Era uma vez uma viuva com um filho unico. Ao cabo d'um inverno rigoroso, possuia apenas um gallo, e meio alqueire de farinha. João resolveu-se a correr mundo, á busca de fortuna. A mãe coseu o resto da farinha, matou o gallo, e disse-lhe:
«O que é que preferes: metade d'esta merenda com a minha benção, ou toda com a minha maldição?»
«Que pergunta! respondeu o pequeno. Nem por quantos thesouros ha no mundo eu quereria a tua maldição.»
«Bem, meu filho, replicou a mãe carinhosamente. Leva tudo, e Deus te abençôe.»
E partiu. Foi andando, andando, até que encontrou um jumento, que tinha caido n'um atoleiro, d'onde não podia sair.
«Oh! João, exclamou o burro, tira-me d'aqui, que estou quasi a afogar-me.»
«Espera, respondeu João.»
E, formando uma ponte com pedras e ramos d'arvores, conseguiu tirar o quadrúpede do atoleiro.
«Obrigado, disse-lhe elle, aproximando-se de João. Se te posso ser util, aqui me tens ao teu dispor. Aonde vaes tu?»
— «Vou por esse mundo fóra, a ver se ganho a minha vida.»
«Queres tu que eu te acompanhe?
«Anda d'ahi.»
E puzeram-se a caminho.
Ao passarem por uma aldeia, viram um cão perseguido pelos rapazes da eschola, que lhe tinham atado ao rabo uma chocolateira velha. O pobre animal correu para João que o acariciou, e o jumento poz-se a ornear de tal maneira, que os rapazes com o medo deitaram todos a fugir.
«Obrigado, disse o rafeiro a João. Se para alguma cousa te for prestavel, aqui me tens ás tuas ordens. Aonde vaes tu?»
«Vou por esse mundo de Christo, a ver se ganho a minha vida.»
«Queres que te acompanhe?»
«Anda d'ahi.»
Quando sairam da aldeia pararam junto d'uma fonte. O pequeno tirou a merenda do alforge, e repartiu-a com o cão. O burro pastou alguma erva que por ali havia. Emquanto jantavam, appareceu um gato esfaimado a miar lastimosamente.
Coitado, exclamou João!» E deu-lhe uma asa do frango.
— «Obrigado disse o gato. Oxalá que um dia eu te possa ser util. Aonde vaes tu?
— «Procurar trabalho. Se queres, anda comnosco.»
— De boa vontade.
Os quatro viajantes puzeram-se a caminho. Ao cahir da tarde, ouviram um grito dilacerante, e viram uma raposa correndo a toda a brida com um gallo na bocca.
«Agarra! agarra!» bradou o pequeno ao cão.
E no mesmo instante o cão atirou-se atraz da rapoza, que, vendo-se em perigo, largou o gallo para correr melhor. O gallo saltando de contente disse a João:
— «Obrigado. Salvas-te-me a vida. Nunca me esquecerei. Aonde vaes tu?»
— Arranjar trabalho. Queres vir comnosco?
— «De boa vontade.»
— Então anda. Se te cançares, empoleira-te no jumento.»
Os viajantes contínuaram a jornada com o seu novo companheiro. Sentiram-se todos fatigados e não avistavam á roda nem uma quinta, nem uma cabana.
— «Paciencia, disse João, outra vez seremos mais felizes. Resignemo-nos hoje a dormir ao ar livre; além d'isso a noite está socegada, e a relva é macia.»
Dito isto estendeu-se no chão; o jumento deitou-se ao lado d'elle, o cão e o gato aninharam-se entre as pernas do burro complacente, e o gallo empoleirou-se n'uma arvore.
Dormiam todos um somno profundissimo, quando de repente o gallo começou a cantar.
— «Que demonio! disse o jumento accordando todo zangado. Porque é que estás a gritar?»
— «Porque já é dia, respondeu o gallo. Não vês ao longe a luz da madrugada, que vem rompendo?»
— «Vejo uma luz, disse João, mas não é do sol, é d'uma lanterna. Provavelmente ha ali alguma casa, onde nos poderiamos recolher o resto da noite.»
Foi acceita a proposta. Partiu a caravana; foi andando, andando, atravez dos campos, até que parou junto da casa do guarda d'um grande castelo, d'onde subiam gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasphemias horriveis.
— Escutem, disse João; vamos devagarinho, muito devagarinho, a ver quem é que está lá dentro.»
Eram seis ladrões armados de pistolas e de punhaes, que se banqueteavam alegremente, sentados a uma mesa principesca.
— «Que bom assalto acabámos de dar, disse um d'elles, ao castello do conde, graças ao auxilio do seu porteiro. Que bom homem que é este porteiro. Á sua saude!»
— «Á saúde do nosso amigo!» repetiram em coro todos os ladrões.
E d'um trago despejaram os copos.
João voltou-se para os companheiros, e disse-lhes em voz baixa:
— «Uni-vos uns aos outros o melhor que puderdes, e, assim que vos der signal, rompei todos ao mesmo tempo n'uma gritaria diabolica.»
O burro, levantando-se nas patas trazeiras, lançou as mãos ao peitoril d'uma janella, o cão trepou-lhe á cabeça, o gato á cabeça do cão e o gallo á cabeça do gato. João deu o signal, e estoirou á uma o ornear do jumento, os latidos do cão, o miar do gato e os gritos estridentes do gallo.
— «Agora, bradou João, fingindo que commandava um destacamento, carregar armas! Dae-me cabo dos ladrões; fogo!»
No mesmo instante o jumento quebrou a janella com as patas, zurrando cada vez mais; os ladrões atemorisados refugiaram-se no bosque, saindo precipitadamente por uma porta falsa.
João e os seus companheiros penetraram na salla abandonada, comeram um excellente jantar, e deitaram-se em seguida — João n'uma cama, o burro na cavallariça, o cão n'uma esteira ao pé da porta, o gato junto do fogão e o gallo n'um poleiro.
Ao principio os ladrões ficaram muito contentes, por se verem sãos e salvos na floresta. Mas depois, começaram a reflectir.
— «Era bem melhor a minha cama, do que esta erva tão humida, disse um d'elles.»
— «Tenho pena do frango que eu começava a saborear, disse um outro.»
— «E que rico vinho aquelle! accrescentou o terceiro.»
— «E o que é mais lamentavel, exclamou um quarto, é ficar-nos lá todo o dinheiro, que, com a ajuda do criado do conde, tinhamos tirado das gavetas.»
— Vou ver se torno lá a entrar? disse o capitão.
— Bravo! exclamaram os ladrões.
E poz-se a caminho.
Já não havia luz na casa; o capitão entrou ás apalpadellas, e dirigiu-se para o fogão; o gato saltou-lhe á cara e esfarrapou-lh'a com as garras.
Soltou um grito doloroso, correu para a porta, mas infelizmente pisou o rabo do cão, que lhe deu uma grande dentada. Gritou de novo, e conseguiu por fim transpor o limiar da porta. Mas quando ia a sair, o gallo atirou-se a elle, rasgando-o com o bico e com as unhas.
— Anda o diabo n'esta casa! exclamou o capitão, como poderei eu sair!»
Julgou encontrar refugio na estrebaria; mas o burro atirou-lhe uma parelha de coices, que o deitou quasi morto ao meio do chão.
Passado algum tempo veiu a si; apalpou o corpo, viu que não tinha nem pernas nem braços partidos, ergueu-se e tornou para a floresta.
— Então? então? — perguntaram-lhe os camaradas assim que o viram.
— Nada feito, exclamou elle. Mas antes de tudo arrangem-me uma cama para me deitar e cataplasmas de linhaça para pôr n'este corpo, que o trago n'um feixe. Não podeis imaginar o que soffri. Na cosinha fui assaltado por uma velha que estava a cardar lã, e arrumou-me na cara com o cedeiro, deixando-me n'este miseravel estado. Quando ia a sair a porta, um demonio d'um remendão atravessou-me as pernas com a sovella. Logo depois Satanaz em pessoa atirou-se a mim, despedaçando-me com as garras. Na estrebaria deram-me uma paulada que me ia matando. Se vocês me não acreditam, vão lá, e experimentem.»
— Acreditamos, disseram os companheiros, vendo-lhe a cara e o corpo todo ensanguentado: Não seremos nós que lá tornaremos.»
Pela manhã, João e os seus camaradas almoçaram ainda excellentemente, e partiram em seguida para restituir ao conde o dinheiro que os ladrões lhe tinham roubado. Metteram-n'o cuidadosamente dentro de dois saccos, com que carregou o jumento. Foram andando, andando, até que chegaram á porta do castello. Diante d'essa porta estava o malvado do porteiro, com uma libré esplendida, meias de seda, calções escarlates e cabello empoado.
Olhou com ar de desprezo para a pequenina caravana, e disse a João.
— Que vindes aqui buscar? Não ha lugar para os recolher, vão-se embora?»
— Não queremos nada de ti, respondeu João. O dono do castello far-nos-ha um bom acolhimento.
— Fóra d'aqui vagabundos, exclamou o porteiro enfurecido. Ponham-se a andar immediatamente, quando não atiro-lhes já ás pernas os meus cães de fila.»
— Perdão, só um instante, replicou o gallo empoleirado na cabeça do jumento; não me poderias dizer quem é que abriu aos ladrões na noite passada a porta do castello?»
O porteiro córou. O conde que estava á janella, disse-lhe:
— Ó Bernabé, responde ao que esse gallo te acaba de perguntar.
— Senhor, replicou Bernabé, este gallo é um miseravel. Não fui eu que abri a porta aos seis ladrões.
— Como é então, meu velhaco, tornou o conde, que tu sabes que eram seis?
Seja como for, disse João, aqui lhe trazemos o dinheiro roubado, pedindo-lhe unicamente que nos dê de jantar e nos recolha esta noite, porque vimos cançados do caminho.
— Ficae certos que sereis bem tratados.
O burro, o cão e o gallo, levaram-n'os para a quinta. O gato ficou na cosinha. E emquanto a João, o conde reconhecido, vestiu-o dos pés á cabeça com um vestuario magnifico, deu-lhe um relogio d'ouro, e disse-lhe:
— Queres ficar comigo? És esperto e honrado, serás o meu intendente.»
João acceitou a proposta, e mandou vir a sua velha mãe para o pé de si. Casou depois com uma linda rapariga, e viveu sempre felicissimo.