VIII

A alvorada abrio o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã dissipou os sonhos da noite: e arrancou de sua alma a lembrança do que sonhára. Ficou apenas um vago sentir, como fica na mouta o perfume da cacto que o vento da serra desfolha na madrugada.

Não sabia onde estava.

A sahida do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava n'um tronco aspero do arvoredo; tinha os olhos no chão: o sangue fugira das faces; o coração lhe tremia nos labios, como gota de orvalho nas folhas do bambú.

Não tinha sorrisos, nem cores, a virgem indiana; não tem borbulhas, nem rosas, a acacia que o sol crestou; não tem azul, nem estrellas, a noite que enlutão os ventos.

— As flores da mata já abrirão aos raios sol; as aves ja cantarão: disse o guerreiro. Porque só Iracema curva a fronte e emmudece?

A filha do Pagé estremeceu. Assim estremece a verde palma, quando a haste fragil foi abalada; rorejão do espato as lagrimas da chuva: e os leques cicião brandamente.

— O guerreiro Cauby vai chegar á taba de seus irmãos. O estrangeiro poderá partir com o sol que vem nascendo.

— Iracema quer ver o estrangeiro fora dos campos dos Tabajaras; então a alegria voltará a seu seio.

— A júruty quando a arvore seca abandona o ninho em que nasceu. Nunca mais a alegria voltaár ao seio de Iracema: ella vai ficar, como o tronco nu, sem ramas, nem sombras.

Martim amparou o corpo tremulo da virgem; ella reclinou languida sobre o peito do guerreiro, como o tenro pampano da baunilha que enlaça o rijo galho do anjico.

O mancebo murmurou:

— Tee hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir em tuas faces a flor da alegria e para colher, como a abelha, o mel de teus lábios. Iracema soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristesa:

— Guerreiro branco, Iracema é filha do Pagé, e guarda o segredo da jurema. O guerreiro que possuisse a virgem de Tupan morreria.

— E Iracema?

— Pois que tu morrias!...

Esta palavra foi como um sopro de tormenta. A cabeça do mancebo vergou e pendeu sobre o peito; mas logo se ergueo.

— Os guerreiros de meu sangue trasem a morte consigo, filha dos Tabajaras. Não a temem para si, não a poupão para o ennemigo. Mas nunca fora do combate elles deixarão aberto o camocim da virgem na taba de seu hospede. A verdade fallou pela boca de Iracema. O estrangeiro deve abandonar os campos dos Tabajaras.

— Deve: respondeu a virgem como um echo.

Depois a sua voz suspirou:

— O mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no tronco da guabiroba: tem na doçura o veneno. A virgem dos olhos azues e dos cabellos do sol guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o mel da assucena. Martim affastou-se rápido, mas voltou, mas lentamente. A palavra tremia em seu labio:

— O estrangeiro partirá para que o socego volte ao seio da virgem.

— Tu levas a luz dos olhos de Iracema, e a flor de sua alma.

Reboa longe na selva um clamor estranho. Os olhos do mancebo alongão-se.

—E' o grito de alegria do guerreiro Cauby: disse a virgem. O irmão de Iracema annuncia sua boa chegada aos campos dos Tabajaras.

— Filha de Arakem, guia teu hóspede á cabana. E' tempo de partir.

Elles caminharão par á par como dois jovens cervos que ao por do sol atravessão a capoeira recolhendo ao aprisco de onde lhes traz a brisa um faro suspeito.

Quando passavão perto dos joazeiros, virão que passava alem o guerreiro Cauby, vergando os hombros robustos ao peso da caça. Iracema caminhou para elle.

O estrangeiro entrou só na cabana.

Pag. 32.—I.Camocim—Vaso onde encerravão os indigenas os corpos dos mortos e lhes servia de tumulo; outros dizem camotim, e talvez com melhor orthographia, porque se não me engano, o nome é corrupção da frase co buraco, ambyra defuncto, anhotim enterrar—buraco para enterrar o defuncto: c´ am´ otim. O nome dava-se tambem á qualquer pote.

II.Guabiroba.—Deve ler-se Andiroba. Arvore que dá um azeite amargo.

III. Cabellos do sol—em tupy guaraciaba. Assim chamavão os europeus que tinhão os cabelos louros.