CAPÍTULO III A ilha Terceira durante o reinado de D. Afonso VI; exílio de El-Rei para o Castelo de São João Baptista; causas do seu regresso para Sintra, onde morreu Feita a cerimónia da quebra de escudos ao receber-se a notícia da morte de D. João IV, procedeu-se em seguida à aclamação do novo Rei em toda a ilha Terceira. Com a vinda do novo governador do Castelo tinham serenado os ânimos dos angrenses, com exceção dos franciscanos aonde chegara também ambição do poder. Desde 1653 que reinava a discórdia nos claustros de São Francisco, formando-se dois partidos: um, dos «calfurras», e o outro, dos «catrinetas», e influindo consideravelmente estas desinteligências nos outros mosteiros e conventos. Em 1657 rebentou escândalo no Convento de São Francisco, chegando a haver escaramuça entre os frades e ficando morto na contenda um pobre leigo. Queriam estes religiosos exercer preponderância em todas as outras ordens religiosas, pelo que chegaram às mãos do Papa várias reclamações de uns e de outros. De tal modo resolveu Sua Santidade a questão, que logo se confraternizaram os franciscanos, elegendo para seu superior frei Fernando da Conceição Naranjo. Este homem, ilustre pelo seu saber e austero no exercício do seu cargo, era filho de António Naranjo, fidalgo espanhol, e nascera no castelo de São Cristóvão, onde seu pai era sargento-mor. Cursou depois a Universidade, onde se tornou distinto, e foi sob a sua direção que se iniciaram os trabalhos de reedificação do convento de São Francisco em 1663, os quais se completaram em 1672, importando aquela obra em 13:044$000 réis, quantia excessivamente grande naquela época.


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Em 1660 tendo vagado o lugar de governador do castelo, foi provido naquele cargo Francisco de Ornelas da Câmara, que assim veio a receber, tão tarde, o galardão dos serviços prestados à sua pátria. A este benemérito sucedeu no governo do castelo, em 1666, o mestre de campo Sebastião Correia do Lorvela, natural desta ilha Terceira. Em Portugal dirigia a nação a Rainha D. Luísa de Gusmão, durante a menoridade de seu filho, que contava apenas treze anos quando fora aclamado Rei. O novo Rei, que aos quatro anos adoecera gravemente sobrevindo-lhe uma hemiplegia, mostrava em pouco tempo ser um perfeito cretino, devido talvez à sua doença ou a qualquer defeito orgânico do seu cérebro, aliando sentimentos pouco honestos para um homem e muito menos para um futuro Rei. Incapaz de aprender e confiado desde criança a homens pouco escrupulosos do seu dever, e alguns da classe mais baixa do povo, onde sobressaiam António e João Conti, filhos de um mercador genovês, e a quem D. Afonso mais apreciava, não era de esperar que dali pudesse vir um bom Rei. A Rainha mãe, vendo-se em meio de desavenças partidárias, que sempre têm lugar nos períodos de regência, nomeou, como dirigentes do governo de Portugal, D. António Luís de Menezes, Conde de Cantanhede, e D. Francisco de Faro, Conde de Odemira, os chefes dos dois partidos políticos, para assim mantê-los em harmonia nos negócios internos do país e defendê-lo do estrangeiro que o ameaçava a cada instante. Com muito custo conseguiram desviar D. Afonso dos seus companheiros de estroinice, e quando teve de cessar a regência de D. Luísa de Gusmão, em 22 de junho de 1662, já o Rei era dominado pelo Conde de Castelo Melhor, homem ativo e ambicioso, mas detestado pela Rainha mãe e pelo Infante D. Pedro: e contudo Portugal ficou-lhe devendo a sua liberdade com as vitórias alcançadas pelos generais portugueses contra os espanhóis, sobressaindo a todas, a célebre batalha de Montes Claros, que acabou de firmar a independência do povo português. Em 1666 celebrava-se, com grande contentamento para os portugueses, o casamento de D. Afonso VI com D. Maria Francisca Isabel de Saboia, filha de Carlos Amadeu de Saboia, Duque de Nemours; e poucos meses depois resultava deste enlace, em que todos esperavam um auxílio poderoso da França, a aversão da Rainha para com o seu esposo e a ligação incestuosa com seu cunhado, o infante D. Pedro. Aos planos vergonhosos do cunhado, antepunha-se o vulto do Conde de Castelo Melhor. Era preciso aniquilá-lo; e assim o conseguiram para mais facilmente deporem o pobre Rei D. Afonso. A 21 de novembro de 1667, recolhia-se a Rainha ao Convento da Esperança, enquanto D. Pedro tratava de reunir o conselho de estado, para dar seu irmão por incapaz de governar e ser ele nomeado regente.


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No dia seguinte realizava-se tão iníquo projeto e dava-se o primeiro passo para um capítulo vergonhoso da história portuguesa. Com a deposição do desditoso Rei, começou esse processo vergonhoso e indigno de nulidade de matrimónio, movido pela própria Rainha e auxiliado por meia dúzia de homens sem brio nem dignidade e que a tudo se prestaram para alcançarem a magnanimidade real. A 24 de março de 1668, lavrava-se a sentença; e, três dias depois, reuniam-se pelos laços do matrimónio, o infante D. Pedro com D. Maria Francisca de Saboia. Estava consumado o escândalo! No ano seguinte, nascia o primeiro fruto deste enlace, a infanta D. Isabel, cujo estado débil e raquítico tanto sobressaltou os pais, que fizeram votos solenes a várias imagens, entre as quais foi considerada a do Menino de Deus, do presépio das religiosas da Vila da Praia. Para esse efeito, mandaram abonar anualmente na alfândega duas arrobas de cera. Hoje encontra-se aquela imagem na igreja matriz da Praia da Vitória e até há pouco recebia anualmente da Fazenda Pública a quantia de 36$000 réis. Enquanto isto se passava, jazia enclausurado o desditoso D. Afonso. A sua presença no reino incomodava seriamente seu irmão, que, para o afastar de si, resolveu mandá-lo como prisioneiro para o Castelo de São João Baptista. Para esse fim mandou aprontar quatro naus e nomeou Francisco de Brito Freire para acompanhar El-Rei ao castelo da ilha Terceira, sendo também o almirante da armada. Na véspera da partida, não satisfeito com o encargo que lhe fora destinado, resolveu Francisco de Brito vestir a roupeta dos padres da Cotovia, pelo que foi preso e destituído das suas honras, cargos e prerrogativas. Para o seu lugar foi nomeado o sargento-mor de batalha Manuel Nunes Leitão. Ignorava-se na ilha Terceira os acontecimentos que acabamos de narrar, quando no dia 17 de junho de 1669, apareceram três fragatas e uma caravela bordejando em frente à baía de Angra, sem comunicarem com terra. No dia seguinte, fundearam; e só depois de saltarem em terra alguns oficiais em serviço e terem conferenciado com as autoridades principais, é que se espalhou a notícia de estar a bordo D. Afonso VI, como prisioneiro e desterrado. Desembarcaram primeiramente o Dr. António Velez Caldeira, secretário da embaixada, e o comissário geral de cavalaria João Cardoso Pizarro, que marchou logo para o castelo, com aviso ao governador Sebastião Correia de Lorvela, enquanto o Dr. Caldeira se dirigia para a casa da Alfândega, onde residia o desembargador Agostinho Borges de Sousa. A convite de D. Francisco de Sousa, Marquês de Minas e Conde do Prado, seguiu para bordo o senado de Angra, onde foi recebido com todas as cerimónias, sendo-lhe entregue, naquela ocasião, as instruções do Regente


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sobre o acondicionamento do Rei no Castelo de São João Baptista e a seguinte carta do infante D. Pedro, prevenindo a Câmara de Angra da vinda de D. Afonso: «Juízes, vereadores e procurador da Câmara da cidade de Angra: — Eu o Príncipe vos envio muito saudar. — Sendo-me presente os muitos achaques, que sempre padeceu e agora padece a pessoa de meu irmão, e conhecendo eu que pelo horror e escândalo com que se acham os povos deste reino na lembrança de seu governo; não se achando desta parte lugar adonde com algum alívio pudesse segurar dignamente sua pessoa, a cujo risco seria preciso que o expusesse a violências e indignação, e grande desordem: — Desejando achar meio com que pudesse dispensar na reclusão que se lhe julgou pelos três estados do reino juntos em cortes: Por todas estas razões, como pelas muitas que concorrem da larga e grande experiência que tenho da fé e zelo dos moradores dessa ilha: Fui servido dispor que fosse meu irmão a viver nela, e que se aposentasse nas casas da fortaleza dessa cidade, assim por serem as mais capazes, como por concorrerem no sítio todas as circunstâncias que se requereria para a saúde e para a autoridade, tendo de mais destas qualidades o divertimento da caça a que é inclinado, que não podia lograr neste reino pelas razões referidas. — E como tenha tão larga prova do zelo e grande fidelidade com que sempre procedeu a nobreza e povo dessa ilha, espero se obrigarão e estimarão como devem o fazer deles tão larga confiança, mostrando nesta ocasião o mesmo amor e exemplo com que acudiram, e acodem sempre, à conservação destes reinos, de que me acho com toda a satisfação, e desejo de vos honrar, e favorecer no geral, e no particular, como experimentareis em todas as ocasiões. — Ao Conde do Prado, dos meus conselhos de Estado, e Guerra, das armas da província de Entre Douro e Minho, e meu embaixador extraordinário a sua Santidade entrego a pessoa de meu irmão para o levar e comboiar a essa ilha, e apresentá-lo nela com aquela casa e serviço que me pareceu conveniente. Pelo que vos ordeno, e mando, que em quanto o dito Conde estiver dessa banda o obedeçais em tudo que vos ordenar da minha parte, cumprindo, guardando as suas ordens de palavra, ou por escrito, tão pontualmente como se fossem dadas por mim. — E porque em sua ausência Manuel Nunes Leitão, sargento-mor da batalha, que tenho nomeado governador do Castelo de São João Baptista dessa ilha há-de ficar governando a casa e pessoa de meu irmão, lhe assistireis com todo, e por todo que vos representar, dando inteira fé e crédito a quanto vos disser de minha parte. — Escrita em Lisboa a 25 de maio de 1669, — Príncipe». Ao cabido da Sé foi também dirigida a seguinte carta: «Deão, dignidades, e cabido da Sé de Angra: — Eu o príncipe vos envio muito saudar. — Por desejar que meu irmão vivesse com maior alívio, e menos


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reclusão do que se julgou que tivesse pelos três estados do reino juntos em Cortes, e entender dele que desejava estar em parte donde lhe fosse possível gozar do divertimento do campo, livre de todo o cuidado e cerimónia, considerando por outra parte, se o apartasse de mim dentro deste reino ficaria exposto necessariamente ao clamor, imortal queixa com que os povos viviam do seu passado governo: e que não seria possível prevenir contra o seu natural, que não recaísse em contínuos riscos de vida, e da autoridade: desejando achar meio, que segundo o respeito de sua pessoa conseguisse igualmente o refúgio, e a comodidade que convém, resolvi, com notável e grande aprazimento de meu irmão, que fosse a viver nas casas da fortaleza dessa ilha, assim por a sua capacidade, como por ser o sítio aprovado pelos médicos, e aplicado por eles para remédio dos achaques que padece: de que me pareceu mandar-vos dar conta por esta minha carta, fiando de vossas pessoas, e grande prudência, que com zelo e amor do serviço de Deus, e da conservação e quietação deste reino, vos havereis neste negócio em tal forma, que tenha muito que vos agradecer. — Escrita em Lisboa a 25 de março de 1669. — Príncipe. — Para o cabido da Sé de Angra.» Só no fim de três dias é que se procedeu ao desembarque, que foi anunciado às 4 horas da tarde, por um tiro de peça disparado da nau. A este sinal, partiram imediatamente para bordo os batéis do porto da cidade e, logo que se dispôs o cortejo, embarcou El-Rei num bergantim e dirigiu-se para o Portinho Novo, onde desembarcou encostado aos braços do Marquês de Minas. Ao passarem a ponta de Santo António, começou a salva de artilharia em todas as plataformas e baluartes do castelo, que foi correspondida pelos navios da armada. Depois de ter subido vagarosamente até à planície que ficava sobranceira ao ponto de desembarque, entrou D. Afonso para uma liteira que o conduziu ao Castelo de São João Baptista, sendo recebido às portas desta fortaleza pelo governador Sebastião Correia de Lorvela, que fez a entrega das chaves com as cerimónias do estilo. A esta cerimónia seguiu-se uma salva de vinte e um tiros, que foi correspondida com repiques de sinos em toda a cidade, manifestando-se um contentamento geral pela receção de uma pessoa real. Por não estarem ainda concluídos os aposentos dos governadores do Castelo, foi escolhida, para residência de D. Afonso VI, a parte baixa que fica contígua ao atual palácio do general. Ainda existe, sobre a porta de uma pequena alcova, as armas reais daquela época, indicando ter sido ali o quarto onde dormia o desditoso rei português. Nas imediações do palácio ficaram alojados os capitães da guarda e criados de superior graduação, enquanto que o Marquês de Minas e seu filho, D. Pedro, foram residir na casa da Alfândega.


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à entrada de El-Rei no castelo, foi entre, ao governador uma carta do infante D. Pedro, concebida nos seguintes termos: — que para quietação do reino, por seus vassalos mal sofrerem a condição feroz de El-Rei seu irmão, importava que ele estivesse retirado naquela praça, de cujo governo o dava por desonerado; porquanto havia provido nele o sargento-mor de batalha Manuel Nunes Leitão, pessoa esta a cujo cargo se havia entregue a direção, e superintendência da casa do dito Rei; e que em satisfação do bom serviço que ele Sebastião Correia lhe tinha feito, queria o dito senhor, que, sem embargo de ficar deposto do cargo, gozasse em sua casa o mesmo soldo, que receberia como se nele permanecesse. Não se conformou o Marquês de Minas com as determinações do Infante e resolveu conservar no governo do castelo Sebastião Correia de Lorvela, ficando para serviço de El-Rei, Manuel Nunes Leitão, como provedor da casa e superintendente dela, e como assistentes da sua guarda, Martim Afonso de Melo e Sá, Luís de Sá e Miranda, Fernão Barbalho Bezerra, Estêvão Augusto de Castilho e Diogo Soares Pereira, que fora mestre de campo na Província do Minho. Para pessoal inferior ficaram: cinco guarda-roupas, cinco moços de câmara, um escrivão de cozinha e tesoureiro, um médico, um cirurgião, dois capelães, dois moços de capela, um monteiro, um comprador e um mestre de cozinha, dois reposteiros, quatro oficiais de cozinha, dois moços da prata e um varredor. Depois de instalado o pessoal da câmara de El-Rei, e dadas as instruções precisas para a conduta a seguir com a pessoa real, seguiu a armada para Lisboa, onde o Marquês de Minas informou o Regente de tudo o que se tinha passado e quais as ordens que julgara convenientes para as autoridades de Angra. Satisfez-se plenamente D. Pedro com a missão do Marquês, escrevendo imediatamente as seguintes cartas de agradecimento ao cabido da Sé de Angra e à Câmara: «Deão, dignidades, e cabido da Sé da cidade de Angra da ilha Terceira: — Eu o Príncipe vos envio muito saudar. — O conhecimento que sempre tive do amor e zelo com que serviste a El-Rei meu senhor, e pai, que santa glória haja, foi o motivo que me obrigou a esperar que nesta ocasião tão importante procederíeis da mesma maneira. E não me enganei, porque assim o experimentei, e assim mo significou o Conde do Prado D. Francisco de Sousa. O serviço que nesta ocasião me fizestes me ficará muito na memória, para as ocasiões de vos fazer mercê, que podereis esperar muito igual e conforme o vosso merecimento. — Escrita em Lisboa a 28 de agosto de 1669. — Príncipe».


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«Juízes, vereadores, e procurador da Câmara da cidade de Angra da ilha Terceira: — Eu o Príncipe vos envio muito saudar. — Recebeu-se a vossa carta, e por ela, e pelo que me significou o Conde do Prado D. Francisco de Sousa, vejo que continuais a mesma lealdade, que El-Rei meu senhor e pai começou a experimentar em vossos ânimos logo que entrou na posse destes reinos. Esta foi a razão que me obrigou a escolher esse sítio, e a confiar de vós a pessoa de El-Rei, tendo por certo que para seu cómodo, e decência o não podia haver mais capaz. Espero que nesta ocasião tão importante provareis merecer em meu serviço a justa confiança que faço de tão leais vassalos, como sempre fostes, para que eu tenha lugar de vos fazer toda a mercê, e honra que desejo. — Escrita em Lisboa a 28 de agosto de 1669. — Príncipe». Para entretenimento de D. Afonso, abriram-se e aplanaram-se alguns caminhos no Monte Brasil, especialmente na parte oriental e alguns no Pico do Zimbreiro que demanda a baía do Fanal. Nos primeiros meses do seu desterro, via-se D. Afonso, nas tardes calmosas do verão, caminhar lentamente pelos caminhos tortuosos do Monte Brasil e por fim sentar-se, triste e melancólico sobre algumas pedras, olhando para a imensidade das águas do Atlântico e fitar o horizonte, abstrato a tudo o que se passava em volta. Ali permanecia por muito tempo até que, alguns dos seus companheiros o convidavam a voltar para o castelo. No fim de pouco tempo se enfastiou D. Afonso dos seus passeios, permanecendo dias consecutivos no seu quarto e saindo apenas para ouvir missa. Tornara-se mais misantropo e irritável. Passava a maior parte do dia maltratando ou altercando com os seus criados e desprezando, à tarde, o que de manhã apreciara. Eis o que nos diz o Padre Maldonado da vida de D. Afonso VI, na ilha Terceira, o que deve ser considerado como verídico, por ser aquele sacerdote capelão do castelo naquela época: «Era dotado de uma prodigiosa retentiva, bastando que lhe dissessem o nome de qualquer pessoa uma só vez para lhe ficar em lembrança para sempre. Compadecido da miserável pobreza, todos os dias a socorria da sua mesa, com tal excesso, que se poderia dizer prodigalidade; e tudo dera a não ser proibido aceitar outra alguma cousa de sua mão. A mesma roupa que trazia de verão usava de inverno; sobre a camisa ligava-se com toalhas, tão seguras a poder de alinhavos, que por grandes movimentos que fizesse o corpo, elas não lhe faltavam, sendo assim que dormia. Comia uma única vez ao dia, porém com tal avidez, que se reputava achaque. Duas ou três vezes esteve doente de febre, e uma delas foi a ponto de dar bastante cuidado a sua vida.»


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Era passado quase um ano que D. Afonso vivia desterrado na ilha Terceira, sem se receberem notícias de Portugal, o que era raro naquela época, em que as frotas portuguesas cruzavam os mares dos Açores em busca dos corsários ou para comboiarem as naus do Oriente. Em maio de 1670 fundeava no porto de Angra uma caravela holandesa e por ela se soube que o infante D. Pedro ficara em perigo de vida. Sobressaltaram-se os terceirenses com esta notícia; e entre os da comitiva real murmurou-se logo sobre a restituição da coroa portuguesa a D. Afonso, se acaso morresse seu irmão. Dias depois soube-se, por um outro navio vindo de Lisboa, não ser exata a notícia; mas nem por isso deixaram de continuar as intrigas entre os serventuários de El-Rei, uns por conveniência pessoal e outros por inveja das mercês que lhes não eram conferidas. Avisado o Regente de tudo o que se passava na ilha Terceira, mandou logo recolher ao reino, Luís de Sá e Fernão Barbalho, sobre quem recaiam todas as suspeitas, conseguindo desta forma que os ânimos serenassem por algum tempo. Em 1672 falecia no castelo de Angra o governador Sebastião Correia de Lorvela, sendo nomeado para aquele lugar Manuel Nunes Leitão, provedor da casa de D. Afonso VI. Ao seu carácter intriguista e vingativo, deveram os angrenses várias dissabores. Sabendo dissimular as suas opiniões, afetando magnanimidade e delicadeza para mais tarde se transformar em vingança pessoal, estabeleceu uma política puramente sua e algo despótica! O seu principal defeito foi apresentar ao Regente parte dos habitantes de Angra, aqueles que lhe não eram afeiçoados, como os promotores da futura conspiração a favor de D. Afonso, bandeando-se algumas vezes com os da comitiva real, que a seu turno espalhavam a cópia de alguns pasquins impressos em Lisboa, incitando o povo a uma revolta. Esta notícia aterradora, recebida por alguns navios estrangeiros, excitou ainda mais os ânimos dos terceirenses, a ponto de Manuel Nunes Leitão redobrar de atividade, estabelecendo uma espionagem em toda a ilha Terceira e mandando efetuar várias prisões sem culpa formada. Não se demorou o governador em participar ao infante D. Pedro os acontecimentos da ilha Terceira e o perigo em que estava D. Afonso de ser novamente colocado no trono. No dia 10 de agosto de 1674, fundeava na baía de Angra a fragata portuguesa Piedade, comandada por Francisco Guedes Ferraz, e dois dias depois apareceram mais sete embarcações de guerra, que ficaram cruzando em frente do porto. A presença destes navios e a incomunicabilidade com a terra durante dois dias, levaram os terceirenses a formularem hipóteses, afirmando alguns que seria para um ataque à fortaleza para levarem preso D. Afonso. No dia 13, aproximou-se de terra uma caravela desembarcando pacificamente


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o filho do governador, que partira desta ilha no dia 20 de janeiro daquele ano, por ordem de seu pai, com a narração circunstanciada dos acontecimentos políticos na ilha Terceira. No dia seguinte, fundeava toda a armada, salvando a terra, e desembarcava solenemente o general de armada Pedro Jacques de Magalhães e outros funcionários que o acompanhavam, bem como três companhias de soldados com armas e munições. Depois de conferenciarem com o governador, que viu chegada a hora da sua vingança, procederam durante as noites subsequentes a várias prisões, tanto de eclesiásticos como seculares, sendo colocados os prisioneiros incomunicáveis a bordo dos navios. No dia 24 de agosto, embarcava subitamente D. Afonso VI, sendo conduzido até ao Porto Novo em cadeira rasa, por quatro fidalgos dos mais importantes que vinham na armada. Permaneceram fundeados os navios na baía de Angra durante seis dias, findos os quais, levantaram ferro e seguiram para Lisboa, onde chegaram no dia 14 de setembro, fundeando em Paço de Arcos. Por ordem do regente, seguiu para Lisboa, o governador Manuel Nunes Leitão, sendo escolhido para o substituir o mestre de campo Diogo Soares Pereira; porém, sabendo o general Pedro Jacques a grande indisposição que havia entre aquele oficial e a nobreza de Angra, mandou-o embarcar sob o pretexto de comandar a divisão e em seu lugar ficou o tenente general António Coelho de Castro, a quem foi dada a patente no dia 25 de agosto. Logo que o infante D. Pedro teve conhecimento da chegada de seu irmão a Lisboa, mandou a bordo o Duque de Cadaval para o acompanhar até Sintra, onde foi novamente enclausurado, até que faleceu no dia 17 de setembro de 1683. Os prisioneiros angrenses, que acompanharam D. Afonso, foram recolhidos no palácio, procedendo-se depois contra eles, por uma simples formalidade, ao reconhecer-se a falta de culpabilidade. Alguns criados de D. Afonso foram executados e outros degredados; e por último pagou com a vida o ex-governador Manuel Nunes Leitão, pela pouca dignidade e retidão com que se houve no levantamento dos autos.


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