AO DR. JOSÉ CARDOSO DE MOURA BRAZILA COMPLACENCIA DIVINA MANIFESTAÇÃO DA GRAÇA TRADUZ-SE NA BONDADE — REFLEXO DO CEU NA CREATURA E SUBLIME FORMA DA CARIDADE DO MUNDO. ⧫ ⧫ VÓS, MEU AMIGO, EM QUEM FULGURA, NO MAIS ALTO GRÁO, ESSE PRIVILEGIO DOS ELEITOS, PRELIBAES, ANTE O QUADRO DOS BENS, QUE HAVFIS PRODIGALISADO, O INEFFAVEL JUBILO, RESERVADO AOS QUE TRIUMPHARAM DA MORTE. ⧫ ⧫ SOU UM EXEMPLO VIVO DO EXERCICIO D՚ESSA MUNIFICENTE BONDADE. ⧫ ⧫ A CULMINANCIA SCIENTIFICA E PROFISSIONAL, QUE ATTINGISTES PELO ESFORÇO DO ESTUDO E DA OBSERVAÇÃO; Á SUPERIOR INTELLIGENCIA, AUXILIADA PELA FIRMEZA DE VOSSAS PERITAS MÃOS E Á VÓSSA DEDICADA ASSISTENCIA, POR MAIS DE QUATRO MEZES, DEVO A RESTITUIÇÃO DE MEUS OLHOS Á LUZ. ⧫ ⧫ CONSENTI, POIS, QUE NÃO VOS OBEDEÇA, ENCERRANDO-ME NO SILENCIO, QUE PUBLICAMENTE SE EXPANDA MINHA GRATIDÃO POR ESSES SERVIÇOS DE VALOR INESTIMAVEL, SOBREDOIRADOS PELA DELICADEZA, COM QUE OS PRESTASTES, DANDO A MAIS GENEROSA INTERPRETAÇÃO AO CITO, TUTE ET JUCUNDE DO PRINCIPE DOS ORADORES ROMANOS. ⧫ ⧫ JUNTAES, Ó WECKER BRAZILEIRO, AOS LOUROS DA SCIENCIA OS NÃO MENOS IMMARCESSIVEIS DE AGRICULTOR PROGRESSISTA. NÃO VOS TENDES POUPADO A SACRIFICIOS PARA CONVENCER OS NOSSOS FAZENDEIROS DE QUE A POLYCULTURA NO BRAZIL NÃO É UTOPIA. ⧫ ⧫ VÓS, QUE CONHECEIS, A FUNDO E POR EXPERIENCIA, A DESASTROSA CRISE DE NOSSA LAVOURA E OS REMEDIOS PARA DEBELAL-A, PODEIS, HOJE, QUE DE NOVO PRESIDIS Á SOCIEDADE NACIONAL DE AGRICULTURA, REALISAR VOSSOS NOBRES INTUITOS, SI OS PODERES PUBLICOS VOS APPROVEITAREM A PATRIOTICA VOCAÇÃO, INCONTESTAVEL COMPETENCIA E MERITOS EXCEPCIONAES. ⧫ ⧫
RIO, 3 DE NOVEMBRO DE 1904.BARÃO DE PARANAPIACABA.
MAZEPPA
Ferira-se em Pultava a acerrima batalha,
Em que o sueco heróe revez cruel soffreu;
Pelo cruento chão cadaveres espalha
O exercito, que alli campanha extrema deu.
Gloria, regio poder, deidades inconstantes,
Como esses, de quem são os idolos impuros,
Seguiram do Autocráta as armas triumphantes
E os fortes de Moscow, de novo, estão seguros,
Em quanto não desponta o dia formidavel,
Que de mais alto nome e exercito mais forte
Deverá registrar, em anno memoravel,
Vergonhosa derrota e a mais infausta sorte.
Desbarato fatal ! Naufragio miserando!
Em tempo algum se viu abalo tão profundo!
Foi raio, que, de chofre, um homem fulminando,
Levou consternação e assombro a todo o mundo.
Tal da guerra o vaivem. Carlos Doze aprendia
A fugir. Sem parar, transpunha em seu cavallo
Campinas e caudaes. No sangue, que o tingia,
Era licito ver o seu cada vassallo.
Para cobrir-lhe a fuga, oh quanta mortandade!
Ninguem, a censurar essa ambição sem freio,
O vencido humilhou na hora, em que a verdade
Já do poder não tem o minimo receio.
Perde o rei o corcel. Gietta o seu lhe cede,
E entre inimigos vai morrer, prisioneiro.
Após longo galope, inutil, que despede,
Abate-se o corcel e cospe o cavalleiro.
Cumpre ao rei poise a fronte, exhausta de fadiga,
Das selvas no mais fundo, em solidões sombrias,
Ao continuo bradar das forças inimigas
E ao nocturno clarão, longinquo, dos vigias.
E é por descanso tal, por laurea tão sangrenta
Que, luctando, as nações riqueza e força exhaurem !
Arrancam-n՚o ao torpor da quéda violenta,
Sem meios desprezar, que as forças lhe restaurem.
Rigidez da inacção lhe tolhe cada membro;
Das feridas á flór congela-se-lhe o sangue;
Aggrava-se-lhe a febre ao frio de novembro,
Recusando-lhe o somno á celha ardente e langue.
E, entanto, arcando o rei com tanta adversidade,
Supporta, nobremente, amargas provações;
Avassallando a dôr, domina-a c՚o a vontade,
Tal como praticava, outr՚ora, entre nações.
Tem alguns generaes (quão poucos)! a seu lado,
Resto de um só combate heroicos e ficis.
Triste e mudo, cada um, por terra está deitado
Ao pé de seu monarcha e em meio dos corceis.
Força é que, igual ao bruto, o homem, no perigo,
Co՚ as mesmas precisões, ás mesmas leis se dobre.
Mazeppa, um dos fieis, procura seu abrigo
Sob um, d՚elle rival, robusto e velho robre.
O velho hetman da Ukrania, exemplo de coragem,
Da fadiga prescinde e, proximo, apparelha
A seu nobre ginete um leito de folhagem;
Almofaçavá-lhe a crina, alisa-lhe a cernella;
Do freio, do bridão, das cilhas o liberta;
Folga, vendo-o comer, sem repugnancia, o feno;
Pois era de temer lhe fosse ingrata a offerta
Da vegetal ração, molhada do sereno.
O ginete, que ao dono imita em galhardia,
Nunca fez cabedal de mantimento, ou leito;
Docil, bem que fogoso, á redea obedecia;
De nada se escusava, a tudo estava affeito.
O tartaro animal, felpudo, vigoroso,
Vencia em rapidez um furacão do outomno.
A um aceno acudia, attento e pressuroso
E orelhas aprumava, ouvindo a voz do dono.
Toldasse negra noite o azul do firmamento,
Fosse entre muitos mil occulto o cavalleiro,
O instincto lh՚o mostrára; ir-lhe-ia em seguimento,
Qual vai da mãi no encalço a cria do cordeiro.
Isto feito, Mazeppa estende o manto em terra,
Encosta ao robre a lança, e, próvido, examina
Si polvora bastante a cassoleta encerra,
Si não soffreu a pedra e o fecho da clavina;
Passa a mão na bainha e em copos de seu sabre;
Sonda si está bem preso e inteiro o cinturão.
Cauteloso, depois, do chão levanta e abre
O sacco, onde guardou mesquinha provisão,
E ao monarcha a offerece e ao sequito presente,
Sem formulas, que exige o ceremonial.
O real fugitivo aceita, sorridente,
Por gesto affirmativo, a refeição frugal.
Ostentando alegria, ausente de sua alma,
Finge que não succumbe ao marcial discrime;
E com segura voz, em attitude calma,
Dirige-se a Mazeppa o rei e assim se exprime:
«Entre os nossos, de peito e braço vigoroso,
Habeis no forrageio e em toda a marcia lida,
Ninguem ha como tu, Mazeppa valoroso,
De tão activa faina e lingua comedida.
Bucephalo, Alexandre acodem á memoria
Em ti, em teu ginete—o mais completo par;
Sobrepuja á da Scythia a tua immensa gloria,
Si é caso de passar, luctando, terra e mar.
E Mazeppa volveu: «Maldita a escola, aonde
A pericia ganhei de estribos e de arções»!
— «E por que, bravo chefe»? (O rei, prompto, responde)
Vivendo dos salões no pleno movimento,
Si foram para ti proficuas as lições?»
— «Temos muito que andar e muita escaramuça,
(Em que ha dez contra um por parte do inimigo)
Primeiro que os corceis, deixando a plaga russa,
Do Dnieper além encontrem bom pascigo.
E՚ longa a narrativa e impõe forçada véla.
Sire! Descanço deveis ao corpo fatigado.
Eu da escolta real serei a sentinella,
C՚o a vigilancia, propria ao mais fiel soldado».
— «Quero essa historia, sim! Talvez que possa dar-me
Somno, á que estou revel». Pois bem! Nessa esperança,
Doze lustros atraz, meu rei, vou remontar-me,
E os factos despertar, dormentes na lembrança.
Era... quando eu chegára ás vinte primaveras;
Casimiro reinava. Eu, desde a puberdade,
Me alistei pagem seu. Que rei! Sabio, de veras;
Mas pouco semelhante á Vossa Magestade.
Não foi conquistador; não deu esses combates,
Que reduzem um povo á condição de escravo.
Afóra de Varsovia os calidos debates,
Nada mais perturbou o seu repouso ignavo.
Não escapava, entanto, a crises dolorosas.
A՚s musas, á mulher paixão votava, céga.
Quanta vez, com desdem tratando as caprichosas,
Preferira luctar no accèso da refrega!
Mas... passava depressa aquella intensa furia.
Outro livro ia lêr, tomava outras amantes;
E, de novo, cedendo aos habitos da incuria,
Dava no seu palacio as festas mais brilhantes.
Varsovia, toda em peso, aos bailes lhe assistia.
Alli vinham porfiar as classes mais selectas;
Dos proceres a flor ao lado resplendia
Do Salomão polaco. O rei pelos poetas
Era chamado assim. Um delles, renitente,
(Pois não tinha pensão) teimava em lhe negar
A honrosa antonomasia e em satyra mordente
Disse que não sabia os reis lisonjear.
De farcistas um grupo, em justa, cultivava
As musas e em rimar vivia a exercitar-se.
Eu tambem editei uns versos, que assignava
« Thyrsis desesperado», (artistico disfarce).
Um Palatino havia, illustre de ascendencia,
Rico, qual mina rica, aurifera ou de sal;
E de fanta altivez (vertigem de insolencia!)
Que pretendia vir de origem divinal!
Ninguem, excepto o rei, de mais predicamento!
A՚ força de incubar brazões e cabedaes,
Chegou a acreditar que o ouro e o nascimento
Eram meritos seus, virtudes pessoaes.
D՚outro modo pensava a sua esposa amavel.
Contando lustros seis de menos que o marido,
Soffria do consorcio o jugo intoleravel
E anhelava por vel-o, em breve, sacudido.
Após crébro desejo e timida esperança
E lagrimas de adeus, sagradas á virtude,
Noites d՚ancia, em que a mente e o corpo não descança,
Depois de muito olhar, vibrado á juventude,
Vivendo dos salões no pleno movimento,
Em dansas e canções somente embevecida,
Ella estava á mercê do critico momento,
Em que a mulher mais fria, é, sem luctar, vencida,
E outorga, complacente, a seu querido esposo
Titulo, que é pra o ceu valente passaporte,
Do qual (celebre coisa!) é menos orgulhoso
Quem num quinhão maior o recebeu da Sorte.
Mancebo era eu, então, de varonil belleza,
Desculpai-me aos setenta a frivola jactancia !)
Ninguem (digo-o, bom som), do povo ou da nobreza,
Hombreava commigo em graças e elegancia.
Pullulava em meu seio a seiva exhuberante
Da força e bom humor, que é dom da mocidade.
Exprimia belleza e vida este semblante,
Que, hoje em dia, só diz tristeza e austeridade.
O tempo, a guerra, o afan dir-se-ia me apagaram
D՚alma na fronte a luz. Feições tão differentes
Tomei, tanto do rosto as linhas se alteraram,
Que hão de desconhecer-me amigos e parentes.
Precedeu tal mudança o tempo, em que ao dominio
Da velhice quebrei. Podeis dar attestado
Que em forças e valor em mim não ha declinio;
Que a lucidez da mente hei sempre conservado.
Nem d՚outro modo, Sire, eu fora em vossa tropa
Um chefe, e nem me achára aqui, neste momento,
Velha historia a contar de um robre sob a copa,
Em que pesa o docel de umbroso firmamento.
Thereza... Não lhe pinto as formas e a figura.
Asiaticos tinha os olhos, como os tem
Cruzada geração gentil, que da mistura
Do sangue polonez e musulmão provém.
Olhos, que tintos são das trevas no negrume;
Que estampam d՚este ceu a carregada face,
Das pupillas vibrando embaciado lume,
Qual da lua o clarão, que, á meia noite, nasce;
Grandes, sempre de luz nadando em plena enchente,
Como que d՚essa luz se fundem no fulgor;
Metade languidez, metade chamma ardente,
Sendo, porém, na essencia, um puro e casto amor,
Revestem a expressão serena do que expira
Pela fé, a fitar, extasiado, o empyreo,
Qual si fosse volupia o fogo atróz da pyra
E ante-gosto celeste a fragoa do martyrio.
Semelhava-lhe a fronte um lago em claro estio,
Onde inflammado o sol os raios reverbéra,
Onde, timida a vaga abafa o murmurio,
Onde vem espelhar-se a tinta azul da esphera.
A fronte, os labios seus... Que mais dizer? Amei-a
E inda amo essa mulher. E todos os que são
Como eu, si amor lhes lança aos pulsos a cadeia,
Amam com energia e férvida paixão;
Amam, té no furor. Em seus ultimos annos,
Persegue-os, vaga, inane, a sombra do passado.
Tal Mazeppa hade ser, emquanto entre os humanos,
Fôr dos vivos no ról seu nome contemplado.
Foi vel-a e suspirar... Um n՚outro o olhar cravamos.
Não falou; mas senti que fui correspondido.
Signaes, accentos ha, que vemos e escutamos,
Que ninguem definiu, mas tem alto sentido;
Scentelhas do eu pensante, involuntarias, vivas;
Mysterio a repousar do peito no recesso;
Linguagem singular de phrases expressivas,
Brotando, a seu pezar, do coração oppresso;
Anneis de ignea cadeia, unindo em doce affecto
Almas e corações, que um do outro ser ignoram;
Fio, cujo poder electrico, secreto,
Serve de conductor a chammas, que devoram.
Foi vel-a e suspirar. Occasiões diversas,
Falando-lhe, a paixão, á custo, soffreei!
Apresentado fui. Em sala, nas conversas,
Á minima suspeita occasião não dei.
Ardia por abrir-lhe o peito em desafogo;
Fraca, e tremula a voz nos labios me expirava.
Um dia, finalmente... Havia certo jogo,
Pueril distracção, que as horas enganava;
Era... Esqueci-lhe o nome... Entramos na partida
Por um facto... Qual foi?... Não sei dizel-o, ao certo.
Ella era o meu porvir, o sol de minha vida;
Queria vel-a, ouvil-a e d՚ella achar-me perto.
Eu, que a velava então, com vigilancia activa,
(Assim possa velar quem ora nos vigia!)
Pude verificar que estava pensativa
E ao jogo, á perda ou ganho, indifferente e fria.
Longas horas jogou, mostrando, bem patente,
De alli permanecer o tacito desejo,
Mas não para jogar. Passou-me pela mente
De clara intuição um subito lampejo.
De seu modo e semblante a calma impaciencia
Coragem me infundiu. Contendo-me nos gestos,
Mas derramando a phrase em doida incoherencia,
De insensata paixão rompi o dique aos éstos.
Insensivel não foi ao meu confuso appello,
(E ha de ouvir-me, outra vez, de modo favoravel).
Mostrou-me que não tinha um coração de gelo.
A recusa no amor é sempre revogavel.
Amei e amado fui. Si, ao que se diz, nenhuma
Das fraquezas de amor, ó nobre rei, sabeis,
Convém que a minha historia encurte e que resuma
Lances, que (é de esperar,) de frivolos taxeis.
Coube a poucos, porém, a rara faculdade
De refrearem n՚alma o impulso das paixões;
Ou, como Deus mostrou em Vossa Magestade,
De reinarem em si e mais sobre nações.
Sou chefe, ou antes... fui... Regi da governança
O difficil timão com dextra cauta e firme;
Tropel d՚homens guiei ás lides, á matança...
Mas da vida no afan não soube dirigir-me.
Amor, que é dom do ceu, cahindo no exagero,
De ventura, que ha sido, em magoa degenera.
Era em ancias crueis, em vivo desespero,
Que eu, febril, numerava as horas de uma espéra.
O dia era sem paz, a noite não dormida ;
Só gozava a seu lado instantes de delicias.
Como a recordação melhor de minha vida,
Guardo sua affeição, seus mimos e caricias.
Da Ukrania abrira mão por ver-me, n՚este instante,
Pagem feliz de então, possuindo fina espada,
Dono do coração de tão formosa amante;
Na mocidade em flor, saúde... sem mais nada.
«Dobra a dita o mysterio». Eu penso bem diverso ;
O dito popular não tem justo motivo.
Quizera possuil-a á face do universo...
E tinha pejo até de meu amor furtivo.
Os que amam Argos têm. De breve tempo ao cabo,
Deram em nosso ninho. Ai ! Nessa occasião
Devêra mais cortez comnosco ser o diabo...
O diabo!!... Talvez o culpe sem razão.
Talvez autor do mal foi santo desastrado,
Que, d՚ocio longo farto, a bile extravasou.
Um grupo de espiões, bem proximo emboscado,
Tomou-nos, de improviso, e presos nos levou.
Raivoso estava o conde, eu d՚armas desprovido.
Estivesse, porém, forrado de armadura,
Contra essa gente hostil, em numero crescido,
Não pudera luctar naquella conjunctura.
Perto o solar ficava, a povoação distante,
Eu sem auxilio algum contar. Amanhecia.
Acreditei chegado o meu supremo instante,
E que a luz d՚outro sol não mais brilhar veria.
Rezei á Virgem Mãi e a uns santos... Quaes?... Que importa!?
E com resignação dispuz-me para a morte.
Do castello feudal eu fui levado á porta.
Nunca mais vi Thereza e nem lhe soube a sorte.
Para seu mau humor justificar, de sobra,
Bastava ao Palatino a recebida injuria.
Uma ideia, no entanto, a cólera llie dobra...
— A eiva em seus brazões de bastardia espuria.
Repugnava-lhe crêr que em seu antigo escudo
Ousasse alguem pôr quebra e deturpal-o assim.
Isto em quem aspirava á primazia em tudo;
Que impor-se a todos quer, e muito mais a mim.
Um pagem! Santo Deus!... Até parece incrivel!
Si um rei fosse, podia o esposo conformar-se...
Não consegui pintar o seu furor terrivel...
Mas os effeitos d՚elle em mim vão demonstrar-se.
«Já! O cavallo aqui!» E veio, num momento!
Era um nobre animal, um tartaro da Ukrania.
Como que em si pintava a acção do pensamento,
Que, muito mais que tudo, é célere, instantanea.
De vespera apanhado, indomito, bravio;
Virgem de espóra e treio, as largas ventas incha;
Selvagem como o gamo, em mattas erradio,
Fumega, eriça a crina e, horripilado, rincha.
De raiva e medo espuma, oppondo resistencia
Tenaz ao que o segura. É vão seu grande esfôrço.
Trazem-m՚o. Muitas mãos me agarram, com violencia,
E em forte correame arrocham-me a seu dorso.
Soltam-n՚o, á discrição. Um vigoroso braço
De chicote lhe dá. Dispára, em continente.
«Avante!» Eil-o, impellido, a devorar o espaço,
Com rapidez, maior, que a tumida corrente.
«Hop! hop! Galopar!» O folego eu perdera;
Nem podía saber que norte ia levando.
Naquelle instante o sol, esplendido, rompera,
E o fogoso corsel, fugia, resfolgando.
O humano, ultimo som, que o vento me zunira,
Desde que do solar partimos, de arrancada,
A corja dos servis, á uma, o desferira,
Num tripudio de escarneo, em fera casquinada.
Logrei romper uns nós, que me retinham preso
Pela cabeça á crina; a meio o corpo ergui,
E contra a escrava grey, em justa raiva acceso,
Vociferei vingança, imprecações brami.
O estrepito, porém, dos cascos, que, velozes,
Tropeava o corcel, parece que, de todo,
Conseguiu abafar os sons de minhas vozes,
A volverem aos vis apôdo por apôdo.
Desforcei-me, depois. Agora, esse castello,
Que tão garboso foi, não passa de um destroço.
Caiu-lhe a torre, a ponte, o portico tão bello;
Não lhe resta uma trave e nem signal de fosso.
Nos campos em redor nenhum rebento nasce,
Excepto no lugar antigo do salão.
Ninguem, que essa extensão deserta atravessasse,
Diria ter havido alli um torreão.

Vi os seus paredões de fogo devorados;
Os tectos desabar com funebre estampido;
Vi, com torvo prazer, dos solhos abrazados
Como chuva, escorrer o chumbo derretido.
Contra meu braço ultriz não lhes serviu de abrigo
Do muro a solidez. Quando elles me arrojaram
Num relampago preso, ao maximo perigo,
Que julgavam de morte, ah! nunca suspeitaram
Que um dia, regressando, á frente de mesnada,
Dextro no manejar clavina, espada e lança,
Respondesse á incivil, forçada cavalgada;
Tirando do aggressor justissima vingança.
Triste gracejo foi prenderem-me a um ginete
E lançarem-n՚o, solto, em correria infrene.
Vinguei-me. D՚elles fiz, por minha vez, joguete
E no ajuste final fiquei mais do que indemne.
Tudo está no esperar. Não ha poder na terra,
Que resista ao constante esforço, paciente,
De quem, como um thesouro, a propria injuria encerra
Nos penetraes do peito e sempre a tem presente.
Como de um vendaval levado sobre as azas,
O filho da Tartaria, em phrenesi, corria.
Longe tinham ficado as derradeiras casas;
Do horisonte em confins Varsovia se perdia.
Qual atravessa o ar um meteóro ardente,
Quando a luz boreal a nuvem fende e um rasto
Espalha de fuzis, tal, célere e fremente,
Galopava o corcel no steppe arido e vasto.
Deshabitada cha, esteril natureza,
Negra floresta ao fundo. Em rapida visão
Perpassava ante mim alguma fortaleza
Das que barreira põe á tartara invasão.
Fazia exactamente um anno, nessa data,
Tinham os spalis lutado na planura,
E no rubido chão de seus corceis a pata
Aniquilado havia os germens de verdura.
Era o cariz do ceu sombrio e pardacento;
A viração gemia em tão plangente voz,
Que eu respondêra, accorde, áquelle seu lamento
Si ai, ou prece, coubera em curso tão veloz.
Meu gelido suor da fronte ia cahindo
Do excitado corcel na crina hirta e revolta;
E elle, sempre em terror e colera nitrindo,
Proseguia, sem pausa, em seu correr, á solta.
Muitas vezes julguei que o impeto afrouxasse;
Em vão! Meu leve peso os rins não lhe peiava;
Era antes aguilhão, que os passos estugasse
Do animal, cuja força a colera dobrava.
Nitria, si eu tentava os membros doloridos
E tumidos soltar dos complicados nós.
Falei-lhe. Foi peior. Si bem que enfraquecidos,
Espantaram-n՚o mais os sons de minha voz.
Fez-lhe impressão de açoite o accento meu. Pulando.
Rasgava, como um raio, o safaro pragal,
Qual si aos ouvidos seus vibrasse, retroando,
Fragoroso clangor de trompa marcial.
Manando-me, abundante, o sangue das feridas,
Cerrava-me, inda mais, dos nós a forte rêde;
Tinha garganta e lingua, ardentes, resequidas,
Ao mais vivo queimôr de violenta sêde.
A entrada da floresta estava já bem perto.
Em qualquer direcção, á massa de verdura
Limite não achava o meu olhar incerto;
Tal era a vastidão da intermina espessura.
Viam-se aqui, alli, arvores priscas. Nunca
Tufão, que da Siberia irrompe em bravos roncos,
Que despe á selva a coma e d՚ella o sólo junca,
Nem de leve abalou aquelles grossos troncos.
Rareavam, porém, taes arvores. Seus claros
Enchiam-nos de tojo uns viridentes brótos
Na exhibição vernal de seus enfeites raros,
Illesos, até alli, do outomno aos rijos nótos,
Que, ferindo de morte as folhas e os rebentos,
E mudando seu verde em rubra côr mortal,
Fazem-nos parecer cadaveres sangrentos,
No campo da batalha em funebre estendal,
Quando, após longa noite, em que bem forte néva,
Tão hirtas volve o gelo as frontes dos que jazem,
Que o corvo, alli buscando a sanguinosa ceva,
Não n՚as póde encetar (tão rigidas se fazem !)
Desconversavel ermo, em sarças abundante,
Em robres colossaes, pinheiros corpulentos,
Que, por ventura minha, uns d՚outros bem distantes,
Me evitavam ao corpo embates violentos.
Vergava ao peso meu, sem magoar-me, o tojo.
Eu soffreava a dôr. Das chagas sobre as bordas
O sangue congelára. E fôra ao chão, de rôjo,
A não tolher-me a queda o vinculo das cordas.
Na treita do cavallo, e quasi a dar-lhe tópe,
Lobos em alcatéa, a quem a fome instiga,
Vinham no prolongado, especial galope,
Que tira aos cães o ardor e o caçador fatiga.
Iam-nos sempre após. Nem quando o sol nascera.
Nos deixaram a pista. Eu vi-os, bem visinhos,
A relva contornando e claro, percebêra
O seu leve pisar, á noite, nos maninhos.
O que eu não déra, então, por ver-me libertado,
De sabre ou chuço em punho, em meio á malta fera!
Si houvesse de morrer, por ella devorado,
Prazer de a desbastar, ao menos, me coubéra.
Quando o corcel partira, igual a um pé de vento,
Era desejo meu chegasse a seu destino.
Temia lhe faltasse agilidade e alento;
Em vão! Tinha o vigor de um alce montesino.
O furacão de neve, a resvalar de cima,
Quando, offuscante, céga e esmaga o camponez,
Que, fugindo ao perigo, á umbreira se approxima
Onde pisou, ha pouco, a derradeira vez,
Mais rapidez não tem dos ares na passagem
Que n՚aquelle correr, phantastico, sem treguas,
Esse ardego corcel, feroz, hyper-selvagem,
No atravessar o bosque, a devorar as leguas.
Mostra furor igual mimalho, a quem negada
A bonequinha foi; ou antes, a mulher,
Que, perante a rival, do amante melindrada,
Do capricho á mercê desaggravar-se quer.
Transposto o bosque foi. A tarde começara.
Posto corresse junho, o ar dava arrepio;
Ou nas veias, talvez o sangue me esfriára;
Que o longo soffrimento abate os de mais brio.
Eu não era, aliás, o que pareço agora.
Tendo o impeto em mim de uma caudal de inverno,
Mostrava, alvoroçado, o sentimento, embora,
Não definisse bem o seu motivo interno.
Mesmo cheio de horror e colera, sentindo
De profunda vingança o estimulo cruel,
Fome, frio, vergonha e males mil curtindo,
Amarrado, em nudez, aos tergos de um corcel,
Era d՚esses que, sendo a plantas conculcados,
Qual serpente, alça o collo e investe c՚o aggressor.
Por largas horas preso em laços intrincados,
Não era de extranhar vergasse á tanta dôr.
A terra aos olhos meus tornára-se invisivel.
Vi de nuvens no céu veloz revoluteio.
Pareceu-me ir á terra. A queda era impossivel,
Que me prendiam nós do mais cerrado enleio.
Tinha o cerebro em fogo a percutir-me o craneo,
Compresso o coração num torno de agonia.
Um momento pulsou; parando, subitaneo.
O céu — immensa roda — em cima se movia.
Quaes ebrios — ante mim as arvores nutaram;
Tenue luz vislumbrou-me aos olhos, de relance.
Nada mais vi, depois. Por ancias taes passaram
Os que tocam da vida ao derradeiro transe.
No tumulto infernal d՚aquella correria,
Em que a treva, ou mais leve ou densa, me affrontava,
Tentára recobrar do animo a energia;
E minha posição o esforço me frustrava.
Eu era semelhante ao triste, que naufraga,
E, agarrado a um pranchão, do mar a furia arrosta;
Agora submergido, agora á flor da vaga,
A cujo impulso vai em direcção da costa.
Deslumbrantes clarões, que o cerebro nos sulcam,
Que, mesmo olhos cerrando, os vê a mente esperta,
E incipiente febre em quem os nota inculcam:
— Tal a imagem, então, de minha vida incerta —.
Esse estado passou. Foi breve o soffrimento.
Veio, após, turbação, peior que a propria dôr.
Receio de sentil-a igual nesse momento,
Em que o marco da vida eu tenha de transpôr.
Antes de ao pó volver é força (ao que supponho)
Que ao mortal accommetta angustia, inda mais forte.
Que importa! Muita vez expuz, qual inda exponho,
Com arrojo, a cabeça á quasi certa morte.
Voltou-me o sentimento. Em que lugar estava?
Congelado, em torpor e grande aturdimento,
Dôr por dôr, sensação por sensação, tomava
Posse do proprio ser, por gradações, e lento.
Tive nova oppressão. O sangue, espesso e frio,
Subito, refluiu com violento impulso.
No ouvido me vibrou discorde murmurio;
De novo, o coração me estremeceu, convulso.
A vista recobrei nos véus de uma neblina.
Qual travéz de um crystal espesso as coisas via.
Um constellado ceu pintava me a retina;
E parecia ouvir o oceano, que estrugia.
Não sonhei. O corcel, fogoso, espantadiço,
N՚um rio se engolphou de maxiina braveza.
Em redor espumava a lympha em reboliço,
E ia levando além a sua correnteza;
O cavallo a nadar, de furia em paroxysmo,
Buscava a riba em frente — uns sitios não sabidos.
Aquelle inopinado e salutar baptismo
Deu-me elasticidade aos membros inanidos.
O peito do animal affronta e quebra a onda,
Que ao pescoço lhe sóbe. Impetuoso, avança;
Contra a lubrica praia, ás cegas, esbarronda.
Nella, porém, não vi lampejo de esperança.
Si tivera, até ahi, angustia e desalento
Enlutava o porvir terror, noite aborrida.
Não sei quanto durou a pausa do tormento,
Nem si era o sopro meu o folego da vida.
Fumegante o corcel, na bocca espuma branca,
Mudados crina e pêllo em jorros de gotteiras,
Vacillando nos pés, entésta co՚ a barranca
E consome em salval-a as forças derradeiras.
Chega ao cimo, afinal. A noite, pouco densa,
Descortinar deixava um plaino, que se espraia
Pelo horisonte, além, e d՚area tão extensa,
Que, si medil-a quer, o olhar cansa e desmaia.
Tal abysmo sem fundo o sonho nos figura.
Da lua, que nascia, ao pallido clarão,
Aqui pallidas manchas, alli a relva escura,
Via, em mixto confuso, a mosquear o chão.
Nessa plaga, porém, tão muda e tão soturna,
Nem signal lobriguei de choça —; ermo completo.
Nem vacillante luz de lampada nocturna,
— Estrella, que annuncia hospitaleiro tecto.
Si, qual por irrisão, eu visse da palude
Surgir um fogo fatuo, um trasgo zombeteiro,
Daria sua luz a meu soffrer, tão rude,
Naquella solidão consolo verdadeiro.
Inda sabendo, ao certo, o que era aquelle fogo,
A sua apparição eu, d՚alma, abençoára,
Pois no instante cruel de tão pungente afogo,
De humana habitação lembrança me acordára.
Continuou a andar, tardio, a frouxos passos,
O misero animal, outr՚ora tão robusto.
Espumante, abatido, arrasta os membros lassos
E a róta, em que voava, agora vence a custo.
De uma criança á mão seria dirigido.
Mas que me aproveitava o seu estado infirme?
Inda que houvesse, então, meus vinculos partido,
Podia eu forças ter de alçar-me e dirigir-me?
Para os nós desatar das solidas correias,
Que eram minha prisão, baldei a tentativa.
O arrocho, inda mais forte, entumeceu-me as veias;
Não houve allivio á dôr, que se tornou mais viva.
Sem lhe saber, ao certo, o ponto de parada,
Parecia-me finda a doida correria.
Illuminando os véus da fresca madrugada,
Vinha apontando o sol. Quão lento, que nascia!
Como que da manhã a bruma pardacenta,
Nos ares desdobrando o rórido lençol,
Adrêde, persistia, espessa, fria e lenta,
Recusando ceder o seu lugar ao sol.
O rubor do astro-rei, só tarde, deu desmaio
Das estrellas no carro á luz, que d՚ellas flue.
Seródlo o sol vibrou em toda a força o raio
Da luz—dote do ceu—que o rei da luz possue.
Da fusca cerração nenhum signal já resta.
Em frente, em roda, após, só vi andurriaes.
Debalde transpuzera asperrima floresta,
Planicie accidentada e turbidas caudaes.
Alli mostra-se rica em vegetaes productos
A virgem natureza, a exuberar prodigios,
Mas de animado ser,—ou racionaes ou brutos—
Não ha presença alguma, e nem siquer vestigios.
Não accusava o chão indicios de trajecto,
Ou de humano labor. Na herva não se acoita
E nem vôa, a zumbir, o mais pequeno insecto;
Não acorda o silencio um passaro na moita.
O cavallo, arquejando, exhausto de cansaço,
Como que dos ilhaes quebrado, se rendia.
Tropego, inda marchou por um pequeno espaço.
Nós estavamos sós... Ao menos parecia.
Vi o pobre animal seguir, quasi de rasto...
Eis se me afigurou ao longe, um rincho ouvir.
Vinha d՚um pinheiral, sombrio, extenso e basto....
O vento era, talvez, nos ramos a zunir.
Grande cavallaria irrompe d՚essa matta;
Fórma-se em esquadrões e, lésta, se adianta.
Quero soltar um grito; a voz não se desata;
Sem aos labios chegar, expira na garganta.
Milhares de corceis, sem terem cavalleiros,
Nessa vasta planicie, ás soltas, sem receio,
Giram, caracollando, altivos e ligeiros,
Não tendo humana mão, que lhes imponha freio;
Milhares de corceis de fluctuante crina,
Caudas ferindo o ar e boccas, que das bridas
Inda virgens estão;— de amplissimas narinas,
Que não foram, jamais, de ferro comprimidas.
Não soffreram nos pés da ferradura o insulto,
Nem na ilharga o baldão de açoite, ou de acicate;
Livres, qual do oceano a vaga, que, em tumulto,
Uma pós outra vem e, alfim, na praia embate.
A equina multidão, cerrando-se em fileira,
Num fragoroso andar, que a trovoada imita,
Como para saudar, de fórma hospitaleira,
Quem enfermo chegou, p՚ra mim se precipita.
Coragem recobrando, á vista d՚essa tropa,
Debil, solta o corcel um languido nitrido;
Tardo passo aligeira; um pouco, inda, galopa,
E, minutos depois, no chão eil-o estendido.
Acaba de exhalar o seu extremo alento.
Tem vitreo, fixo o olhar, rigido o corpo. Ainda
Evapora do pêllo effluvio fumarento...
Sua excursão primeira e ultima está finda.
Chegam. Cahir em terra o companheiro viram.
Viram-me em fortes nós, que o sangue em coalho ensopa,
Preso ao dorso do irmão. Com ruido o ar aspiram;
De um lado a outro, o bando, em torno a mim galopa,
Volve a nós e se afasta, após breve intervallo;
Caracolla de novo e subito, de arranco,
Retrocede, a saltar. Parece dominal-o
Hirsuto, alto corcel, sem malha, ou pêllo branco.
Era o seu conductor. Relincham, espumando,
Os bravos animaes e, tendo visto um homem,
Por instinctivo impulso, afastam-se, ganhando
A galope, os pinhaes, que em sua brenha os somem.
Que desesperação! Permanecia preso
Ao corcél, cujo corpo em parte me opprimia.
Não sentia elle, agora, o meu ligeiro peso,
De que só disatando os nós o livraria,
Eis-nos, pois, lado a lado, — o morto e o moribundo.
Eu jazia, a luctar nas ancias da incerteza
Que inda o crástino sol viesse neste mundo
Minha fronte aclarar, sem tecto e sem defeza.
Do inicio ao fim do dia, assim me conservára,
Das horas a sentir o cargo doloroso,
Guardando do viver o quanto me bastára
Para imminente ver o meu final repouso.

Chegára á essa cruel, final desesperança,
Em que o homem se affaz ao que mais formidavel
Se lhe affigura haver; pois já, sem esquivança,
Me conformava á morte — ao fim inevitavel;
Beneficio real, não menos precioso,
Por vir cedo de mais. E pomos diligencia
No afastal-o de nós, qual sendo insidioso
Laço, que só se evita á esforço de prudencia.
Muitas vezes pedido, em muitas o queremos;
Outras antecipado a espada o traz. Remedio
Para os males não é, nem mesmo quando extremos,
E, sob qualquer fórma, infunde horror e tedio.
No entanto (é singular!) os que da sorte eleitos,
Gozam em alto gráo, os sensuaes prazeres,
Conservam, ao morrer em seus dourados leitos,
Tanta paz, qual na choça os desherdados seres;
E tendo haurido, á flux, delicias alternando,
Tudo, que o mundo tem de bello e seductor,
Nada mais esperando e nada lastimando,
Vivem, sem apprehensões de duvida, ou terror,
(Salvo quanto ao porvir, que os homens consideram
Como dos nervos seus o estado lhes permitte),
Em quanto, do infortunio as victimas esperam
Que os soffrimentos seus attinjam o limite.
Véus, que empanar-lhes vem a vista desvairada
De que enxerguem na morte um bom amigo impedem;
Julgam que lhes será por ella arrebatada
A sua recompensa—o pomo de seu Eden.
O dia de amanhã houvera dado tanto!
Dia longo, em que a luz, serena, irradiára.
Não haveria n՚elle anathema, nem pranto,
E da angustia passada, em pleno, os compensára.
Inicio elle será de longa série de annos,
Divisada atravéz de lagrimas, agora;
Exercer poderão direitos soberanos...
E só ha de fulgir num tumulo essa aurora !?...
Ia baixando o sol. Eu prêso, sempre, á neve
D՚esse pobre animal, immoto, inteiriçado.
Tinham de alli mesclar-se as cinzas nossas, breve;
Precisava da morte o meu olhar nublado.
Pela ultima vez, ao ceu olhos erguendo,
Vi, não longe de mim, um corvo impaciente,
Que, para começar o seu banquete horrendo,
Aguardava meu fim, tenaz, soffregamente.
Voava, vinha ao chão; fazia outros adejos;
De mim se approximava a cada movimento.
Seguia meu olhar seus multiplos voltejos...
E já turvava o ceu crepusculo cinzento.
Tão visinho pousou, que, facil, o matára,
Si me restasse força. Eu fiz ligeiro aceno
Có a mão, que á flor da terra em languidez, baixara
E, de leve, arranhou o saibro do terreno.
Debil som, que é de voz apenas arremêdo,
Com esforço penoso ás fauces arranquei.
Isto bastante foi para metter-lhe medo,
E affastal-o d՚alli... De nada mais eu sei.
Meu sonho extremo foi celeste e clara estrella,
Que, longinqua, attrahiu a minha vista escura.
Raios de vaga luz, alternos, a envolvel-a,
Destacavam-lhe em cheio a divinal figura.
Sahiram da inacção os membros meus tolhidos;
Mas fiquei mergulhado em plena indifferença.
Uma expressão tristonha havia em meus sentidos,
Vertiginosa sim, mas de uma força intensa.
E descahi, de novo, em morna lethargia.
Após... um debil sopro, um leve estremeção,
Paráda nas funcções, deliquio de agonia,
Que o sangue me gelou no peito ao coração;
Mais tarde, um faiscar, que o cerebro me cruza,
Violenta pulsação do peito sobre a arcada,
Um requinte de dôr, que em contorsões se accusa,
Um soluço... um suspiro... e tudo foi... mais nada.
Despertei. Onde paro? E՚ mesmo humano aspecto
Este, que vendo estou e sobre mim se pende?
E՚, na realidade, o que me abriga um tecto?
E՚ certo que num leito o corpo meu se estende?
São mesmo olhos mortaes os olhos fulgurantes,
Que me estão a fitar com expressão tão doce?
Vendo-os, fechei os meus. Julguei, breves instantes,
Que effeito do delirio aquella vista fosse.
Moça esvelta, gentil, de longa cabelleira,
Velava-me, sentada ao pé do muro. O raio
De seu olhar me deu a sensação primeira,
Que pude experimentar, após longo desmaio.
Olhos de negra côr, ingenuos, compassivos,
Revelavam por mim angelica bondade.
Fitando-a, convenci-me estar inda entre os vivos,
Não ser ella um phantasma e sim realidade.
A donzella sorriu, quando eu, quebrado o sello,
Que ás palpebras me fôra um véu tardo e molesto,
Algo tentei dizer, mas sem poder fazel-o:
Um dedo aos labios poz, em gracioso gesto.
Recommendava assim que eu me guardasse mudo,
Até que recobrasse a robustez inteira;
Tocou em minha mão e, cuidadosa em tudo,
Almofadas dispoz á minha cabeceira;
Sobre as pontas dos pés andando pela sala,
Da porta se abeirou; volveu mansinho, a chave;
Algumas phrases disse em branda voz... Que fala!
Jamais, jamais ouvi accento, tão suave.
Musica havia até no som dos passos d՚ella.
Chamára. Os que chamou respondem co՚ a mudez.
Dormiam. Retirando, a dextra da donzella
Num singelo mencio, oh que protestos fez!
Dizia esse signal que eu bem seguro estava;
Que podia dispôr de tudo no seu lar;
Que dentro havia alguem; que a volta não tardava.
Sahiu. Triste fiquei de alli a sós ficar.
Voltou, logo depois, de pai e mãi seguida...
Mas... para que narrar o que me succedeu,
Desde a hora, em que fui restituido á vida
Nesse hospedeiro lar, que em si me recolheu?
Acharam-me no steppe, atado, semi-morto.
Prompto, á proxima choça em braços fui levado.
Acordaram á vida, á força de conforto,
Quem para ser seu rei estava destinado.
Por vingança, um sandeu forjou-me atroz requinte
De angustias. De um corcel ao galopar, sem termo,
Impelliu-me, sangrento e nú e atado, acinte,
Por selvas. Só logrou mudar-me em throno o ermo.
Que homem póde saber a sorte, que lhe cabe?
Ninguem perca o valor. O forte tudo arrosta.
Poderão, amanhã... nossos corceis. Quem sabe?
Beber e apascentar na ribanceira opposta.
Nunca saudei de um rio as aguas, tão contente,
Como as tuas serão, Borysthenes, saudadas,
Quando te houver vingado a rapida corrente,
A salvo e unido aos meus... Boa noite, camaradas!
E o hetman preparou do robre sob a rama,
Folhas verdes do bosque e nellas se estendia.
Não achou desusada ou dura aquella cama,
Pois elle em qualquer sitio, e hora adormecia.
E si, acaso, ao leitor fôr causa de extranheza
De Carlos a mudez, bem franco lhe direi
Que não soffreu Mazeppa a minima sorpreza,
Pois que, de ha muito, ouvia o resonar do rei.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.

