Sertão (Coelho Neto, 1926)/Mandoví

Feita a última parada, Mandovi, atirando um murro à mesa, levantou-se, deu um safanão às calças, passou a mão pela barba e, com a sua voz retumbante, despediu-se:

– Adeu, gente.

Alentado caboclo de peito largo, com uma barba crespa, negra e densa que lhe dava ao rosto expressão feroz, gozava fama de valente e ninguém ousava enfrentar com ele porque o seu pulso era uma barra e, como tinha oração, não havia bala que lhe entrasse no corpo.

– Quê, Mandovi! ocê vai memo?

– Cumo não?

Estavam na sala dos fundos da venda de Manoel Monte, um destemido jogador de faca que, segundo se dizia à boca pequena, arranjara a vida no caminho esfaqueando um mascate italiano que descia para cidade, depois das festas do Natal, com a bolsa de couro de anta atochada de prata.

A parceirada moveu-se. Eram seis vaqueiros da redondeza, que jogavam enquanto o gado dormia nos campos frescos, à luz quieta dos astros, em torno dos ranchos. O vendeiro, gordo, duma cor arroxeada, em mangas de camisa, o cachimbo nos beiços, dava as cartas e cada um dos parceiros tinha à mão um copo de aguardente. De quando em quando um deles pigarreava, cuspia de esguicho por entre dentes e, arrebitando o beiço, sorvia um trago com um eêh! prolongado, cravando logo os cotovelos na mesa sórdida e fincando os olhos agudos no baralho seboso. Um lampião de querosene alumiava escassamente o interior e, como cada um dos homens havia levado o seu cão, os animais dormiam estirados por baixo da mesa ou pelos cantos e, de vez em vez, ouvia-se um toc-toc ou o rosnado preguiçoso de algum que só espreguiçava. Manuel Monte, enquanto dava as cartas, levantou os olhos miúdos para Mandovi e disse sorrindo maliciosamente:

– Ocê vai mas é pro rancho do Casimiro, cabra. Proveita, proveita enquanto o bicho anda longe.

Houve uma gargalhada estrondosa e todos os vaqueiros olharam para o caboclo que acendia o cachimbo vagarosamente.

– É, ocês pensa que a gente não tem mais que fazer senão andar atraz do cheiro de saia, cumo cachorro no rasto de cutia. Aminhã, cedinho, se Deus quiser, tô no Cabuçu vendo umas rês nova...

– Proveita, rapaz! disseram ainda.

E Manezinho, batendo na mesa, chamou a atenção da parceirada: estavam duas cartas voltadas – uma dama e um seis de ouros.

– Bota na dama, Manezinho! – bradou um negro estabanado batendo na mesa com o chapéu de couro.

– Quanto?

– Bota um, home.

Mandovi, interessando-se pelo jogo, deteve-se firmado ao cajado e, de pé, dominando com a sua altura todos os jogadores, que iam cercando as cartas, exclamou de repente num berro:

– Espera! não tira, Manezinho. Diabo de carta, veio aí só pra mexer comigo. Não tira Manezinho. Meteu a mão no bolso, tirou uma moeda e, passando o braço por entre dois vaqueiros, deu com ela na mesa escondendo-a debaixo da mão espalmada. Tira agora e firme! Vai tudo isso no seisão!

Um dos vaqueiros mirou-o sorrindo:

– Ocê não pôde mais, hein, véio?

Os outros, imóveis, com os olhos nas cartas, tiravam fumaradas dos cachimbos e o ar morno, denso, enevoado de fumo, tornava-se irrespirável. Fora os sapos coaxavam sem descontinuar. Manezinho, sem levantar a cabeça, esperava até que o negro, coçando, com fúria, a carapinha, bradou:

– Faz isso duma vez, Manezinho.

O vendeiro pôs-se a atirar as cartas, num grande silêncio. De repente, porém, endireitou-se correndo um olhar rápido pela mesa; o negro bramiu afundando, com uma punhada, a copa do chapéu de couro:

– Eh! lá em casa... que sorte! e atirou com a língua no céu da boca.

– Aí, seisão onça! exclamou Mandovi triunfante. É carta de fiança memo!

E retirando, com desempeno, a mão de cima da moeda, deu outro safanão às calças. Olharam todos para a parada e houve pasmo.

– Eh ! cabra... dois, hein ?

– Antonce? a gente honra a sua carta.

– Dois? perguntou o vendeiro com os olhos piscos.

– Apois?! Dinheiro não tá luzindo aí, Manezinho? Ocê não tá vendo? Passa o cobre dobrado e deixa de mamparreio.

O vendeiro afastou-se da mesa derreando a cadeira, puxou a gaveta e, tomando dois patacões, entregou-os a Mandovi.

– Tá, de sorte. Fica mais um bocado, rapaz.

– Quá nada! Ocê o que quer é raspar o cobre outra vez. Comigo não! e daqui no Serrinho é obra!

– Ocê vai tanto pro Serrinho cumo eu.

– Não vou? ocê sabe? pois mió. Dá cá mais uma derrubada aí mode o frio, gente. Um dos vaqueiros passou-lhe o copo e Mandovi bebeu com gosto, esticando a língua para lamber os bigodes. Té aminhã, gente.

– Adeu!

– Eh! Tigre... levanta. Com a ponta do pé espremeu o ventre de um cão negro que se levantou ligeiro e, rebolindo-se, a acenar com a cauda, pôs-se a mirá-lo rosnando. Bamo! Adeu, gente.

E, da porta, para rir, bradou:

– Dá um tombo nesse queixada comedô, gente.

Fora a noite ia esplêndida, fresca e de lua. A estrada, muito branca, insinuava-se pelo arvoredo e perdia-se nas sombras quietas. O caboclo lançou os olhos ao céu estrelado onde a lua brilhava e, passando o cajado pelas costas, à altura dos ombros, vergou os braços sobre ele deixando as mãos pendentes e pôs-se a caminho, precedido pelo cão que seguia com o focinho baixo, em ziguezagues, a fariscar a erva e o pó.

Era grande o silêncio e as sombras das árvores, que se despejavam sobre a estrada, tornavam-na, por vezes, negra, mas logo adiante, a lua reaparecia alva, alumiando o caminho. Vozes estranhas, longínquas, tomaram-lhe a atenção e ele, que ia pensando em coisas vagas, tão distraído que nem dera pelo cachimbo que se apagara, levantou a cabeça e escutou; eram sapos em uma lagoa.

De vez em quando estalava uma palma seca, uma folha voava para a estrada fechando, na claridade do luar, uma sombra dura, e insetos ziziavam na erva rasteira. Mandovi fez uma volta repentina e olhou para traz como se quisesse ver a venda de Manezinho, já encoberta pelo arvoredo, puxou forte pelo cachimbo e, sentindo-se apagado, tirou o isqueiro e feriu lume. Pôs-se, de novo, a caminho e, para distrair-se, enquanto atravessava aquelas solidões, chamou o cão:

– Eh! Tigre véio, ocê vai vendo o caminho? É esse memo, Tigre véio.

O cão, ouvindo o seu nome, retrocedeu aos saltos, ganindo. Águas rolavam na mata que beirava a estrada com um fresco murmúrio e, pouco adiante, uma velha ponte, feita de grossos troncos, cruzava o córrego fino onde a lua refulgia em soalha de prata. Um bacurau levantou o voo desaparecendo no mato. Mandovi passou, de novo, o pau às costas, derreou a cabeça e, de olhos no céu, cantou baixinho:

No topo daquele monte
Mora a minha ocupação
Por isso ali sobe tanto
Meu travesso coração
........................
Por isso ali sobe tanto
Meu travesso coração...

e continuou assobiando. Calou-se para chupar o cachimbo que se havia apagado de novo, depois, seguindo uma ideia, riu, resmungando:

– Han, diabo de rapariga... Depois a gente faz uma côsa e tá aí... porque andou virando a cabeça da muié dos ôtro, e mais isto e mais aquilo. Por causa disso memo é que acontece tanta desgraça neste mundo de Deus. A gente vai memo e tá aí. Atirou uma cusparada e, sacudindo a cabeça, exclamou: Quá! Casimiro não tá seguro. Aquela roxa é o diabo!

De repente um grito silvou na mata. O cão estacou, de orelhas fitas. Mandovi deteve o andar, olhando. O luar, cada vez mais brilhante, cintilava na água rasa do córrego que seguia a par da estrada. O silêncio era grande, não bolia folha. O cão ladrou para a mata e seguiu farejando a poeira.

Mandovi retomou a cantilena, mas não havia dado seis passos, quando, de novo, ouviu o grito agudo que, dessa vez, parecia dizer o seu nome, como se o chamasse "Mandovi!"

O caboclo sentiu um arrepio de medo e ficou a olhar – tudo era mato e sombra, nem uma luz de rancho, nem um boi perdido no campo. "Mandovi!"

– Eh! Eh! fez o valente. A mode que isso aqui tá assombrado hoje.

Voltou-se alongando o olhar para o caminho que percorrera: sombras moviam-se sinistramente na estrada; ele, porém, habituado àquelas caminhadas noturnas, não se assustou com elas porque bem viu que eram dos galhos das árvores. Mas alguma coisa tolhia-lhe o andar, uma voz interior dizia-lhe que não prosseguisse. Estava ainda tão longe o Serrinho, à uma hora, talvez, e por dentro da mata porque a estrada desviava-se, pouco adiante, para o Cabuçu, em trilho estreito que se metia pela floresta, levando à povoação pobre dos vaqueiros de Santa Iria.

Depois de uma hesitação, o caboclo decidiu-se:

– Quá! Isso é tonteira. Aquele Manezinho é bicho tão escorvado que é até capaz de botar alguma côsa na bebida mode tontear a gente, só pra ganhar na certa. Quem é que há de gritar meu nome a esta hora, neste descampado? Isso é tonteira memo. Passou a mão pelos olhos, e, resoluto, animou o cão: Bamo, Tigre. Então ocê não ouve, véio? Bota a boca nesse diabo que tá aí tomando confiança com a gente. Bota a boca, Tigre.

O cão arremeteu, mas de repente, numa volta súbita, recuou ganindo, de orelhas murchas e, em corrida desabalada, veio atropelar o caboclo, esfregando-se-lhe nas pernas, com um choro covarde. Mandovi, com os cabelos espetados, furioso, atirou um pontapé, que apanhando o cão pela barriga, virou-o na estrada. O animal não fugiu e, apesar de repelido, tornou para junto do senhor de rasto, agachado, com a cauda encolhida.

– Quá! resmungou Mandovi, isso não tá bom, não. Esse caminho tem cosa. Gente não é... cachorro não foge de gente. Isso é cosa... E, parado, com os olhos enormes, o coração batendo precipitadamente, perscrutava as cercanias, quando, de novo, ouviu o grito agudo "Ma...andovi!" Estremeceu tão violentamente que o cajado quase lhe escapou da mão. "Nossa Senhora!" persignou-se e ficou preso à terra, agarrado ao solo como aquelas árvores frondosas que pareciam esconder o assombro.

Uma lembrança sinistra aumentou-lhe o pavor: "Eh! quem fala verdade é Jirimia..." Meteu a mão no bolso e, convencendo-se de que tinha o seu isqueiro, tranquilizou-se. "Ainda se for só mode pedir fogo... E a gente que não acredite..." Levantou os olhos – uma estrela cadente rastejou o espaço iluminado. "Deus te guie..."

"Mandovi!" E, logo depois desse grito lamentoso, que parecia desferido por alguém que sofria, numa barranca escalvada, sem árvores, sem ervas, um vulto, mais branco do que o branco luar, hirto, abrindo sobre o fundo espaço compridos braços duramente esticados, como uma fina túnica flutuante, balouçava-se molemente, aereamente, em lento vai-e-vem, da barranca às frondes do arvoredo, das frondes à barranca. O caboclo abriu muito os olhos num espanto mudo e tolhido, sem poder tirar-se da posição em que ficara. Olhava, quando, na mata, estridente gargalhada retalhou o silêncio. Voltou-se bruscamente e, olhando, nada viu senão as árvores mudas e o mudo caminho. O cão já ali não estava, havia desaparecido. Reuniu todas as forças e bradou por ele:

– Tigre! Eôôôôh! Tigre!

Uma sombra, fugindo entre a folhagem, partiu de arremetida estrada fora, perdendo-se em uma nuvem de poeira. De novo o silêncio saiu.

Só, na solidão terrível, ao lívido luar, diante daquele estranho vulto que se balouçava sobre o caminho, o caboclo sentia as pernas enfraquecerem, respirava a custo, como se lhe comprimissem o peito.

Lentamente, cautelosamente, sem tirar os olhos da aparição, passou a mão incerta pela cinta e o cajado, esquecido, caiu no pó com um baque balofo.

Estremeceu, mas já estava com a garrucha em punho – engatilhou-a e, levantando-a à altura dos olhos, fez fogo; o gatilho bateu frouxo.

– Cruz! esconjurou o assombrado, descarregando o outro cano.

Um grande estrondo abalou o silêncio rolando trovejantemente, até que, no fundo bosque, outro tiro troou como em resposta, mas o vulto continuou no seu mole e flácido balanço aéreo, com os longos braços magros abertos sobre o fundo espaço.

"Mandovi! Mandovi!"

– Mandovi... pois sim, cosa ruim... Só se não há aí Nossa Senhora.

Abriu, com os dedos crispados, o peito da camisa, e com um safanão, arrancou duma fita que trazia ao pescoço um breve de couro e, fechando-o com força na mão, ameaçou com ele o vulto balouçante:

– Só se Nossa Senhora não tá aqui. Te esconjuro!

E, aos recuansos, tornou pelo caminho que fizera afoitamente e logo que, numa volta da estrada, perdeu de vista o vulto, deitou a correr desatinado.

A poeira adormecida levantava-se em nuvens sob os seus pés ligeiros e, na corrida, como se alguém o acompanhasse, com zombaria, por vezes, um grito ressoava-lhe aos ouvidos.

Justamente quando ia atravessando a ponte, pareceu-lhe ver o mesmo vulto branco trepado num tronco, com os longos braços lívidos e secos abertos sobre o fundo espaço. Estacou esbaforido, arquejando e, com uma voz sumida, esconjurou de novo:

– Por Nossa Senhora da Conceição, demônio! sai da minha frente!

E, de olhos fechados, para não ver o horror, atirou-se de arranco, galgando a passagem. Ia já pelas alturas do pasto, todo branco, como um mar de leite, quando ouviu vozes e latidos. Deteve-se e, como havia um cavado na barranca, sentou-se cansado, ofegante, com o suor a escorrer-lhe pelo corpo:

– Por Deus Nossinhô! nunca vi uma cosa ansim. Jirimia tem razão... E a gente que tomava pagode com ele.

Instintivamente voltou os olhos para a estrada, como se ainda quisesse ver a aparição e, olhando, ali ficou, esquecido e mole, vergado de fadiga, a raspar a fronte, de quando em quando, com o polegar, para escorrer o suor que caía na terra em fio. Justamente defronte do ponto em que havia parado começava uma picada, e longe, perdida entre árvores, num fundo negro, uma luzinha brilhava. Já as vozes vinham perto, em algazarra; cães apareceram correndo, abocanhando-se, mas sentindo-o ali e desconhecendo-o, acuaram ladrando.

– Eh! cala a boca, porcaria! intimou o caboclo e os animais, reconhecendo-o, abanando a cauda, cercaram-no festejando-o. Estava ele a afagar a canzoada quando os vaqueiros apareceram na volta do caminho. O negro vociferava atirando murros no espaço, quando um do grupo descobriu Mandovi.

– Eh! home, que é isso? Ocê aqui?

Todos romperam a rir.

– Ahn! muié é o diabo!

– Óia só, bradou o negro mostrando a luzinha ao longe. E diche que ia pro Serrinho. Essa aqui se não é a picada do rancho do Casimiro eu não quero me chamar Simeão. Eh! cabra onça! Tá de guarda no toco. Coitada de nhá Nica!

Mandovi ia responder, mas para que o não tomassem por medroso, porque teria de justificar com a verdade a sua presença naquele ponto, levantou a cabeça e, ainda com a voz cansada, perguntou amuado:

– E isso é da conta de ocê, Simeão?

– Uai! a gente tá brincando, Mandovi; não precisa zangar mode muié. Mas ninguém gosta de passar por tolo. Que ocê foi isso...tem paciência, compade.

Os vaqueiros afirmaram rindo:

– Eh! como não? ...

Animado com a presença dos companheiros, o caboclo levantou-se, acendeu o cachimbo e, sem dar mais atenção ao negro, que continuava a tagarelar, perguntou:

– Ocês vai pro Serrinho?

– Cumo não? a gente não tem rancho pra ficar.

– Rancho só? e aquela cara de roxinha que até faz tonteira quando a gente oia pra ela...?

– Tá bom, gente, deixa de brincadêra. Casimiro é companhero e isso pode chegar aos ovido dele. Bamo acabar com essa caçoada.

Seguiram discutindo as espertezas de Manezinho e iam pelas alturas da ponte quando Mandovi ouviu o grito na mata. Estremeceu, mas fingindo calma, perguntou:

– Que é isso que tá gritando ansim, gente?

– Antonce ocê não sabe? ocê não conhece saci?

E um dos vaqueiros, para rir, respondeu à ave sinistra.

– Dêxa disso, Amaro. Não brinca com essas cosa, não, disse o negro.

– Ocê tem medo? e estalou com a língua. Ele que venha cá.

– Não fala ansim, Amaro. A gente com um home pega memo, mas com essas cosa do mato, que ninguém sabe que é, não é bom brincar.

E longe, no denso arvoredo, a ave gritou de novo. Quando chegaram à altura da barranca, Mandovi, erguendo os olhos, aterrado, deu com o vulto balouçando-se, e, involuntariamente, deteve-se.

– Que é isso, Mandovi? Que é que ocê viu que tá assim sarapantado?

– Aquilo ali na barroca.

– Onde?

– Oia, ali aquela cosa branca, mexendo...

– Ó home, aquilo é uma fôia véia de parmeira que dispencô. E o negro, voltando-se para Amaro, responsabilizou-o: Tá vendo? ocê começa a dizer bobage e Mandovi memo tá aí espantado. Deixa dessa graça, rapaz. A gente não sabe isso que é pra que há de andar bulindo? Não faz isso não, Amaro. Óia Jirimia... tanto fez, tanto fez... Era outro que, por causa de rabo de saia, botava o pé no caminho e nem que visse o diabo havia de passar memo. Não tá aí bobeando? Não faz isso não, Amaro.

Passavam justamente no sítio assombrado e Mandovi convenceu-se do que dissera o Amaro vendo a palma a balouçar-se. Um dos vaqueiros, parando, lembrou:

– Foi aqui que o intaliano apareceu morto.

– Que intaliano?

– O da história de Manezinho.

– Foi aqui?

– Foi; pertinho da barranca.

– Cumo é que disseram que foi na beira do rio?

– Não é capaz – foi aqui memo. Eu passei de menhã e vi o corpo, já num mosqueiro de meter medo. Quer ver? E o vaqueiro mergulhou no mato afastando ramos até que descobriu uma cruz tosca, sob uma coberta de palha. Eu não diche? Óia onde é que ele tá enterrado.

– Curvaram-se todos curiosamente e os cães, que haviam acompanhando os donos, metiam-se pelo mato, aos galões, como se buscassem alguma presa. Quando os vaqueiros tornaram à estrada o negro, que ia para o Cabuçu, tendo de os deixar, despediu-se depois de haver apagado o cachimbo.

– Adeu gente. Ocês foi falar de tanta cosa que eu não sei como vou por esses mato sozinho. Óia, fogo já não levo, não que não quero história no caminho. Jirimia tá aí e Jirimia não tinha medo de nada.

– E ocê tá com medo, Simeão? perguntou Mandovi.

– Ocê pensa que eu tenho vergonha de dizer? Tô com medo, sim. Não, meu amigo, pra home ou pra bicho a gente estica uma língua de ferro ou bota fogo e passa, mas com essas cosa do mato virge...! Tomara a gente um buraco mode meter a cara. Deus me livre! Sou home pra outro home cumo eu, mas com encanto não quero encontro, nem de noite nem de dia.

– Quá encanto!

– Quá encanto? poi sim... Ocê fala assim porque nunca se viu aperreado. Vai te fiando. Jirimia também não tinha medo de nada ... e hoje?

– Tá bom, adeu!

– Adeu!

Apartaram-se. O negro seguiu pela estrada larga e alumiada e estendeu a voz:

Sapateia, moreninha
Que ocê não bate no chão;
Pode batê sem receio
Que bate num coração

– Eh! medo, bradou o Amaro, a rir; e Simeão, já longe, respondeu:

– Hen... hen...

E, atravessando a mata obscura, os vaqueiros, como para não interromperem o sono das coisas, iam calados, um a um, apartando os ramos; os cães seguiam-nos em silêncio e Mandovi, lembrando-se do vulto branco que se balouçava, com os braços lívidos e magros abertos no fundo espaço, pensava com terror: "Foi o intaliano memo que me apareceu... foi ele memo..."

As folhas estalavam sob os passos e, de quando em quando, o que ia à frente, rompendo o caminho, avisava:

– Baixa, gente: óia o pau... Óia água, gente.

E a marcha prosseguia em silêncio através da mata silenciosa.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.