XIII

Avança a filha de Araken nas trevas; pára e escuta.

O grito da gaivota terceira vez resoa ao seu ouvido; ella vai direito ao lugar d'onde partio; chega á borda de um tanque; seu olhar investiga a escuridão, e nada vê do que busca.

A voz maviosa, debil como susurro de colibri, resoa no silencio:

— Guerreiro Poty, teu irmão branco te chama pela boca de Iracema.

Só o éco respondeu-lhe.

— A filha de teus ennemigos vem a ti, porque o estrangeiro te ama, e ella ama o estrangeiro.

A lisa face do lago fendeu-se; e um vulto se mostra, que nada para a margem, e surge fóra.

— Foi Martim, quem te mandou, pois tu sabes o nome de Poty, seu irmão na guerra.

— Falla, chefe Pytiguara; o guerreiro branco espera.

— Torna á elle e diz que Poty é chegado para o salvar.

— Elle sabe; mandou-me á ti para ouvir.

— As fallas de Poty sahirão de sua boca para o ouvido de seu irmão.

— Espera então que Araken parta e a cabana fique deserta; eu te guiarei a presença do estrangeiro.

— Nunca, filha dos Tabajaras, um guerreiro Pytiguara passou a soleira da cabana ennemiga, si não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do mar.

— A vingança de Irapuam fareja em roda da cabana de Araken. Trouxe o irmão do estrangeiro bastantes guerreiros Pytiguaras para o deffender e salvar?

Poty reflectio:

— Conta, virgem das serras, o que aconteceu em teus campos depois que a elles chegou o guerreiro do mar.

Iracema referio como a cholera de Irapuam se havia assanhado contra o estrangeiro, até que a voz de Tupan, chamada pelo Pagé, tinha pasiguado seu furor:

— A raiva de Irapuam é como a andira: foge da luz e voa na treva.

A mão de Poty cerrou subito os labios da virgem; sua falla parecia um sopro:

— Suspende a voz e o respiro, virgem das florestas; o ouvido ennemigo escuta na sombra.

As folhas crepitavão de manso, como si por ellas passasse a fragueira nambú. O rumor partido da orla da mata, vinha discorrendo pelo valle.

O valente Poty, resvallando pela relva, como o ligeiro camarão, de que elle tomara o nome e a vivesa, desappareceu no lago profundo. A agua não soltou um murmurio, e cerrou sobre elle sua limpida onda.

Iracema voltou á cabana; em meio do caminho perceberão seus olhos as sombras de muitos guerreiros que rojavão pelo chão como a intanha.

Araken vendo-a entrar, partio.

A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poty; o guerreiro christão ergueu-se de de um impeto para correr a defesa de seu irmão Pytiguara. Cingio-lhe, o collo Iracema com os lindos braços:

— O chefe não carece de ti: elle é filho das aguas; as aguas o protegem. Mais tarde o estrangeiro ouvirá em seus ouvidos as fallas das amigas.

— Iracema, é tempo que teu hospede deixe a cabana do Pagé e os campos dos Tabajaras. Elle não tem medo dos guerreiros de Irapuam: tem medo dos ollios da virgem de Tupan.

— Elles fugirão de ti.

— Fuja delles o estrangeiro, como o oitibó da estrela da manhã.

Martim promoveu o passo.

— Vae, guerreiro ingrato; vae matar teu irmão primeiro, depois a ti. Iracema te seguirá até aos campos alegres onde vão as sombras dos que forão.

— Matar meu irmão, dizes tu, virgem cruel?

— Teu rasto guiará o ennemigo aonde elle se occulta.

O christão estacou em meio da cabana; e ali permaneceu mudo e quedo. Iracema, receiosa de fita-lo, punha os olhos na sombra do guerreiro, que a chamma do fogo projectava na vetusta parede da cabana.

O cão felpudo, deitado no borralho, deu sinal de que aproximava gente amiga. A porta entretecida dos talos da carnaúba foi aberta por fóra. Cauby entrou.

— O cauim perturbou o espirito dos guerreiros; elles vem contra o estrangeiro.

A virgem ergueu-se de um impeto:

— Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupan, para que ela esconda o estrangeiro.

O guerreiro tabajara, sopesando a laje enorme, emborcou-a no chão.

— Filho de Araken, deita na porta da cabana, e mais nunca te levantes da terra, si um guerreiro passar por cima de teu corpo.

Cauby obedeceu; a virgem cerrou a porta.

Decorreu breve tracto. Resoa perto o estrupido dos guerreiros; travão-se as vozes iradas de Irapuam e Cauby.

— Elles vêm; mas Tupan salvará seu hospede.

Nesse instante, como si o Deus do Trovão ouvisse as palavras de sua virgem, o antro mudo em princípio retroou surdamente.

— Ouve! E' a voz de Tupan. Iracema cerra a mão do guerreiro, e o leva á borda do antro. Somem-se ambos nas entranhas da terra.