rodeada de instrumentos de martírio sobre um trono de cadáveres. Podia fartar-se de carne humana, por nos servirmos do estilo pinturesco dos mesmos que lhe subministravam este repugnante alimento. A chegada de Ugolino a Lisboa e a publicação dos depachos que trazia eram a apoteose da intolerância. E todavia D. João III e a sua corte fradesca não ficaram ainda plenamente satisfeitos. Avisando o seu agente em Roma da chegada do comissário pontifício, elrei declarava ter aceitado sem reserva as últimas resoluções do papa; mas advertia que, se não fosse o desejo de pôr termo a tão longa contenda, haveria ainda que replicar acerca do perdão, embora fosse o pontífice, e não ele, quem teria de dar contas a Deus do excesso de indulgência com que os cristãos-novos eram tratados. Assim, o monarca deplorava ainda esse transitório alívio que se concedia aos seus súditos de raça hebréia e que se reduzia quase unicamente a ficarem exemptos por um ano de serem relaxados ao braço secular, e de expirarem nas fogueiras os que nesse prazo fossem sentenciados por delitos de judaísmo(750). Das cousas, porém, que por parte do papa se insinuavam, não como preconceito, mas como conselho, nenhuma era admitida. Só num ponto se consentia uma leve modificação. As abjurações dos réus que se iam pôr em liberdade, as quais o papa desejava se fizessem sem estrondo e unicamente perante um notário e poucas testemunhas, seriam feitas à porta da igreja do Hospital, situada em frente da praça mais freqüentada de Lisboa, em vez de o serem num cadafalso público para isso expressamente levantado. A indulgência régia reduzia-se, pois, a poupar as despesas da construção de um tablado(751).

Pelo lado da corte de Roma o contrato acerca do sangue dos míseros hebreus estava honramente cumprido. Restava receber o preço. A mercadoria era excelente, por mais que elrei a menoscabasse. Os defeitos que lhe punha eram o desdenhar costumado de comprador. Roma sabia bem o que vendera. O cavaleiro Ugolino trazia as bulas, breves, instruções e poderes necessários para liquidar o negócio do bispado de Viseu e dos outros benefícios que pertenciam a D. Miguel da Silva. Em harmonia com as suas anteriores declarações, o papa não cedia a elrei um ceitil das rendas passadas: tudo devia ir para Roma, salvo o que fosse indispensável para reparos da catedral viseense. A vontade de satisfazer aos desejos d’elrei tinha-a o supremo pastor mostrado de sobejo calcando aos pés os cânones e considerando como vaga de certo modo a sé de Viseu, sem que o prelado legítimo resignasse ou fosse deposto, e sem sequer se falar nele(752). Que sacrificasse as leis da igreja e ao mesmo tempo avultadas somas parecia pretensão excessiva. No que se convinha era em que o indivíduo que devia fazer na diocese portuguesa as vezes de prelado estrangeiro e ausente fosse português e pago pelas rendas da mitra, e em que, pela morte de Farnese, não fossem os benefícios de D. Miguel, que passavam para ele, provido por nomeação do papa(753).

Entretanto os ministros de D. João III procuraram ainda salvar uma parte das grossas rendas do bispo foragido, acumuladas por todos esses anos durante os quais pesara sobre elas o seqüestro. O bispo do Porto e Baltazar de Faria tinham sido demasiado fáceis em ceder à pertinácia da cúria romana nesta parte, e o agente ordinário, tão costumado a duras arguições, foi ainda mais uma vez repreendido da sua imperdoável condescendência(754). Os debates sobre o assunto com o procurador de Farnese protraíram-se por alguns meses; mas Ugolino, embora de antemão vendido a D. João III(755) no que respeitava à Inquisição, era, no que tocava aos interesses de seu amo, de inteira confiança para ele. Na verdade, essas rendas anteriores destinavam-se à fabrica de S. Pedro; mas a fabrica de S. Pedro não era, as mais das vezes, senão um dos muitos pretextos de religião ou de credulidade que Roma empregava para colorear as suas rapinas e corrupções, rapinas e corrupções que, na opinião D. Fr. Balthasar Limpo, obstavam invencivelmente a um acordo com os protestantes. Demais o cardeal era arcipreste da igreja de S. Pedro, e ministro onipotente de seu avô. Nisto se diz tudo. Assim, em Lisboa considerava-se esta questão das rendas sequestradas como matéria de puro interesse particular de Farnese(756).

Afinal, Ugolino e Ricci chegaram a ajustes definitivos com os ministros d’elrei, não só sobre o destino das rendas acumuladas, mas também sobre o regímen futuro da diocese, cujo prelado era agora nominalmente o neto de Paulo III. A escolha da pessoa que em nome dele devia governar o bispado ficaria a elrei, e deduzir-se-iam das rendas da mitra mil e quinhentos cruzados para a sua sustentação e dos seus oficiais. Todos os mais réditos, fossem quais fossem, dar-se-iam ao cardeal-ministro. As conesias, benefícios e curatos, cujo provimento pertencesse ao prelado, seriam por ele conferidos só a portugueses, mas poderia impor pensões moderadas nesses benefícios para dar aos seus familiares e criados. Os reparos futuros dos paços episcopais ficaram a cargo de Farnese, sendo feitos todos os de que se carecesse naquela conjuntura pelas rendas jacentes. As comendas dos mosteiros de Santo Tirso, Nandim e S. Pedro das Águias, que haviam pertencido a D. Miguel, bem como o direito de apresentação das igrejas cujo padroado andava anexo à dignidade dos abades comendatários daqueles mosteiros, tudo passaria para o cardeal Farnese, com a condição de recaírem as nomeações em portugueses, embora com a reserva de pensões para os clientes do cardeal. Dos frutos e rendas sequestradas pagar-se-iam as dívidas contratadas por D. Miguel da Silva legalmente, isto é, antes de banido. A quarta parte do remanescente, deduzidos ainda desta quarta parte dous mil e quinhentos cruzados para Farnese, deixar-se-ia na mão delrei para as despesas das reparações e fábrica da catedral de Viseu e para outras aplicações necessárias. Enfim, o núncio e o bispo de Angra foram nomeados para examinarem o estado do seqüestro e para resolverem as questões sobre as dívidas ativas e passivas da mitra, realizando o acordo na sua parte econômica, aliás confiada à gerência material do banqueiro Lucas Geraldo(757).

A Inquisição estava, pois, comprada e paga. A concessão fora completa: não admira que fosse cara. Não sabemos ao certo quais eram naquela época os réditos da mitra de Viseu; mas sabemos que, tratando-se por esses anos da ereção de novas sés em várias partes, como em Miranda, Leiria, Freixo, Portalegre, Vianna, Covilhan, Abrantes, das quais algumas vieram efetivamente a erigir-se, nos cálculos que se faziam para estabelecer as dotações das designadas dioceses procurava-se atingir sempre, e ainda ultrapassar a verba de quatro a cinco mil cruzados. Sabemos também que por aquela época o arcebispado de Braga e o bispado de Coimbra rendiam, cada um, acima de seis contos de réis, e o da Guarda excedia a seis mil cruzados(758). Não será exageração supor que a mitra de Viseu não fosse mais pobre que a da Guarda. Os mosteiros de Santo Tirso, de Nandim e de S. Pedro das Águias eram abastados, e não é provável que as mesas abaciais dos três mosteiros produzissem pouco para o comendatário, que também tinha, como padroeiro de muitas paróquias, apresentações rendosas. Assim, ficaremos provavelmente aquém da verdade, se reputarmos os rendimentos anuais de que fora privado D. Miguel da Silva em oito mil cruzados, e portanto a importância total do seqüestro em cinqüenta mil. Deduzida a quarta parte (menos dous mil e quinhentos cruzados) para aplicações pias, o que restava para Farnese eram quarenta mil cruzados.

Anos depois, abriram-se negociações para cessar aquela espécie de episcopado nominal do neto de Paulo III, e para ser provido o bispado de Viseu de modo regular; mas é óbvio que nessas negociações, as quais não cabe aqui historiar, o cardeal-ministro cederia de tudo, menos dos proventos materiais que lhe resultavam de um direito indubitável. Esses proventos podiam ser substituídos, porém não recusados. Assim, um dos elementos indispensáveis, não para calcular, mas para conceber vagamente o que custou a Portugal a Inquisição, é o achar com alguma aproximação as somas absorvidas por Alexandre Farnese. Viveu ele mais de quarenta anos depois de 1548, e ainda que não tenhamos provas diretas de que continuasse a receber, se não os rendimentos da mitra viseense, ao menos o seu equivalente, também nos faltam provas do contrário, e o mais crível é que o governo português respeitasse o direito de um homem colocado em situação de o fazer valer. Desta hipótese, a única plausível, resulta uma soma superior a trezentos e vinte mil cruzados. Na verdade, Farnese devia deixar anualmente mil e quinhentos para a administração da diocese; mas isso era sobradamente compensado pelo direito de impor pensões nas conesias, benefícios e curatos de sua nomeação, em proveito dos próprios apaniguados.

A mercê dos três mil e duzentos cruzados anuais que Farnese recebia, deduzidos dos rendimentos das mitras de Braga e Coimbra, continuou a vigorar ao lado dos benefícios novamente adquiridos(759). Subsistindo durante os largos anos que ainda viveu o cardeal, aquela pensão representa uma quantia de mais de cento e vinte mil cruzados.

Só, portanto, o neto de Paulo III auferia do estabelecimento definitivo da Inquisição em dinheiro corrente e em título seguro para o receber sucessivamente, perto de meio milhão de cruzados.

Isto era negociado num período assaz curto e pago pelo vencedor na luta. Mas quem pode dizer hoje o que anteriormente haviam repartido com o cardeal-ministro Sinigaglia e Capodiferro, e o que ele obtivera, não só dos agentes d’elrei, mas também e principalmente dos procuradores dos cristãos-novos? O cálculo dos proventos destas transações tenebrosas seria hoje impossível.

A diferença do valor da moeda entre a primeira metade do século XVI e a primeira metade do século XIX é como de 6 para 1. Assim, aquele meio milhão de cruzados corresponderia hoje (atendendo à diminuição gradual do valor dos metais preciosos na segunda metade do século XVI, durante a qual uma parte dessa soma saiu para Roma gradativamente) a mais de dous milhões e meio da nossa moeda atual(760).

Tanto custou a vitória da intolerância, só para corromper um homem, embora o mais importante na cúria romana pela sua situação. Mas o que o cálculo não abrange, e só a imaginação pode vagamente figurar, é a soma total do que a astúcia romana soube extrair, durante mais de vinte anos, das bolsas dos cristãos-novos, quando a plebe fanática, tendo por corifeus o rei, o clero hierárquico e os frades, se agitava furiosa contra uma porção notável dos cidadãos mais opulentos, laboriosos e pacificos, que só tinham por defesa a proteção, tantas vezes ineficaz, que Roma lhes vendia tão caro, e que sabia negar-lhes com plausibilidade quando o fanatismo e a hipocrisia pagavam melhor. Por grandes que fossem, porém, os sacrifícios dos cristãos-novos, os do rei eram maiores. Nada se podia comparar com o estabelecimento de pensões vitalicias, concedidas aos cardeais e ministros da cúria, que não era fácil corromper sólida e permanentemente com peitas limitadas. Nenhum, talvez, desses indivíduos que no decurso desta narrativa nos tem aparecido na cúria romana servindo com mais ou menos zelo a causa da Inquisição o fazia de graça. O célebre Santiquatro só do bispado de Lamego recebia uma pensão de mil e quinhentos cruzados, que hoje equivaleriam a nove mil. Um terço dela passou, por morte do zeloso protetor de Portugal, para um sobrinho seu. A de Pier Domenico sobre as rendas do mosteiro de Travanca era mais modesta, porque não excedia a sessente mil réis, acaso porque se achavam gravadas aquelas rendas com outra pensão de cem mil réis destinada para um membro do sacro colégio menos influente que Santiquatro. Ainda depois de terminado o negócio da Inquisição, assegurava elrei ao cardeal De Crescentiis mil cruzados anuais nas comendas dos mosteiros de Tarouca e Ceiça. Até, às vezes, o pensionado tinha o direito de transmitir parte da sua pensão para um terceiro. Tal era o cardeal Farnese, que dos três mil e duzentos cruzados impostos nos réditos das mitras de Braga e Coimbra podia fazer mercê de duzentos a quem lhe aprouvesse(761). Por este modo, as forças econômicas do reino, atenuadas diariamente pela expatriação ou pelo extermínio dos cristãos-novos, eram-no também por esses dilatados sacrifícios de uma parte da renda da terra, que se ia consumir improdutivamente fora do país.

Qual era a situação de D. Miguel da Silva depois do desfecho da sua causa e da causa dos hebreus portugueses, as quais a força das circunstâncias tornara comuns? É uma pergunta que, sem dúvida, o leitor nos fará. Essa situação era cruel. Mas o prelado devia ter bastante orgulho para a suportar nobremente. Requeriam-no o pundonor da sua raça, a ilustração da sua inteligência, os curtos horizontes do túmulo, a consciência de que sustentara braço a braço uma luta de seis anos com o implacável filho de D. Manuel e de que tinha passado impertérrito no meio das agressões de toda a ordem, desde a insinuação pérfida até a tentativa de assassínio; de que, enfim, caía vítima da transação mais ignóbil que homens podiam conceber e efetuar. Pela energia moral, pela dignidade na extrema desventura, obteria simpatias, se não úteis, ao menos honrosas, e o espetáculo da sua miséria, ao lado da opulência de Farnese, seria o processo e o castigo deste e do papa no tribunal de todas as consciências retas.

Não sucedeu assim. D. Miguel era homem da sua época. As cortes de Lisboa e de Roma, que freqüentara desde a mocidade, tinham-no educado pela norma comum. A ambição, a vaidade e o ódio haviam-lhe emprestado a máscara de nobre altivez. Quando a esperança morreu a máscara caiu, e apareceu mais um desses Jobs de ordem moral, asquerosos, não no corpo, mas na alma, que constituíam a grande maioria dos homens públicos daquele tempo. Já noutro lugar vimos a que apuros chegara o foragido prelado pela dificuldade de receber socorros pecuniários de Portugal. Os dos cristãos-novos iam escasseando à medida que a influência de D. Miguel diminuía. Chegara a termos tais, que o próprio Baltazar de Faria o reputava mais digno de compaixão do que de malevolência. Com brutal graciosidade, o agente d’elrei observava, ao concluir-se a compra da Inquisição à custa dele, que o papa e seu neto, depois de o escorcharem, curavam tanto da sorte futura do pobre cardeal como se nunca houvera existido(762). Os últimos criados dos que trouxera de Portugal, perdida para ele a derradeira esperança de recuperar as antigas rendas, abandonaram-no. Os desgostos tinham ajudado os efeitos dos anos, e a velhice e uma doença cruel, a gota, acabrunhavam o altivo prelado. As dores e as lágrimas teciam os seus últimos dias(763).

Esta situação teria talvez inspirado a almas de outra têmpera o pensamento criminoso do suicídio. Parece, porém, que o antigo bispo de Viseu ainda cria descortinar no horizonte a possibilidade de estancar no coração de um rei devoto fel aí acumulado por anos contra ele. Na desgraça extrema, até nisto se chega a acreditar. Dos cristãos-novos nada havia a temer nem a esperar: a gente da nação assemelhava-se a um pouco de gado disperso, que os familiares dos inquisidores iam gradualmente arrebanhando no matadouro, para d’ali se proverem os açougues de carne humana, que a hipocrisia se obrigara a subministrar à intolerância. O velho prelado fez aos hebreus o que Farnese lhe fizera a ele. A diferença estava em que o cardeal-ministro tinha-o vendido por um preço elevado, pago em boa moeda, e ele vendia os seus protegidos de tantos anos por uma esperança insensata. Que se retirasse da luta, compreende-se: a sua influência para com aqueles que o haviam espoliado, a fim de se locupletarem a si, não devia ser demasiada, nem, que o fosse, havia já influência capaz de pôr obstáculos ao triunfo completo da Inquisição; mas repugna ver o soberbo prelado unir os seus insignificantes esforços aos do bispo do Porto e de Baltazar de Faria para apressar o desfecho daquele drama ao mesmo tempo torpe e horrível. Em mais de um lugar das suas últimas correspondências com elrei, eles mencionam os serviços de D. Miguel com expressões de uma compaixão insultuosa, expressões em que, aliás, transparece o temor de desagradarem ao vingativo monarca por esses tristes elogios feitos ao homem que ele jurara perder. Assim como a dignidade altiva na desgraça é a manifestação mais elevada da grandeza moral do homem, assim o aviltamento perante o que o fez desgraçado é a mais asquerosa hipérbole da abjeção. Tal era, naquela conjuntura, o procedimento de D. Miguel da Silva. Não escondia os seus desejos de se aproximar do bispo do Porto, mas o bispo do Porto evitava o contato do empestado político. Ousado com o papa, increpando-o pela corrupção da igreja, o prelado portuense não queria praticar algum ato que significasse desaprovação das baixas vinganças de D. João III, porque as conseqüências do descontentamente do rei podiam ser mais sérias do que as do descontentamento do pontífice. O fanático não se esquecia de que era cortesão(764). Entretanto, nas disputas entre o cardeal De Crescentiis e D. Fr. Balthasar, ou nos debates deste com Paulo III, D. Miguel, se porventura se achava presente, colocava-se do lado dos procuradores da Inquisição com o mesmo ardor com que outr’ora os combatera, e, não contente com isso, empregava esses restos da influência que exercera em promover a pronta conclusão do negócio(765). Na opinião de Faria, não era tanto a esperança de se reabilitar que o levava a assim preceder, como a de se lhe darem algumas tréguas na perseguição incessante que lhe fazia o monarca(766). Essa última baixeza seria nesse caso inspirada por um excesso de covardia.

Tal foi o desfecho dessa luta de mais de vinte anos, cujas fases e peripécias nos propusemos narrar. Como já noutro lugar dissemos, as famílias hebréias, que não puderam esquivar-se a uma situação intolerável fugindo de Portugal, ainda, na sucessão dos tempos, mais de uma vez ergueram as mãos suplicantes para o supremo pastor e fizeram rolar o ouro nos covis da corrupção humana; ainda mais de uma vez souberam despertar ou comprar a compaixão e o favor da corte papal; mas os resultados estavam longe de corresponder aos esforços e aos sacrifícios. Podia por esse meio salvar-se algum raro indivíduo, ou retardar-se por alguns meses a torrente impetuosa da intolerância; mas o edifício da Inquisição ficava cada vez mais sólido e o terror e o silêncio que ela fazia em redor de si tornavam-se cada vez mais profundos. Depois de 1548, posto que às vezes parecesse renovar-se a luta, esta não existia realmente. Era apenas, como já observámos, o estrebuchar, mais ou menos agitado, das vítimas. A seguinte narrativa pode dar-nos uma idéia da negra hisóoria do tribunal da fé em 1561, depois da sua constituição definitiva.

Tinham passado doze anos, e era núncio em Portugal Prospero Santa-Croce, bispo de Chisamo. D. João III morrera, e regia o país, na menoridade de D. Sebastão, a rainha D. Catharina. O infante D, Henrique continuava a presidir ao tremendo tribunal. Não era demasiado o afeto entre a rainha e o cunhado; mas quanto às idéias de intolerância estavam acordes: pertenciam ambos à sua época. A corte de Roma achava-se na melhor harmonia com a de Lisboa, e o núncio recebera instruções para se amoldar em tudo aos intuitos do inquisidor geral. Os cristãos-novos que não tinham logrado sair do país mal podiam esperar favor eficaz da cúria, não só por causa daquele bom acordo, mas também porque a emigração oculta havia naturalmente levado para longes terras muitos dos mais opulentos e dos mais ousados. O excesso, porém, do padecer arranca às vezes, ainda aos menos insofridos, queixumes inúteis. A gente da nação, cujos males subiam de ponto, ergueu ainda uma vez os seus clamores até o sólio pontifício, ocupado então pelo duro Pio IV. Apontavam na súplica as principais tiranias que suportavam: prendiam-nos sem indícios suficientes, retinham-nos nos cárceres anos e anos sem processo, e continuavam a queimá-los sem piedade, apesar de expirarem nas fogueiras como verdadeiros cristãos, invocando o nome de Jesus. Ordenou-se então ao bispo de Chisamo que verificasse até que ponto existiam aqueles agravos. Respondeu que efetivamente os cristãos-novos eram, não só presos, mas também postos a tormento sem suficientes indícios. Tinha-se distinguido neste gênero de violências um homem de alta reputação literária, o célebre Oleastro, ou Fr. Jerônimo da Azambuja(767), o qual, como inquisidor, disputara a palma da crueldade a João de Mello. Os seus excessos haviam sido tais que o infante fora obrigado a demiti-lo. O próprio D. Henrique confessou ao núncio que Oleastro ultrapassara todas as metas da moderação. Não era menos exato o que alegavam acerca do bárbaro sistema de deixarem apodrecer nas masmorras, esquecidos até para os tratos e para o suplício, grande número de indivíduos. Partiam os inquisidores da idéia de que todos os que se prendiam não eram cristãos senão no nome, e que por isso pouco importava impor-lhes a pena de longo e triste cativeiro, ainda antes de se lhes provar o crime de heresia. Finalmente, o bispo de Chisamo concordava em que muitos dos queimados como judeus convictos morriam abraçados com a cruz, dando todas as demonstrações de sincero cristianismo; mas observava que, apesar disso, era indispensável continuar a queimar os réus sentenciados; porque, se demonstrações tais pudessem salvá-los nessa hora tremenda, recorreriam àquele expediente todos os verdadeiros hereges, e nenhum seria punido. A opinião do bispo de Chisamo era que não se tocasse neste assunto, ou, quando muito, que se insinuasse de algum modo suave ao cardeal inquisidor e ao poder civil que não seria talvez conveniente levar aqueles desgraçados até o grau de desesperação, tendo, aliás, provado os rigores presentes e passados que a crueldade não subministrava meios demasiado eficazes de conversão(768).

Tais eram os fatos mais importantes que o núncio verificara; tal era a apreciação insuspeita que deles fazia; tais as idéias de justiça daquela época. Nesses três fatos capitais, manifestação completa das tendências e do espírito da mais atroz, da mais anticristã instituição que a maldade humana pôde inventar, se resume a história da inquisição portuguesa: — nas capturas arbitrárias; nos longos cativeiros sem processo; nas fogueiras devorando promiscuamente o cristão e o judeu por honra da Inquisição e glória de Deus. Eis o que se fizera antes de 1547; eis o que se fazia depois. Os escândalos especiais num ou noutro caso, as espoliações, as falsificações, as mentiras impudentes, os atentados contra os bons costumes, as hipocrisias insignes, as barbaridades ocultas, as hecatombes públicas de vítimas humanas não podiam ser diversos. O que, à vista dos documentos relativos a tempos posteriores, se poderia escrever acerca do tribunal da fé não passaria de reprodução das cenas repugnantes que delineámos, e cuja continuação não interrompida o indisputável testemunho do bispo de Chisamo nos atesta. Repetir isso tudo poderia ser um pasto para a curiosidade; não já um estudo para o entendimento. As fases da luta entre os fautores da Inquisição e as suas vítimas naqueles primeiros vinte anos, as peripécias dessa luta, o espetáculo da gangrena moral que tinha invadido a igreja e o estado, eis o que encerra profícuas lições para o presente e para o futuro. Coordenar e expor essas graves lições foi o intuito deste livro; cremos ter satisfeito ao nosso propósito. Forcejámos para que fossem mais os documentos do que nós quem falasse: também cremos tê-lo obtido. Nas ponderações que o assunto exigia, ou para clareza da narrativa, ou para concatenação dos sucessos, buscámos ser justos com os opressores e não nos deixarmos prevenir pelo dó dos oprimidos. Precavia-nos contra as fraquezas da compaixão a baixeza dos últimos na desgraça: a extrema hediondez moral dos primeiros temperava-nos pelo asco quaisquer demasias de ódio. Na verdade, uma ou outra vez, o espetáculo da suprema depravação humana, impondo silêncio à voz tranqüila da razão histórica, impeliu-nos a traduzir num brado de indignação as repugnâncias irreflexivas da consciência irritada. Mas este senão, se é senão, nunca poderá evitá-lo inteiramente o historiador que conservar os sentimentos do homem e tiver de estudar à luz dos documentos, infinitamente mais sinceros que os analistas, um ou diversos periodos da história do século XVI, daquele século corrupto e feroz, de que ainda hoje o absolutismo, ignorante do seu próprio passado, ousa gloriar-se, e que, tendo por inscripção no seu adito o nome obsceno do papa Alexandre VI e por epitáfio em seu termo o terrível nome de Felipe II, pode, em Portugal, tomar também para padrão que lhe assinale metade do curso o nome de um fanático, ruim de condição e inepto, chamado D. João III.

Fim do tomo III e último

APÊNDICES POR DAVID LOPES

I. Nota à oitava edição definitiva

II. Índice analítico de matérias

__________ Nota à oitava edição definitiva

I

A História da Origem e Estabelecimento da Inquisição, de Herculano, é ainda hoje a última palavra sobre o assunto, apesar dos anos que já conta. Nela admiramos, a par da linguagem veemente, o movimento e ação que fazem o drama da história; por isso ela é o que mais eloqüente o autor escreveu no gênero. Circunstâncias da sua vida a fizeram assim. É que esta obra é um desforço e é um libelo. Ele o confessa no prefácio da 3.ª edição da sua História de Portugal (I, p. 8, 7.ª ed.): «Ao livro sem intenção política (a História de Portugal) fiz seguir um que a tinha».

Herculano escreveu-o, pois, com paixão. Todavia, se foi severo, não foi injusto. A sua cólera era legítima. Adverários sem pejo feriram a sua alma, menoscabaram a sua sinceridade. Creu ele que prestava — e prestou e grande — um serviço ao país, escrevendo a sua verdadeira história, mas viu concitada contra si a matilha dos que, sem ideal, vegetavam no charco da vida parada da nação. E a ferida sangrou; dai o desalento e a quebra do seu plano. Herculano queria levar a História de Portugal até 1580 (vê-se de uma carta sua publicada pelo Sr. Dr. Fidelino de Figueiredo no Correio da Manhã de 11 de Setembro de 1922, e datada de 8 de Junho de 1850): que grandioso monumento ele teria erguido às glórias nacionais se o tivesse realizado! É um desserviço que devemos aos pretensos defensores da tradição.

Herculano não era lutador. Outro teria ido buscar energias e incitamento a própria luta. Ele defendia a boa causa e a consciência que disso tinha devia fortalecer a sua vontade e couraçar a sua sensibilidade. Mas era irascível e tímido e, apesar dos incentivos que sempre teve, sucumbiu ao escárnio da galeria. Aceitemos os homens como eles são, e não lhe façamos crime da sua fraqueza, como certa crítica contemporânea tem feito, afrontando a sua memória com ela, como se fora um labéu.

Herculano vingou-se dos ataques dos reacionários, seus inimigos, com a História da Inquisição: quis mostrar-lhes que o seu ídolo era feito de podridão. Foi, talvez, cruel, mas quem não quer ser lobo não lhe veste a pele, como diz o ditado; e, se a vingança é o manjar dos deuses, ele devia estar contente, porque o seu esforço não podia ser mais sangrento; o adversário saia da luta escorrendo sangue e pus, e o seu gargalhar havia de acabar em grito de dor.

Eram, talvez, ainda os mesmos que poucos anos antes ele combatera com as armas na mão, durante as lutas liberais, e de quem dissera em 1833:

Lavradores, zagais, descem dos montes Deixando terras, gados. Para as armas vestir, dos céus em nome. Por fariseus chamados. De um Deus de paz hipócritas ministros Os tristes enganaram: Foram eles, não nós, que estas caveiras Aos vermes consagraram. Mal dito sejas tu, monstro do inferno. Que do Senhor no templo, Junto da eterna cruz, ao crime incitas, Dás do furor o exemplo!

(Poesias, p. 121).

Concedamos, todavia, a parte da paixão: nem assim o diminuiremos, porque ela está mais na forma do que na doutrina. Herculano declama por vezes, como bom romântico que é: na violência das expressões que emprega devemos ver apenas excesso e embriaguez do seu verbo que brota em cachão, aí como no Monge de Cister ou no Bobo. São as palavras ardentes de quem buscou a verdade e foi escarnecido; de quem tendo combatido pela liberdade a vê em perigo e por isso toma atitudes trágicas que traduz em linguagem veemente, acorde com elas. Mas o quadro de negras cores que ele mostra diante dos nossos olhos espantados é atrozmente exato e digno de reprovação incondicional: para tais crimes de humanidade não há atenuantes e o mínimo deles ainda é horrível e mesmo blasfemo porque é a negação da piedade cristã. Quem disso duvidar leia, para se convencer, as palavras insuspeitas do inquisidor de Lisboa, João de Mello (III, p. 190-194).

Herculano documentou-se admiravelmente. Pasma ver a quantidade de materiais consultados por ele, em grande parte manuscritos. Muitos deles foram publicados posteriormente na íntegra pela Academia das Ciências no Corpo diplomático português, t. I-VI. Recentemente, também o Sr. João Lúcio de Azevedo escreveu proficientemente, sobre um plano mais amplo que Herculano, a História dos cristãos novos portugueses. 2.

Esta oitava edição definitiva foi feita segundo o critério já adotado no Eurico e na História de Portugal. E assim as considerações que aí se fizeram são aplicáveis aqui, em regra. As poucas divergências que se dão agora procedem das épocas diferentes das últimas edições, das referidas obras, do tempo do autor. Para aquelas essas edições estavam muito próximas da sua morte. Não assim com a História da Inquisição; as suas últimas e segundas edições foram: o volume I de 1864, o II de 1867 e o III de 1872, mas o I sem indicação de edição. Daqui algumas dificuldades: não só Herculano modificou a sua forma gráfica depois deste último ano, mas também a desse ano difere da dos anos anteriores. Com o fim de estabelecer um texto uniforme, tomámos por norma a edição de 1872 e a ela referimos as outras. Foi isto mesmo que se fez nas edições anteriores a esta oitava, mas arbitrariamente, muitas vezes. Assim, nelas se escreve sempre: trez, auto-da-fé, pais, judaísmo, trazer, cair, baptizar etc, que se não encontram nas edições do tempo de Herculano. Nesta nova edição não se fez assim, antes se procurou cuidadosamente para cada caso particular determinar a forma mais constante de escrever do autor; e, boa ou má, foi essa que se adotou. Este critério não é isento de erro e porventura teremos errado algumas vezes. Quando os mesmos vocábulos são numerosos pode estabelecer-se regra com certa segurança, mas não o sendo é difícil dizer com acerto qual a boa forma. No caso de dúvida, preferimos manter as irregularidades de Herculano a proceder por nosso arbítrio.

Em relação às novas edições das obras já publicadas, acima referidas, as divergências gráficas são em pequeno número. Eis as principais: posto que, nomeiar e formas análogas, elrei, cahir, seria, sabia que na História de Portugal são: postoque, nomear, el-rei, cair, seria, sabia.

Quanto à pontuação, também nessas outras se inovou muitas vezes, adotando-se quer uma própria, quer a da primeira edição. Nós procedemos ao contrário, e mantivemos a das segundas edições, que é mais abundante e deve por isso representar emendas de Herculano.

Algumas emendas dignas de nota feitas nesta edição:

I, p. 6, 1. 19: perpetrando, mas praticando na 1.ª edição e perpetuandona 2.ª. Assim emendado nas edições anteriores à nossa.

I, p, 8, l. 11: indemnisação possível — emendado em: indenização impossível.

I, p. 17, l. 20: ela devia ter — ela dizia ter.

I, p. 28, l. 27: intolerância material — tolerância material.

I, p. 40, l. 5: Luiz XI — Luiz IX.

I, p. 45, l. 21: reconhecendo — restabelecendo.

I, p. 64, l. 2: emolução das duas ordens — emulação das duas ordens.

I, p. 72, l. 8: os sectários das duas grandes regiões — os sectários das duas grandes religiões.

I, p. 73, l. 3: certos graus públicos — certos cargos públicos.

I, p. 98, l. 21: falta: até o último quartel do XV.

I, p. 263, 1. 6: países inexperientes — juízes inexperientes.

I, p. 318, 1. 21: ao mesmo tempo — pelo mesmo tempo

II, p. 59, 1. 4: Clemente XVII — Clemente VII.

II, p. 114, 1. 10: belforinheiro — bofarinheiro. Assim emendado nas edições anteriores à nossa.

II, p. 203, 1. 23: evocasse — avocasse. Assim se lê a seguir.

II, p. 215, 1. 14: não ousou dos largos poderes — não usou dos largos poderes.

II, p. 230, l. 6: desculpar o culpado — descobrir o culpado.

II, p. 278, nota: E também manho por dovyda que esa gente — E também tenho por sem duvyda que esta gente.

III, p. 9, 1. 7: não isento — no isento.

III, p. 96, 1. 12: falta: servissem.

Também as citações remissivas dentro da obra estão todas erradas na edição anterior a esta e emendamo-las nesta nossa..

Não emendámos, sem razão, Frances para Francês, I, p. 94, l. 1. As edições anteriores à nossa fizeram a emenda assim.

Deve emendar-se: 1481 a 1482 para 1481 e 1482, I. p. 122, l. 2; — 25 de maio para 23 de maio, II, p. 227, 1. 23; — 1536 para 1539, II, p. 283, nota 1; — 16 de Julho para 16 de Junho, III, p. 229, nota; 26 de Junho para 16 de Junho, III, p. 230, 1. 23, mas nas pp. 240, 244 e 246 Herculano escreveu 22. Foram lapsos da nossa revisão.

II índice analítico de matérias

Este índice não é exaustivo: contém apenas a matéria principal do texto. Toda ela podia inserir-se nas duas rubricas Inquisição e Cristãos-novos. Isso, porém, seria pouco prático; por isso as desdobrámos sempre que foi possível. É às vezes difícil discriminar a matéria de uma da da outra. A solução seria então incluí-la nas duas rubricas, mas não fizemos assim senão excepcionalmente para não avolumar demasiado este tomo.

Os termos e expressões registrados conservam a ortografia de Herculano, mas na redação empregámos a ortografia oficial.

Os algarismos romanos indicam o volume e os árabes a página dele.

[N.E. Deixamos de incluir este índice por julgá-lo dispensável em uma edição digital. — eBooksBrasil ]

Notas

(530) Annotationes Criminum et Excessuum inquisitor.: Symm., vol. 32, f. 257. — Sousa (De Orig. Inquisitionis) só menciona as três Inquisições de Évora, Lisboa e Coimbra, provavelmente porque foram unicamente estas que ficaram subsistindo. Numa vida ms. de Fr. Antonio de Lisboa, da Livraria do mosteiro de Belém, hoje em poder de pessoa particular, vem mencionados os documentos relativos ao estabelecimento da transitória Inquisição de Thomar pelos anos de 1541, e a memória do primeiro auto-de-fé ali celebrado nos princípios de 1543. A de Lamego foi ordenada nos fins de 1542, como se deduz do documento da Gav. 2, M 1, N.º 39, no Arqu. Nac. A do Porto existia já por esta época, segundo se vê de uma carta do bispo Fr. Balthasar Limpo a elrei, datada de 20 de outubro de 1542, no C. Cronol., P. 1, M. 72, N.º 144, no mesmo Arquivo.

(531) Carta do Inf. D. Henrique a P. Domenico de 10 de fever. de 1542, na Gav. 2, M. 2, N.º 54.

(532) C. de P. Domenico a elrei de 23 de março do l542, na G. 2, M. 1, N.º 33.

(533) Instrução ou Memória na Coleç. de Mss. de S. Vicente, vol. 3, p. 137, Arqu. Nac.

(534) C. de P. Domenico a elrei de 23 de março cit.

(535) Vide ante T. 2, p. 352.

(536) «segundo sua disposição e magreza (do núncio) porque sua profissão é de austinente e religioso, e quasi amostra trazer as filaterias acostumadas dos religiosos da lei velha nas fímbrias das vestes... deste Núncio ter as mãos de Esaú e a voz de Jacob». C. de Cristov. de Sousa a elrei, de Lyão de França, 13 de abril de 1542, G. 2, M. 5, N.º 41.

(537) Memoriale, na Symm., vol. 31, fol. 59 v. e segg.

(538) ibid. O testemunho do Memoriale é preciso. Todavia o breve de crença do núncio dirigido a elrei é de 29 de outubro de 1542 (M. 23 de Bulas N.º 58), talvez porque se expediu diretamente depois da partida do bispo coadjutor. O breve recomendando-o ao infante D. Duarte é de maio desse ano. M. 25 de Bul. N. 45.

(539) A audiência de despedida do embaixador Christovam de Sousa vem miudamente referida numa carta do mesmo embaixador a elrei de 10 de março de 1542 (última escrita por ele de Roma), na G. 2, M. 5, N.º 27.

(540) Imprimiu-se em Inglaterra neste século, mas sem data de lugar nem de ano, uma versão portuguesa das instruções ao bispo coadjutor de Bergamo, as quais se dizem tiradas de uma biblioteca de Florença. É raríssima esta publicação, de que só vimos um exemplar. O texto de que nos servimos é a cópia do original inserida na Symmicta, vol. 12, fol. 19, e segg. O seu título é Instruzione piena delle cose di Portogallo in tempo del re Gio. III data a Monsignore Coadjutore di Bergamo, nunzio apostolico in quel regno, per ordine di papa Paulo III. Foi tirada do códice do Vaticano 829.

(541) Vide ante T. 2, pag. 244.

(542) Nas instruções que vamos aproveitando Frei Jerônimo é chamado constantemente il Padeglier; mas este não podia ser senão Fr. Jerônimo de Padilha. Sobre todos estes frades veja-se o Dial. v. de Mariz (Reinado de D. João III, ad finem).

(543) Este quadro acha-se quase no fim das instruções, mas aí mesmo se nota que quello che si dovera dir prima si dirá per ultimo. Resumindo-as, não seguimos as instruções senão quanto à substância das idéias, e não quanto à sucessão delas, por ser em extremo desordenada.

(544) Quem está habituado à linguagem devota dos documentos oficiais e correspondências diplomáticas do governo de D. João III não pode deixar de reconhecer a exação destas observações.

(545) È molto arrabialo.

(546) Sousa, Anais, Memor. e Doc., p. 385.

(547) Vide ante T. 2, p. 211.

(548) Sousa, ibid. p 401.

(549) Ibid. p. 409 e segg.

(550) Ibid. p. 410 e 417.

(551) Ibid. p. 417. — Memor. de Liter. da Acad., T. 2, p. 102.

(552) Sousa, ibid. p. 412 e 413.

(553) Carta do conde de Castanheira a elrei: Ibid. p. 456.

(554) Coleção de correspondências e papéis originais do reinado de D. João III, pertencente ao sr. A. J. Moreira, Quaderno 19 (Informações para se erigirem as sés de Miranda e Leiria).

(555) Ibid. (Informações para se mudarem ou anexarem os mosteiros de Ceiça, Tarouca, Longovares, S. Fins de Friestas, etc.).

(556) «Do que se segue em os ditos moesteiros (de Bernardos) nom aver religiosos homens de bem e de boa religiam, e serem todos ignorantes e homens de pouco saber». Correspondência Orig. de Baltazar de Faria, f. 196 (Carta d’elrei de 21 de agosto de 1546), na Bibliot. da Ajuda

(557) Carta d’elrei a B. de Faria de 6 de setembro de 1545: Ibid. f. 138

(558) Cartas d’elrei ao mesmo de 19 de novembro de 1543 e de 9 de julho de 1546: Ibid f. 36 e 185.

(559) Vide ante T. 1, p. 238.

(560) Uncle Tom’s Cabin, pela americana Beecker Stowe.

(561) «In tertia etiam et quarta generatione». As famílias servas, principalmente os pretos, índios e americanos, não podiam passar ainda da terceira ou quarta geração, atenta a época dos descobrimentos e conquistas. Dos cativos mouros da Berbéria poucos podia haver, pela necessidade freqüente de os trocar por cativos cristãos.

(562) Fr. F. a Conceptione, Annotatiunculae in Abusus, na Symmicta, vol. 2, f. 182 v.

(563) C. de P. Domenico a elrei de 27 de julho de 1542, G. 2, M. 5, N.º 17. Correspondência original d’elrei para Baltazar de Faria, f. 5 (na Biblioteca da Ajuda): Carta de 20 de janeiro de 1543. — Da carta do Procurador dos Cristãos-novos a Jorge Leão de 18 de maio de 1542 (G. 2, M. 2, N.º 51) se vê que Fr. Jerônimo de Padilha estava em Roma desde maio tratando do negócio da Inquisição.

(564) Carta de 18 de maio de 1542 acima citada, na G. 2, M. 2, N.º 51. Esta carta, cópia sem assinatura, era do procurador dos cristãos-novos, Diogo Fernandes Neto, como consta das Instruções sem data que se encontram no vol. 3 da Coleç. Ms. de S. Vicente, f. 136. vejam-se também as cartas de P. Domenico desse mesmo ano, G. 2, M. 2, N.º 53, e M. 5, N.º 17 e 38, o os breves de proteção a favor de vários judeus portugueses, no M. 17 de Bulas N.º 14, M. 25, N.º 14, M. 37, N.º 49 etc., no Arqu. Nac.

(565) Na carta atribuída ao bispo de Viseu, resumida nas Instruções sem data do vol. 3.º da Coleç. de S. Vicente, f. 137 v., diz-se que a missão do núncio relativa ao concílio era apenas um pretexto, e que o verdadeiro motivo da sua vinda era o negócio do cardinalato do bispo. É possível; mas os documentos anteriormente citados provam de sobejo que a matéria da Inquisição e dos cristãos-novos não havia influído menos naquela missão.

(566) Veja-se ante T. 2, p. 153, 168, 344. Além dos fatos citados nesses lugares, temos documento direto e irrefragável de que o assassínio era um meio ordinário de governo na piedosa época de D. João III. Os homens que empregavam como instrumento de administração o punhal do assassino não deviam hesitar demasiado em empregar a pena do falsário para fins políticos. O documento a que nos referimos acha-se original no Corpo Clironol., P. 2.ª, M. 162, Doc. 120, no arquivo da Torre do Tombo. É o seguinte:

«Francisco lobo eu elRei vos emvio muyto saudar e comfiamdo que farês o que de vós sespera vos qis por nas mâos cousa que tanto compre a meu seruyço o que semdo por vós acabado sempre serey lembrado do gramde seruyço que niso me fizestes: o que sera de maneyra e com tanto Recado que por nynhua via se posa sospeitar donde foy feito, que doutra maneyra mays seria desseruiço que seruiço: e diguo que nesta nao que ora veyo da India que está nas ilhas vinha domingos vaz piloto com bastiam Roiz seu sobrynho o qal domingos vaz fuy ora emformado que nam vem da india qa senam com vontade de me desseruyr por comselho de muitas pessoas que la ficam que eu muito desejo saber qem sam porque ele tras seus asynados e vontades por escrito pera mylhor seguirem seu mao preposyto: e porque diso dele se nam tinha nynhua sospeita ele teue maneyra que se deytou num navio que ya pera as canarias pera day se pasar a castela: e por que eu sey que ele nam pode deyxar de ir ter a esa cidade de malegua ou por ay da Redor vos mamdo que tenhais tal maneyra que sejais de sua vymda por esa terra sabedor, e sabemdo, elle seja morto, e custe o que custar, e com tanto aviso como se deue fazer cousa de gramde meu segredo a qal feita ou nom feita nunca sairá de vos e fernam dalmeida que esta vos dará vos dará a mays emformaçam e os sinais dele porque ele vay a via das canarias abucalo e a outras partes: e o que fernam dalmeida de vós ouver mister será prouido e lhe podês dar nesta parte imteiro credito, feita em lisboa XXVI de abril antonio carneiro a fez 1530 — Rey.

Sobrescripto — Por elRei a Frco lobo cavalro de sua casa seu feitor em malegua.

Dyguo eu fernam dalmeyda escudeyro delRey noso senhor que he verdade que Receby de Frco llobo feytor do dyto senhor cem cruzados e huum cauallo selado e emfreado per virtude de huma carta dellRey noso senhor em que me mandaua fazer algumas cousas de seu seruyço e porque tudo Receby delle lhe dey este feyto e asynado per mim em mallaga a vynte e dous de Junho de myll e quynhentos e trynta um annos. — Fernam dallmeyda.

A f. 186 L.º 2.º são lançados em despesa R VIII rs. que deu a este fernão dalmeida-s-XXXVII V.c em dinheiro e X V.c per um caualo que lhe comprou. Tem conhecimento do dito dinheiro.»

(567) «aconteçeo dhi alguus dias que o juiz de fóra da villa darronches trouxe a elRei nosso senhor certos maços de cartas que dise que tomara a huu corrêo etc.» — Instruções na Coleção de S. Vicente, vol. 3, p. 135 v. Esta espécie d’Instruções ou antes Memória diplomática é o único monumento em que achamos assim particularizada a apreensão daquelas cartas.

(568) Ibid. No extrato desta carta contido nas Instruções ou Memória diplomática a frase é ambigua. O possessivo sua pode referir-se tanto à mulher do homem de Viseu como à de Diogo Fernandes. Da cópia, porém, dessa carta que se acha por íntegra na G. 2, M. 2, N.º 51, se vê claramente que se refere à mulher do homem de Viseu.

(569) Coleção de S. Vicente, l. cit. Não aproveitámos dos extratos senão os pontos capitais, porque muitos daqueles extratos são apenas repetições das mesmas idéias por diverso modo.

(570) Carta de 18 de maio de 1542, na G. 2, M. 2, N.º 51.

Esta carta, que é apenas uma cópia, refere-se não só a uma carta sem sobrescrito para a mulher do homem de Viseu, mas também aos breves de perdão para uns certos Pedro de Moreiro e Maria Thomaz, o que tudo vinha junto. Nas Instruções ou Memória de S. Vicente diz-se apenas que se achou no maço uma das cartas sem sobrescrito.

(571) Veja-se a carta de Francisco Botelho de 26 de dezembro de 1542, na G. 2, M. 1, N.º 49, que adiante havemos de aproveitar.

(572) Parecer dos letrados acerca da entrada do núncio Lipomano: Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 11 in medio.

(573) Minutas das cartas ao núncio, e a Francisco Pereira, e das instruções a André Soares, Ibid. passim.

(574) As minutas da carta ao núncio são duas, mas idênticas na substância.

(575) Instruções a André Soares: Ibid.

(576) Carta d’elrei para Francisco Pessoa, tesoureiro do príncipe de Castela, de 11 de setembro de 1542, na G. 2, M. 9, N.*ordm; 43, no Arqu. Nac.

(577) Ibid.

(578) As Instruções a Francisco Botelho, as cartas para o papa, para Santiquatro e para diversos cardeais acham-se, parte em minutas, parte em cópias do tempo, na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 6 ad finem.

(579) Vejam-se os apontamentos para esta carta na G. 2, M. 1, N.º 38, que foram rejeitados, a minuta feita por letrados na mesma gaveta e maço N.º 20 em cujo verso se lê que não foi, e finalmente aquela que parece ter sido preferida, aí junta N.º 19.

(580) Minuta na G. 2, M. I, n.º 19.

(581) «as quais lhe leu todas até ao cabo, e sua santidade tosquenejava às vezes»: Carta de Francisco Botelho de 26 de dezembro de 1543 (aliás 1542) na G. 2, M. 1, n.º 49 e original na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 9 in medio. Posto que datada de 1543, é de 1542; por ser escrita a 26 de dezembro, e o ano do nascimento começar então em dia de Natal. De outro modo, esta carta contradiria a cronologia dos sucessos.

(582) Ibid.

(583) Ibid.

(584) Instruç. ou Memór. sem data na Coleç. de S. Vicente, vol. 3.º, f. 139.

(585) Numa informação que parece da letra de Pier Domenico (Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 6, in principio) em que se indicam os meios de adquirir protetores em Roma, fala-se do cardeal de Crescentiis como de um dos mais incorruptíveis. Entretanto acrescenta-se: «com muito pouca pensão se contentará, avendo opportunidade, ou com algúas pedras boas, ou bayxelinha, ou cama com algús panos. E com dous cavallos que lhe B de Faria deu quando foy pera Bolonha com o papa o anno passado, em tempo fez muito para o porvir». Acerca do secretário do papa, monsenhor Ardinghello, bispo de Fossombrone, adverte-se aqui: «Com pouco mays de luvas perfumadas se contentará, este e outro que aquy abayxo direy, e com húa pedra de L cruzados». À Dataria chama-se neste papel botica (botegha, loja de venda) do datayro. Nuns apontamentos dados por Francisco Botelho depois da sua volta de Roma, sobre o modo de dirigir os negócios pendentes (Ibid. Quad. 7 ad fin.) diz-se: «Parece-me que deve S. A. de dar alguma cousa ao papa, que eu affirmo que o tome, e tambem que com isso se façam melhor os negocios que com roupas de martas e muitas encavalgaduras. E também alguma cousa a Durante e a Bernaldes de la Cruz e a Julio, que são camareiros do papa e seus favorecidos. Assy o cardeal Puche que he pobre e bom homem e com que o papa folgará. É muito servidor de S. A. E assy ao cardeal Teotino e a outros, segundo a calidade dos negócios forem, e quando for tempo para isso se fazer; que certo eu quizera antes para o que compre ao serviço de S. A. que houvesse ahi pensões depositadas para isto, que dadas a ninguem lá em Roma, podendo ser». As citações desta ordem poderiam multiplicar-se prodigiosamente.

(586) Informazione che il re di Portogallo manda dire a S. Santitá per Pier Domenico, na Symmicta Lusit., T. 2, f. 202.

(587) Ibid.

(588) Ibid. Instruç. ou Mem. sem data na Coleç. de S. Vicente, vol. 3, f. 141.

(589) Ranke, Die Roemischen Paepste, 2 B. S. 298 u. f.

(590) «O Dioguo Antonio, porque do que havia de repartir para suprimento e ajuda dos custos dalgus oficiaes de vossa santidade convertia a mor parte em seus guastos e usus próprios, foy delles revogado e procedeose por mandado de vossa santidade com censuras contra os que ca não queriam responder ao pagamento do que elle como seu procurador gastara». Minuta da carta de D. João III ao papa que levou Simão da Veiga em 1545 e que adiante havemos de aproveitar (Coleç. do Sr. Moreira, Quad. I ad fin.). Um breve original sobre este assunto datado de 27 de outubro de 1540 acha-se no Maço 25 de Bulas N.º 14, no Arqu. Nac.

(591) «o qual (Diogo Fernandes) perante vossa santidade culpado em manifesto judaísmo, em parte foy causa de vossa santidade na sua cidade de Roma instituir a santa Inquisição»: Minuta citada.

(592) Entre os documentos que revelam o fato é decisiva a carta d’elrei a Baltazar de Faria de 20 de janeiro de 1543 (Corresp. Orig. de B. de Faria, f. 5, na Bibliot. da Ajuda).

(593) «Da prisam do procurador dos christãos-novos e de como sobcedeo este neguocio recebi muito prazer. E parece que em tudo o que quá e láa nele se pasou quiz nosso senhor mostrar o que importava a seu serviço saber-se. E ouve por bem feito o que nisso fizestes e requerestes»: Carta a B. de Faria de 20 de janeiro de 1543, l. cit. «Que Diogo Fernandes fora solto se B. de Faria não fora. E comette-lhe grandes partidos. Mas eu queria-o antes preso que solto»: Lembranças de Francisco Botelho acerca dos negócios de Roma na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in medio. — C. de B. de Faria a elrei de 15 de outubro de 1543, na G. 2, M. 5, N.º 43, no Arqu. Nac.

(594) C. a B. de Faria de 20 de janeiro de 1543, l. cit.

(595) Informazione che il re di Portugallo manda dire a S. S. per P. Domenico, na Symmicta, T. 2, f. 207 v.

(596) Carta de B. de Faria a elrei de 15 de outubro de 1543, l. cit.

(597) Ibid.

(598) Ibid.

(599) Carta de D. João III a B. de Faria de 20 de janeiro de 1543, na Corresp. de B. de F., f. 6, na Bibliot. da Ajuda.

(600) C. de B. de Faria de 15 de outubro de 1543, l. cit.

(601) Vejam-se todas as cartas de D. João III ao papa sobre assunto e instruções aos seus ministros em Roma, especialmente a carta mandada por Simão da Veiga em 1545.

(602) C. de D. João III a B. de Faria de 20 de janeiro de 1543, l. cit.

(603) C. de B. de Faria de 15 de outubro de 1543, l. cit.

(604) «temo que me ande vir arrombar, porque desbaratam o mundo com peitas»: C. de B. de Faria de 15 de outubro de 1543, l. cit.

(605) C. d’elrei para B. de Faria de 4 de fevereiro de 1544 na Correspondência de B. de Faria, fl. 49, na Bibliot. da Ajuda.

(606) «he impossivel resistir ao suborno desta gente, porque exactissima diligencia não basta: á mister mão de Deus: os officiaes são muitos, e nesta terra é gram maravilha serem bõos: e a maior parte deles, da follosa até o grou, promtos a tomar sem pejo quanto lhes dam: ora veja vossa alteza a impresam que faram neles cristãos-novos necessitados, que naturalmente tem por ofíicio peitar»: C. de B. de Faria a elrei de 18 de fevereiro de 1544 na G. 2, M. 5, N.º 19, no Arqu. Nac.

(607) Ibid.

(608) Ibid.

(609) Ciacconius, T. 3 (Paul. III. — XXXIII), p. 667.

(610) C. de B. de Faria a elrei de 18 (aliás 19) de fevereiro de 1544, G. 2, M. 5, N.º 32, no Arqu. Nac.

(611) C. de B. de Faria a elrei de 8 de maio de 1544, G. 2, M. 5, N.º 24.

(612) Veja-se o § da carta de um certo Fr. Antonio a elrei, escrita poucos anos depois, e que se refere a este fato: G. 2, M. 9, N.º 44.

(613) C. de mestre Simão (jesuíta) a D. João III (1544) de Ancona, na G. 2, M. 5, N.º 31. Veja-se também a carta de Gaspar Barreiros publicada por Cunha (Hist. Eclesiástica de Braga, P. 2, c. 81) documento suspeito, mas cuja narrativa é nesta parte assaz plausível.

(614) Instruç. ou Memór. sem data no vol. 3 da Coleç. Ms. de S. Vicente, f. 139.

(615) «Quindecim totos annos quibus Paulus pontifex víxit, ecclesiam ferè universam prudentissimè gubernavit (Farnesius); legationes apostolicæ sedis aut ipse obivit, aut quibus voluit à pontifice delatae. Ad pontificem atque à pontifice per ipsum Alexandrum provinciarum et principum manabant negotia»: Ciacconius, T. 3 (Paul II. — I), p. 563.

(616) Ibid.

(617) O título da memória a que nos referimos e que muitas vezes temos citado é Memoriale porrectum â noviter conversis Regni Portugalliae continens narrativam rerum gestarum circa eos a Regibus et Inquisitoribus illius Regni spatio 48 annorum. Seguem-se ao memorial 44 apensos, contendo em parte instrumentos judiciais sobre os fatos indicados naquela memória, e narrativas especiais em relação a atos dos inquisidores e a assuntos passados no interior da Inquisição, de que não era possível obter certidões. Parte dos anexos são destinados à discussão de vários pontos relativos à extensão da autoridade do tribunal da fé, às condições da sua existência, às fórmulas dos processos, etc. Desde o número 33 em diante os apensos referem-se principalmente ao período decorrido desde 1540 até 1544, e por isso são estes que aproveitaremos aqui, bem como a correspondente narração do Memorial. Este e os apêndices formam os volumes 31 e 32 da Symmicta Lusitanica (vol. 38 e 39 da Coleção Geral vinda de Roma) na Biblioteca da Ajuda. A cópia foi tirada do Ms. 893 da Biblioteca Borghesi.

(618) «illorum sanguine incrassatus et impinguatus est regius furor. Heu! Deplorandum tempus!» Memoriale, Symm., vol. 31, f. 60 v.

(619) Memoriale, l. cit. f. 62. O processo de Margarida de Oliveira, que ainda existe nos arquivos da Inquisição de Lisboa Nº 2847 e 3911, prova que, nesta parte, a narrativa do memorial não só não é exagerada, mas até que é incompleta. A existência dos autos originais nos arquivos da Inquisição deixa logo ver o nenhum caso que os inquisidores fizeram da segunda resolução do papa. Apensos a eles encontram-se o mandado avocatório do arcebispo do Funchal e a contestação do promotor da Inquisição, alegando que, tendo sido o procedimento dos inquisidores para com a ré justo e regular, o breve que nomeava juízes extraordinários era sob e subrepticio. A desobediência dos inquisidores fundou-se, portanto, em dar por provado justamente o que estava em questão. O mais curioso daquele processo (a que parece, por nos servimos de uma frase, vulgar, ter-se posto pedra em cima, porque não se acha concluído) é a matéria das testemunhas. As do libelo foram seis, das quais três de ouvida. A ré deu mais de cem em seu abono. Entre as testemunhas de defesa figuravam pessoas principais, tanto da classe nobre como da burguesia. Dada a lista, interrogaram-se apenas algumas e parou o processo. Queixou-se a ré, e pediu que fossem ouvidas as outras. A sua situação era horrível. Tinha 74 anos e estava coberta de chagas. O promotor impugnou o requerimento, alegando que aos juízes tocava apreciar o número de testemunhas que eram necessárias para os esclarecer, fundamentando esta admirável doutrina com textos numerosos. Tais eram a justiça e a indulgência da Inquisição, ainda supondo a legitimidade da sua existência. A circunstância de não figurar o núncio no mandado avocatório mostra bem ou a timidez do bispo de Bergamo, ou a insignificância do papel que representava na corte de D. João III.

(620) Ibid.

(621) Não existe o original; o que transcrevemos aqui é a tradução da tradução latina, que se acha inserida no instrumento N.º 33, apenso ao Memoriale, na Symm., vol. 32. fol. 192.

(622) Carta do doutor Gonçalo Vaz a elrei, de 15 de janeiro de 1543, na G. 2, M. 1, N.º 39, no Arqu. Nac.

(623) Instrumento N.º 35, apenso ao Memoriale, l. cit. fol. 217.

(624) Instrumento N.º 34, apenso ao Memoriale, l. cit. fol. 197.

(625) Instrumento N.º 36, apenso ao Memoriale, l. cit. fol. 219 v.

(626) Excessus Inquisitorum Ulrixbon, no apêndice ao requerimento feito pelos cristãos-novos a elrei, de que adiante havemos de falar: Symm., vol. 32, fol. 311.

(627) «quod quaecumque persona ibi cognoverit christianum novum, ostendat illum.»: Ibid. fol. 312. É evidentemente uma exageração de frase. Gil não podia exigir que lhe indicassem os cristãos-novos para os prender, mas sim os cristãos-novos suspeitos de judaísmo. É provável, todavia, que em muitas partes o fanatismo tornasse sinônimas as duas expressões.

(628) Ibid.

(629) O documento que seguimos diz que Francisco Gil multava quem vinha a Algoso, e que lhe impunha a pena de desterro: é evidente que estas expressões são exageradas.

(630) Instrumento N.º 37, apenso ao Memoriale, l. cit. fol. 228 v. e segg. Este documento curioso resumimo-lo, omitindo algumas circunstâncias que nos pareceram desnecessárias para o quadro geral da grande perseguição de 1540 a 1544.

(631) Excessus Inquisitorum Civitatis Lamacensis, l. cit. fol. 320 e segg.

(632) Instrumento N.º 39, l. cit. fol. 247 v.

(633) Sousa, Aphorismi Inquisitor. (De Orig. Inquisit.) p. 28.

(634) Carta do bispo de S. Tomé a elrei (sem data), G. 13, M. 8, N.º 6.

(635) Traduzimos por conjectura; a memória dos cristãos-novos que vamos seguindo chama-lhe praefectum carceris.

(636) Este parágrafo da exposição feita pelos cristãos-novos a D. João III em 1543 é assaz curioso para não deixarmos de o transcrever aqui: «Praefatus episcopus, non advertens ad honestatem sui habitus et dignitatis, conferebat se multotiès in castellum et mandabat venire coram se mulieres conjugatas et personas honoratas, ac puellas erubescentes sivé timidas, et punebat se cum eis, ipsis renuentibus, ad aloquendum, dicendo illis: quod Deus illas augeret: Regina siquidem non habebat tot damicellas et tam pulchras prout illic habebat: dicendo uni quod habebat bonos oculos, et aliis quod erant benè formatae. Et si aliqua earum infirmabatur, ibat ad lectum, et contra illius voluntatem, assumebat illius brachium, dicendo illae quod volebat videre illius pulsum, subdens quod habebat brachia crassa, macra, aut carnosa prout ipse volebat, cum aliis rebus et facetiis multum inhonestis, ex quo praefatae mulieres manebant multum verecundatae. Verum quia existebant sub illius dominio, non poterante aliud facere nisi suferre suas injurias quam honeste poterant, cúm illic non haberent cui conquerentur de hujusmodi rebus, et eandem quaerelam habent sui mariti quoniam existentes carcerati etc.» Excessus Inquisitor. Civit. Colimbriens., Symm., vol. 32, f. 346 v. Quanto aos precedentes §§ veja-se aí f. 332 v. e segg.

(637) Excessus Inquisitor. in Oppido d’Aveiro, l. cit. fol. 348 v. e segg.

(638) Excessus Inquisitor. Civit. Colimb., l. cit. f. 339.

(639) Doc. da G. 2, M. 2, N.º 27, no Arqu. Nac. «Oh piétá grande! che girano in volta per le contrade disperse 300 creature fanciulli senza governo ne albergo alcuno di persona vivente dando voci et gridando per lor padri et madri»: Ibid.

(640) Ibid

(641) Annotationes Criminum et Excessum Inquisitor. per totum Regnum, Symm., vol. 32, f. 267.

(642) Petitio Regi, na Symm., vol. 32, p. 278 v.

(643) Excessus Inquisitor. Civit. Colimbr. Ibid. f. 348.

(644) Nada, talvez, dê uma idéia mais clara do espírito de D. Fr. Balthasar Limpo do que uma longa carta sua a D. João III datada de Roma a 7 de novembro de 1547, que se acha na G. 2, M. 5, N.º 37, no Arch Nac. e que adiante havemos de aproveitar

(645) Não é provável, como se vè da narrativa, que a rua de S. Miguel no Porto uma das principais, fosse a que atualmente tem este nome. Devia ser outra mais central, talvez a rua dos Mercadores .

(646) Excessus Inquisitorum Civitatis Portugailensis: Symm., vol. 32, fol. 365 e segg.

(647) Ibid. passim.

(648) Excessus Inquisitorum in Civit. Elbor., Symm., vol. 32, f. 318. A narrativa refere-se quanto aos crimes, pelos quais Pedro Álvares de Paredes fora expulso da Inquisição de Llerena, publicis instrumentis quae debent ostendi Nuntio Portugaliae insimul cum allegationibus eorum quae commisit postquam existit in regno.

(649) Ibid. pasim.

(650) Veja-se Sousa, De Origine Inquisit. §§ 2 e 4.

(651) Acerca do segredo dos cárceres é curiosa a defesa de João de Mello (G. 2, M. 1, N.º 21) em resposta a uma consulta feita por quatro cristãos-novos por ordem d’elrei, que adiante havemos de aproveitar. Segundo o honrado inquisidor nada havia mais acessível do que os cárceres. O segredo só durava enquanto não começava o processo (que podia tardar anos) ou quando os réus andavam em perguntas, ou estavam em confissão, ou em outros casos semelhantes, ou para não receberem avisos de fora, ou para eles os não darem a outrem. De resto podiam falar com quem lhes cumpria. Dir-se-ia que Beaumarchais, descrevendo espirituosamente no Figaro a liberdade de imprensa sob um governo absoluto, tivera por modelo esta singular alegaçâo de João de Mello.

(652) «et quando ea via non possunt, ponunt eos ad torturam funis, et si cum ille non id efficiunt, incidunt sibi plantas pedum, et ungunt sibi cum butiro atque admoeant igni»: Excessus Inquisitor. in Civitate Ulixbon., Symm., vol. 32, f. 289 v.

(653) «pro auxilio deducunt quendam Petrum Alvarez hominem quidem mendicantem, ebrium, contra quem fuit exceptum quod detegebat sua podenda, et incendebat cum illis patentibus, ac permiserat pueris pro uno regali, quem sibi tradiderunt, ut ponerent sibi laqueum in illis et ducerent eum per stratam». Ibid. f. 294.

(654) Ibid. f. 295.

(655) Ibid. f. 297 e 366 v.

(656) «ponunt illas ad torturam, septem vel octo quolibet die; et unus dicit «oh quae facies judeae!» alius «oh qui oculi!» alter verò «ho qualia pectora et manus!» taliter quod supra prandium suscipiunt illud gaudium et solatium pro recreatione suae vitae»: Ibid. f. 297 v.

(657) Ibid. f. 302.

(658) G. 2, M. 2, N.º 40, no Arquivo Nacional. A carta é original e datada de Lisboa a 14 de outubro. Elrei, portanto, estava fora da capital, provavelmente em Évora. De 15 de novembro de 1542 existe também uma carta original de D. João III datada de Lisboa e dirigida ao infante D. Henrique, dando-lhe conta de um auto-de-fé que se acabava de celebrar. (Corpo Cronol. P. 1, M. 73, N.º 16 no Arqu. Nac.) Na carta de João de Mello menciona-se o suplício da mulher e da filha de um mercador chamado mestre Thomaz, o que do Memorial dos cristãos-novos, na Symmicta, se vê tinha sido anterior a 1544. Assim a carta de João de Mello é com probabilidade de 1542, sendo de crer que queixando-se ele do pejamento dos cárceres em 14 de outubro, se fizesse outro auto-de-fé de aí a um mês para os despejar e que elrei viesse assistir a ele. Além disso, João de Mello alude na carta aos autos-de-fé dos anos passados em que interviera, e ele só fora transferido para a Inquisição de Lisboa nos meados de 1539. Em todo o caso a carta não pode ser posterior a 1543.

(659) «de nenhua cousa estou tão espantado como dar nosso senhor tanta paciencia em fraqueza humana, que vissem os filhos levar seus pais a queimar, e as mulheres seus maridos, e huns irmãos aos outros, e que não ouvesse pessoa que se falliasse nem chorasse nem fizesse nenhum outro movimento senão despedirem-se huns dos outros com suas benções, como que se partissem para tornar outro dia»: Carta de João de Mello, l. cit. O inquisidor esquecia-se do que anteriormente dissera que duvidava da contrição dos supliciados. Aqui atribui a sua admirável constância à graça divina. A gíria devota faz às vezes cair, ainda os mais habituados, em erros de teologia.

(660) O parágrafo alusívo a um auto-de-fé que se encontra no Excessus Inquisitor. Civit. Ulissipon. (Symm., f. 366 v. e 367) refere-se evidentemente ao de 14 de outubro.

(661) Este argumento acha-se repetido em mais de uma alegação dos cristãos-novos, com maior ou menor perspicuidade. Como é de supor, os defensores da Inquisição nas suas apologias ou o meteram no escuro, ou replicaram deploravelmente: nem outra cousa era possível.

(662) Excessus Inquisitor. Civit. Ulissip. passim, l. cit., signanter, f. 300 e segg.

(663) Ibid. fol. 309-311.

(664) C. de B. de Faria a elrei de 12 de junho de 1544, G. 2, M. 5, N.º 43 no Arqu. Nac. Existem breves de recomendação a favor do núncio Ricci dirigidos aos infantes D. Luiz e D. Henrique datados de 27 de junho de 1544 no M. 36 de Bulas N.º 75 e M. 37, N.º 53 no Arqu. Nac. Uma cópia em vulgar do breve de crença de João Ricci, bispo eleito sipontino, datado de 27 de junho de 1544, acha-se na Coleção de Sr. Moreira, Quad. 2 in fine.

(665) Instruções ou Memória da Coleç. de S. Vicente, vol. 3, fol. 140 e segg.

(666) Ibid. — Cartas d’elrei a D. Christovam na G. 13, M. 8, N.º 1 e G. 2, M. 2, N.º 57, no Arqu. Nac.

(667) Ibid. As instruções ou Memória da Coleç. de S. Vicente não parecem assaz corretas na relação destes sucessos, afirmando que, depois de mandar suspender a entrada de Ricci, elrei escrevera ao papa contra esta prática de enviar núncios a Portugal, e que, respondendo entretanto Ricci o que fica substanciado no texto, se lhe permitira a entrada. Nem na correspondência original para Baltazar de Faria, nem nos documentos da Torre do Tombo se encontra o menor vestígio dessas reclamações em Roma. Pelo contrário, da carta d’elrei para B. de Faria de 26 de dezembro de 1545 (aliás 1544 por ser posterior a 25 de dezembro) se deduz que nem uma palavra se havia escrito sobre tal assunto ao agente em Roma desde a chegada de Montepoliziano até esta data (Corresp. de B. de Faria na Bibliot. da Ajuda, f. 84).

(668) Breve Cúm nuper dilectum de 22 de setembro de 1544 na G. 2, M. 1, N.º 45, no Arqu. Nac.

(669) Instruç. ou Memor. na Coleç. de S. Vicente, l. cit. — C. de D. João III a B. de Faria de 25 de dezembro de 1544 na Corresp. de B. de Faria, f. 76.

(670) Instruç. ou Memor. de S. Vicente, l. cit.

(671) Instruç. ou Memor. de S. Vicente, l. cit. — Minuta das Instruções a Simão da Veiga: Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 1.º in princip.

(672) Apenso às Instruções de Simão da Veiga: Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 7.º in princip.

(673) Minuta da carta de D. João III ao papa de 13 de janeiro de 1545 na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 1.º in fine. A minuta não tem data, mas esta consta da resposta de Paulo III que adiante havemos de citar.

(674) C. d’elrei para B. de Faria de 26 de janeiro de 1545 na Corresp. de B. de Faria, f 84.

(675) Existem ainda duas minutas da carta precedente (Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in medio). Na que parece ser a primeira há um parágrafo em que se alude à morte de Santiquatro e a propostas de Faria acerca do sucessor. Elrei ordena-lhe que diga que não lhe respondeu sobre isso, procedendo a informações sobre qual convirá mais escolher. Este parágrafo foi suprimido na outra minuta e na cópia expedida, acaso porque destinaram a matéria para carta especial.

(676) Minuta desta espécie de circular na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in medio. Numa nota da minuta se diz que se expediram as dez, e as três em branco.

(677) Minuta da carta ao cardeal Farnese, ibid.

(678) Breve Attulit ad nos de 16 de julho de 1545 no Codex Diplomat., vol. 3 (Simm., 46), p. 563. — Vertido em vulgar na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 3. in fine.

(679) Não pudemos encontrar nem a carta de Santafiore, nem a de Simão da Veiga, nem a de Loyola: mas depreende-se o que vamos narrando das correspondências que adiante havemos de citar.

(680) Santafiore era neto de Paulo III por sua filha Constanza, e Farnese era-o por seu filho Pier Ludovico, duque de Parma.

(681) Vejam-se e comparem-se as três cartas originais de D. João III para Baltazar de Faria de 13 de julho de 1544, de 16 de fevereiro de 1545 e de 5 de março do mesmo ano na Corresp. de B. de Faria, f. 62, 98, 110. Os treze mil cruzados mandados dar a Farnese equivaleriam hoje a mais de sessenta mil, calculando pela diferença do valor do trigo o valor da moeda naquela época.

(682) «... e nestas propinas se podem montar boa soma de dinheiro, parece que o sancto padre folgará de se encarregar da proposiçam dos dictos neguocios como já outras vezes se fez, e que aproveitará pera os mesmos neguocios e pera outros do meu serviço saber ele que folguo eu de lhe comprazer no que boamente posso»: C. d’elrei a B. de Faria de 4 de março de 1545: Corresp. Orig. de B. de Faria, f. 105.

(683) Carta d’elrei a D. Christovam de Castro na G. 2, M. 2, N.º 37.

(684) Minuta da carta régia ao cardeal Santafiore de agosto de 1545 na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 3.º. Deste documento se vê que o papa encarregara o neto da proposição em consistório dos negócios que elrei pusera em suas mãos. Assim guardavam-se melhor as aparências e ficavam os lucros em casa.

(685) Carta d’elrei a B. de Faria e Simão da Veiga de 13 de agosto de 1545 na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 2 — Minuta da carta a Mestre Ignacio: Ibid. Quad. 3 — C. d’elrei a Simão da Veiga e a B. de Faria de 10 de agosto de 1545: Ibid.

(686) C. d’elrei a B. de Faria de 4 de agosto de 1545 na Corr Orig. de B. de Faria, f. 122.

(687) As correspondências acerca da compra de cereais na Sicília em 1545, acham-se principalmente na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 2.

(688) Instruç. ou Memor. na Coleç. de S. Vicente, vol. 3, f. 142 e segg. — C. d’elrei a S. da Veiga e a B. de Faria de setembro de 1545, Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 4.

(689) Breve Quod semper de 16 de dezembro de 1545 na Symm., vol. 46 (Cod. Diplom. 3.º), p. 595.

(690) A informação ou exposição a favor dos cristãos-novos acha-se na G. 2, M. 2, N.º 26, e a resposta dos inquisidores (a que puseram exteriormente a data errada de 1535) na mesma gaveta e maço N.º 31, no Arqu. Nac.

(691) «Que já tevera carregos (dizia de si o núncio) em que se quisera podera aver muito dinheiro, mas como sempre trabalhou de fazer o que devia e o que compria a sua honra e consciência, nunca dinheiro o comovera a o deixar de fazer. Parece-me que começou por aqui por ver se podia tirar alguma presunção que se podia ter da sua vinda cá... Assi que parece que todo seu entento he fazer seu negocio, e depois tanto lhe daa que a Inquisição fique aberta como serrada.» C. do bispo d’Angra a elrei de 7 de novembro de 1545, na G. 2, M. 2, N.º 48, no Arqu. Nac.

(692) «Cujo estilo (o do breve de 22 de junho) parece mais do bispo de Viseu que dalgum seu oficial, ou ao menos que foi no fazer dele»: Minutas de cartas d’elrei a Simão da Veiga e a B. de Faria de setembro de 1545, na Coleç. do Sr. Moreira, Quad, 4.

(693) Ibid. A carta expedida a B. de Faria, autorizando-o para abrir as cartas dirigidas a ele e ao seu colega, e para dar execução às ordens d’elrei, acha-se também na Corresp. Orig. de B. de Faria, f. 142. É datada de 28 de setembro.

(694) C. de Simão da Veiga a elrei, de Roma, a 28 de abril de 1546, na G. 13, M. 8, N.º 6, Doc. 5.º, no Arqu. Nac.

(695) Veja-se a carta particular de B. de Faria para Simão da Veiga, escrita de Roma para Palermo a 30 de outubro de 1545, na Coleção do Sr. Moreira, Quad. 2, ad fin. Esta carta é um documento curioso por se encontrarem nela vestígios de que Miguel Angelo trabalhava então num quadro para Portugal, e que, como em geral costumam os artistas, não era demasiado pontual. «Michael Angelo mente todo o possível co a cousa de nosa senhora da misericórdia. Parece-me que quer dinheiro. Eilho de dar por concluir coele.»

(696) Ibid.

(697) C. de Simão da Veiga a elrei de 28 de abril de 1546, l. cit.

(698) Instruç. ou Memor. na Coleç. de S. Vicente, vol. 3, fol. 144.

(699) Acham-se nos imensos arquivos da Inquisição, reunidos na Torre do Tombo, processos divididos em duas, três ou quatro partes, cosidas cada uma sobre si, com diferente numeração, o que às vezes torna difícil a reunião desses diversos fragmentos.

(700) C. d’elrei a B. de Faria de 20 de fevereiro de 1546, na Correspond. Orig., f. 164.

(701) C. de B. de Faria de 20 de fevereiro de 1546, na Corresp. Orig., f. 167. Esta carta, da mesma data da antecedente, admiravelmente categórica e precisa, é um dos documentos mais hediondos no meio desta série de torpezas.

(702) Carta de S. da Veiga, na G. 13, M. 8, N.º 8, Doc. 5.

(703) C. d’elrei a B. de Faria de 6 de maio de 1545.

(704) C. delrei a B. de Faria do mesmo dia, na Corresp. Orig., f. 1.

(705) C. de B. de Faria a elrei de 25 de março de 1546, na G. 2, M. 5, N.º 45.

(706) Ibid.

(707) C. de B. de Faria a elrei de 6 de abril de 1546, na G. 2, M. 5, N.« 23.

(708) Ibid. — Que as informações de Ricci tinham sido más, deduz-se claramente da carta de B. de Faria de 12 de dezembro de 1546, que adiante havemos de citar.

(709) Bula de 22 de agosto de 1546. Maç. 15 de Bulas N.º 18, no Arqu. Nac.

(710) C. do cardeal Carpi a elrei de 13 de outubro de 1546, na Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 11.

(711) Não pudemos descobrir os despachos trazidos por Simão da Veiga; mas os documentos subseqüentes esclarecem suficientemente esta fase da negociação

(712) C. d’elrei a B. de Faria de 4 de dezembro de 1546, na Corresp. Orig., f. 220.

(713) Ibid.

(714) C. de B. de Faria a elrei de 12 de dezembro de 1545, na G. 2, M 2, n.º 56. — «Cardeal ouve que disse: que querem os inquisidores? Querem carne?» Ibid.

(715) Doc. da G. 2, M. 1, N.º 18, no Arqu. Nac. O parecer dos quatro cristãos-novos não tem data nem assinatura, mas vê-se claramente do seu conteúdo que é dos fins de 1546 ou dos princípios de 1547.

(716) A análise e refutação da consulta dos cristãos-novos acha-se na G. 2, M. 11, N.º 21. Tem por fora em letra coeva uma nota que diz serem apontamentos do célebre inquisidor João de Mello.

(717) Doc. da G. 2, M. 1, N.º 21.

(718) C. delrei a B. de Faria de 22 de janeiro de 1547, na Corresp. Orig., f. 230.

(719) C. de B. de Faria a elrei de 3 de maio de 1547, «a qual fiança se aplicase polas obras de S. Pedro: que com isto lhes armei; que d’outro modo nunca fora possivel»; ibid.

(720) Lettera al nunzio dí Portogallo, na Symmicta. vol. 29, f. 75. Para que ninguém suspeite que substânciamos essa incrível carta inexatamente, transcreveremos aqui os seus últimos períodos; «non lasciarò etiam d’aggiungere come sua beatitudine ha concesso et applicato alla fabrica di S. Pietro tutti li fruti passatti delle chiese et beneficii sopradetti del tempo che sua altezza gli ha fatti pigliare, acciochè non solo se li satisfaccia in non darli a esso Viseu, ma etiam in convertirli in uso pio, perche per lasciarne una parte per distribuire di costà, secondo domandava sua altezza, non c’è stato ordine ottenerlo da sua santità, parendoli d’haversi por troppo lasciato andare nelle altre cose, in modo che se si fosse voluto per la parti di sua altezza star pertinace in questo, si sarebbe perturbato tutto il resto della spedizione, la quale per la grazia de Iddio, é condota a quel buono porto, etc.» O haversi pur troppo lasciato andare nelle altre cose explica-se por uma passagem anterior da carta, não menos singular, em que Farnese alega o sacrifício que o papa fazia em lhe meter na bolsa os rendimentos do bispado de Viseu e dos outros benefícios do infeliz D. Miguel da Silva. Tinha consentido nisso, dizia o neto, para contentar elrei, posto que «non si satisfaceva al debito della libertá ecclesiastica, e dell’honore di questa sede, nondimeno per levare, quanto a se, materia de mala satisfazione, et quanto a sua altezza carico, há finamente aconsentito, etc.»

(721) Lei de 15 de julho de 1547, em Figueiredo, Sinops. Cronol., T. 1, pag. 401.

(722) C. d’elrei a B. de Faria de 22 de julho, na Corresp. Orig., f. 246 e segg.

(723) Ibid.

(724) Ibid.

(725) Cartas de B. de Faria a elrei na G. 2, M. 5, N.º 46 e N.º 64, que adiante havemos de citar. Não aparece a correspondência de Faria desde maio até outubro de 1547. Entretanto, das cartas deste último mês e de novembro do mesmo ano vê-se que escrevera mais de uma vez a elrei nesse intermédio, e que remetera cópia de um breve de salvo conduto afrontoso para Portugal, concedido aos cristãos-novos. Descobrindo a existência desse diploma oculto, fizera grande rumor em Roma. Um breve de salvo-conduto não podia servir senão para os cristãos-novos portugueses serem recebidos sem gravame nos estados do papa. Provavelmente, no preâmbulo do breve havia algumas frases duras contra os inquisidores que queriam carne. Da carta do bispo do Porto de 22 de novembro, que adiante havemos de aproveitar, se vê também qual era o salvo-conduto a que se referia o agente português.

(726) Vide ante pag. 19.

(727) C. de B. de Faria a elrei de 17 de outubro de 1547, na G. 2, M. 5, N. 46.

(728) Ibid.

(729) Efetivamente das instruções dadas depois ao cavaleiro Ugolino por Farnese, as quais havemos de aproveitar adiante, se vê que o núncio comunicou tudo para Roma em carta de 21 de junho.

(730) C. de B. de Faria a elrei de 17 de novembro de 1547, na G. 2, M. 5, N.º 64, no Arqu. Nac.

(731) A narrativa deste e dos subseqüentes §§ é tirada do documento citado na precedente nota, e da carta de D. Fr. Balthasar Limpo a D. João III de 12 de novembro de 1547, que se acha na G. 2, M. 5, N.º 37, no Arqu. Nacional. D. Rodrigo da Cunha, na História Eclesiastica de Braga, P. 2, C. 31, publicou uma carta atribuída a Gaspar Barreiros, de 22 de novembro de 1547, em que se contém uma narrativa dos sucessos ocorridos em Roma nessa conjuntura relativamente ao negócio da Inquisição, que, concordando em grande parte com os documentos que vamos seguindo, se afasta deles em várias circunstâncias. A carta de Barreiros foi comunicada a Cunha por Lousada, que dizia tê-la copiado da Torre do Tombo. O que podemos asseverar é que hoje não se encontra ali tal carta. Não queremos dizer com isto que fosse inventada na sua íntegra por aquele célebre falsário. Entretanto, entendemos que se deve ler com cautela. Nós seguimos as narrativas de Faria e de D. Fr. Balthasar Limpo, porque existem originais, e porque são suficientes para esclarecer os sucessos.

(732) C. de D. Fr. B. Limpo, l. cit.

(733) Ibid.

(734) «E como ele tosquenejava eu me calava, e ele tornava a encomendar-me que fosse avante»: Ibid.

(735) Ibid.

(736) Ibid.

(737) C. de B. de Faria a elrei de 17 de novembro de 1547, l. cit. — C. de D. Fr. B. Limpo cit.

(738) «e porque lhe eu dizia que me queria partir, e eles desejavam muito que eu fosse ao concílio, me disse o cardeal Crescêncio «o papa não quer que vades d’aqui descontente»: Ibid.

(739) «algumas vezes dei a entender ao cardeal Crescêncio e ao cavaleiro Golino, criado de Farnés, que lá vai, que não cuidasse ninguém que se avião dacabar as cousas do cardeal Farnés nos negocios de Viseu com ficarem por acabar as da Inquisição, que eram de Deus e d’ElRei nosso Senhor; e quem lá fosse sem elas irem acabadas, hia gastar dinheiro e tempo em vam»: Ibid.

(740) C. de B. de Faria de 17 de novembro, l. cit.

(741) Três cartas de Margarida d’Austria e dos cardeais Farnese e Santafiore para a rainha D. Catharina trazidas por Ugolino (Coleç. do Sr. Moreira, Quad. 8) são datadas de 24 e 26 de novembro.

(742) Instruzíone per il cavalier Ugolino: Symmicta, vol. 33, fol. 140 e segg. Acha-se uma versão portuguesa desta Instrução na G. 2, M. 3, N.º 41, no Arqu. Nac. É singular que de todos estes diplomas só se encontre na vasta coleção de Bulas e Breves da Torre do Tombo o último, dirigido a elrei: Breve Licet nos de 15 de novembro de 1547 no M 7 de Bul. N.º 3. De certo, era sobretudo aos cristãos-novos que importava promover a expedição daqueles diplomas, e vê-se da Instruzione que Ugolino trazia ordem de os entregar aos chefes da nação, mas é incrível que não fossem transmitidos também a elrei. Quem sabe se esta falta corresponde a algum mistério de iniquidade hoje desconhecido?

(743) Instruzione: Ibid.

(744) A bula orgânica, que começa Meditato cordis, é datada de 16 de julho de 1547 (M. 9 de Bul. N.º 11 e N.º 16, no Arqu. Nac.): a bula Romanus Pontifex, em que se revogam as exempções, ó datada de 15 do mesmo mês (M. 7 de Bul. N.º 21): finalmente o breve Cúm saepiús, anunciando a elrei a remessa da bula Meditatio cordis, é datado de 5 de julho (M. 7 de Bul. N.º 6)

(745) Bula Meditatio cordis, l. cit.

(746) Bula Romanus Pontifex, l. cit.

(747) Breve Cúm saepius, l. cit.

(748) «cosi da voi, quando sarete lá, e dal nunzio e suoi ministri si deve astenere d’accetare um soldo, sendovi offerti in qualche modo: Instruzione, l. cit.

(749) «avvertendo sopro tutto, che siccome per l’assoluzione e venia predetta, per la quale sua santitá altre volte avrebbe possuto cavare bene venti millia ducati, há proibito quà espressamente che non si pigli un quattrino»: Ibid.

(750) «antes quis deixar de repricar naquilo de que sua santidade hade dar conta a Deus. por carreguar somente sobre elle, que dilatar o serviço que a Nosso Senhor se faz com a Inquisição» Minuta da Carta d’elrei a B. de Faria, sem data (primeiros meses de 1548), na G. 2, M. 1, N.º 33, no Arqu. Nac.

(751) Ibid

(752) «dei quali (vescovato e benifizii) é fatta la provisione in persona mia come vacanti certo modo, senza far menzione alcuna del cardinale di Silva, ne di sua resignazione, solo per compiacere a S. A. che l’a cosi desiderato e ricerco»: Instruzione, l. cit.

(753) Ibid. e C. de B. de Faria de 17 de novembro, l. cit. Breve de 15 de julho no M. 7 de Bul. N.º 5, no Arq. Nac.

(754) Minuta da C. a B. de Faria, etc., na G. 2, M. 2, N.º 33.

(755) Vejam-se a este respeito as cartas do bispo do Porto e de Baltazar de Faria de 17 e de 22 de novembro anteriormente citadas.

(756) «e quanto aos socrestados (fructos) asentou-se que, tiradas as despesas, do que ficase levase sua alteza a quarta parte para se despender em obras pias, e as tres partes levase Farnés»: Instruç. ou Memor. na Coleç. de S. Vicente, vol. 3, f. 141, no Arqu. Nac.

(757) Três documentos originais sobre este assunto se acham na Coleção do Sr. Moreira (Quad. 9 in medio). São dous acordos assinados por Ugolino e por Montepoliziano a 24 de março de 1549, contendo o que fica substanciado neste §, e uma declaração de Lucas Geraldo, em que se obriga a pagar as dívidas legalizadas de D. Miguel e a parte que devia ser posta à disposição d’elrei.

(758) Estes algarismos são deduzidos de um cálculo sobre as pensões que pagavam diversos bispados em 1244 (Coleção do Sr Moreira, Quad. 16, in fine); de outro cálculo para estabelecer rendimentos convenientes para os novos bispados que se tratava de criar em 1548, e parte dos quais efetivamente se criaram (Dita Coleção, Quad. 5, 13 e 14, passim); finalmente dos papéis relativos à ereção de Miranda e Leiria, e provimento de Braga, Coimbra, etc. (Dita Coleção, Quad. 18).

(759) Consta isto positivamente da minuta das instruções dadas a Baltazar de Faria em 1548, pare requerer o provimento de vários bispados, anexações, comendas e translações de diversos mosteiros, fixação ou criação de pensões, etc. na Coleção do Sr. Moreira, Quad 17.

(760) Os economistas calculam a diferença do valor da prata (que era a moeda geral) entre as duas épocas, como de um a seis. A do ouro é um pouco menor. A base adotada para estes cálculos é o preço dos cereais. Efetivamente, quando a fome ameaçava Portugal em 1545, e Simão da Veiga foi enviado à Sicília a comprar trigo, fixou-se-lhe o máximo preço deste, posto em Lisboa, em 160 réis por alqueire. Hoje o de 960, seis vezes superior, seria alto, mas não excessivo em circunstâncias idênticas Os papéis relativos a esta missão de S. da Veiga acham-se na Coleção do Sr. Moreira, Quad. 2.

(761) Estes e outros fatos análogos revelam-se incidentemente nas instruções a Baltazar de Faria, sobre o provimento e ereção de vários bispados e anexações de mosteiros em 1548, há pouco citadas.

(762) «depois que o pellaram non se curam mais d’elle que se nunca nacera»: C. de B. de Faria de 17 de novembro de 1547, l. cit.

(763) «Vendose sacudido de cá (da cúria) e em desgraça de vossa alteza, me dizem pessoas que o sabem que chora como menino, falando em Portugal: anda magro, envelhentado, e co a gota que lhe chega já aos hombros»: Ibid.

(764) «porque me pareceo que D. Miguel da Silva me queria falar, me guardei de todolos lugares onde nos podiamos encontrar»: C. de D. Fr. B. Limpo a elrei de 22 de novembro, l. cit

(765) Ibid.

(766) «já que se nam espera remir pera com V. A. ao menos querers’à co isso soster e honrar pera que nam o apicacem mais»: C. de B. de Faria de 17 de novembro, l. cit.

(767) Oleastro, depois de ter voltado do concílio de Trento, foi nomeado inquisidor de Évora em 1552, e transferido para a Inquisição de Lisboa em 1555: Sousa, De Orig. Inquisit., p. 20 e 24.

(768) Negoziato di Monsignore Prospero Santa-Croce, Vescovo di Chisamo in Spagna et in Portogallo: Letera al cardinalle Borromeo 23 maggio 1561: Coleção Geral de Doc. de Roma, vol. 2, f. 372, na Bibliot. da Ajuda.