Insomnia

 

Noute. Da Magua o espirito noctambulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em magua, eu tambem vou passando
Somnambulo... somnambulo... somnambulo...

Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sostenido
Rola impetuosa por meu peito a dentro?!

— Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Subito surge como um catafalco
Uma cidade ao mappa-mundi estranha.

A dispersão dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Martyres da Terra
Desde os Christãos até Giordano Bruno!

Vejo deante de mim Santa Francisca
Que com o cilicio as tentações supplanta
E invejo o soffrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vicio não faisca!

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sahir da vida puro como o arminho
Que os cabellos dos velhos embranquece!

Porque cumpri o universal dictame!?
Pois se eu sabia onde morava o Vicio,
Porque não evitei o precipicio
Estrangulando minha carne infame?!

Até que dia o entoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sahirei desta Sodoma?!

Á proporção que a minha insomnia augmenta
Hieroglyphos e esphinges interrogo.
Mas, triumphalmente, nos ceus altos, logo
Toda a alvorada esplendida se ostenta.

Vagueio pela Noute decahida.
No espaço a luz de Aldebaran e de Argus
Vai projectando sobre os campos largos
O derradeiro phosphoro da Vida.

O Sol, equilibrando-se na esphera,
Restitue-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorphose
Nas minhas arcas cerebraes se opera.

O odor da margarida e da begonia
Subitamente me penetra o olfato.
Aqui, neste silencio e neste matto,
Respira com vontade a alma camponia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
As arvores, as flores, os corimbos.
Recordam santos nos seus proprios nichos.

Com o olhar a verde periphéria abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas arvores, contemplo
As maravilhas reaes do meu Pau d’Arco!

Cedo virá, porém, o funerario,
Atro dragão da escura noute, hedionda,
Em que o Tedio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinario.

Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em magua immerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!

 

Pau d’Arco — 1905.