CARTA VII

 
A história. — O romance.—O teatro.—Garrett, e Emilia.
 

Sapientissimo mestre.—Já comprehendêste que a poesia da decadência, em Portugal, tinha alguma coisa de planta exótica, transplantada para vaso camareiro, em hôrto de tasca.

Pois as letras de outros gêneros, a não sêrem as do câmbio, não eram melhór tratadas.

A história, ou não existia, ou, para têr leitôres, dilluía-se em contos de fadas, com que se embalavam as crianças e se acalentava o patriotismo dos velhos. Quando um investigador sisudo, Herculano, se lembrou de fazêr história a sério, parou a meio da emprêsa, porque viu que estava em terra de gétas e que os portuguêses preferiam á historia o conto.

E tão preferido era êste, que quási tôdos os literatos faziam profissão de contistas ou romancistas.

Segundo as diversas influências do tempo, o romance variou de escolas e processos. Um dia, era a Menina e Moça, levada de casa de seus pais, e baldadamente procurada em montes e valles pelo seu pastor afflito e amante; de outra vez era o Feliz independente do mundo e da fortuna, gisando filosofias á láia de Horácio...

 

Felix ille qui, procul negotiis,
Ut prisca gens mortalium,
Paterna rura bobus exercet suis,
Solutus omni foenore.

 

Aqui, era a Filha do brasileiro, golfando o sangue dos pulmões sobre illusões perdidas; cheia de incomprehendidas amargaras; rasgada pelos espinhos da saudade, e obrigando a lágrimas as meninas sentimentais e as viuvas novas; ali eram as Scenas de hóje, em que o autôr, dispensando-se de estudar a sociedade no seu conjunto moral e social, e sem se preoccupar da bellêza real, nem ainda da bellêza ideal apostolada pela filosofia da arte, devassava os monturos e os hospitais de leprosos, para só registar o asqueroso e o ignóbil, brindando a prevertida sensibilidade do público com o desenho grotesco das mais tôrpes e hediondas aberrações da Vida.

Segundo se deprehende da collecção da Revista Nêgra, redigida pelo crítico Sampaio Pires, que morreu em 1925 ou 1926, os quadros dissolventes do romance predilecto, para que melhór atraíssem a attenção e a leitura do mundo feminino, vulgarizavam-se em luxuosas edições, acompanhadas de estampas d՚aprés nature, e adornadas, em lêtras versais, com o título geral de Leitura para homens, Biblioteca secreta, etc.; e o Estado, pela sua indifferença ou tácita aprovação, protegia essa indústria, que se lhe recommendava por sêr verdadeiramente nacional.

Infere-se da citada revista que a dissolução literária, lisongeando a dissolução social, não se restringia ao romance, e reflectia-se no teatro e no jornalismo; e conta Sampaio Pires que o mais aplaudido dramaturgo, nos princípios do século XX, era Bernardo Supino. Este autôr não se limitava, como os seus antecessores do século XIX, a descrevêr os escândalos picantes, reais ou imaginários, de uma sociedade decadente, e a disfarçar mal a obscenidade soêz com um trocadilho de mau gosto ou com uma frase cheia de reticências. Bernardo Supino ia mais longe: alarvemente convencido de que a literatura deve correspondêr ao meio social, levou para o palco, dando-lhes o tom das mais cruas realidades, as agências de Vênus; o commércio das rameiras; incestos aristocráticos, extraídos da crónica das classes mais elevadas; estupros inacreditáveis, fielmente transladados da vida prática dos burguêses e peões; maridos filósofos. que apreciavam a consorte, na proporção dos lucros que ella auferia das suas aventuras galantes.

Dentre as comédias de Bernardo Supino, cita a Revista Nêgra uma, que têve extraordinário êxito, representando-se quinhentas vêzes successivamente, e que enriqueceu a empresa do Teatro Aéreo, construído, segundo parece, a meio de um grande viaducto que passava sõbre a Avenida da Liberdade. Chamava se a comédia o Nôvo Paraíso; e o protagonista, Adão Júnior, fielmente caracterizado á similhança do Adão Sênior da lenda biblica, exibia-se em scena, muito naturalmente, sem peccados, sem fôlha de parra, sem nada. A ingênua, Eva Lusa, trajava unicamente a sua longa trança flutuante, e demonstrava, com a mais atraente convicção, que o fruto prohibido não passava de uma lenda. O scenário do último acto representava uma alcôva, em que os habitantes do paraíso devassavam ardentemente os mistérios da criação.

E o Padre Eterno, representado por um administradôr de bairro, trêmulo de solenidade, abençoava o novo tronco de nova progênie, deixando escoar dos cílios uma lágrima eloquente de ternura paradisíaca.

E o entusiasmo apossava-se dos espectadôres. Os velhos choravam de alegria agitavam-se febrilmente nas cadeiras, e distendiam as pupillas incendidas, para vêr, vêr muito, vêr tudo. As meninas consultavam as mamans e absorviam-se em profundas meditações, em planos de uma ventura desmedida. E os novos irrompiam em aplausos delirantes, arremessavam á alcôva luvas, chapéus e binóculos, e arremessavam-se depois êlles próprios, abraçando doidamente os protagonistas, na maior das confusões, num pele-mele infernal, em que já ninguém distinguia Adão e tôdos distinguiam Eva. A ovação convertia-se numa luta, o pano caía, a luz afroixava, e os espectadôres resignavam-se a deixar por 24 horas as cadeiras do teatro, e iam dessendentar-se nas próximas locandas.

O público fizera o teatro, e o teatro satisfazia o público.

Os moralistas caturras, os Larragas de tôdos os tempos, prégavam furiosamente contra a desmoralização dramática, e, á noite, por distracção, iam vêr o Paraíso no Teatro Aéreo.

As autoridades, desde a polícia até ao prefeito da cidade, assistiam ao espectáculo e não tinham observações que fizessem.

Os governos, fieis mantenedôres da purêza dos costumes, sustentavam um teatro-modêlo, destinado a fomentar a boa literatura nacional e a educação pelo drama; mas as emprêsas não se inventaram para fomentar o interesse alheio, e muito menos os interesses morais de uma sociedade qualquer; donde se conclue que avisadamente andaram as emprêsas, que preferiam, por economia, as peças estrangeiras, e se dispensavam de estimular a literatura do país.

Entretanto, o teatro-modêlo tinha a coragem de se desviar um pouco da escóla do tempo, mas a coragem obrigou-o a re-considerações, porque os dramas e as chamadas comédias de sala faziam-lhe adormecêr os espectadôres nas bancadas, e estêve a ponto de ser abandonado, se não entrasse na esteira dos confrades, dando larga extracção ao gênero burlesco das revistas do anno e á literatura picante das comédias. bocacianas, ou das operêtas hispanholas.

E foi isso o que salvou a emprêsa, mas não salvou a arte. A arte resvalou pelo pendôr enlameado das scenas eróticas; e os bustos de Garrett e Emilia, — dois nomes gloriosos na história do teatro,—descobri-os hontem, cobertos de pó e de vergonha, de invôlta com fragmentos de loiça e de estatuêtas, no sitio onde existiu um mercado originalíssimo, a Feira da Ladra.

As minhas explorações concentram-se agora nêste mercado, e dar-te-ei conta do que mais importante se me deparar ali.

Abraço-te com effusão.

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