Morto (grafia de 2008)

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No féretro negro, por entre os círios langues, o grande, o doloroso Errante está serenamente morto.

Está morto, no féretro negro, para nunca mais ressurgir! aquele espírito doentio e torturado, aquele organismo triste, tenebroso, que trágicos pessimismos humanos fecundaram do ódio mais canceroso, gangrenado.

Ali está, gélido, rígido, alto, esquelético, com o fino aspecto delicado e singular de um magno aristocrata martirizado, inquisitoriado, a cujo fugitivo semblante duros cilícios deram a expressão lancinante de sacrifício ascético.

Não sei sob que sugestão de pesadelo ou de letargo fica o pensamento diante desse mortuário aparato, que o morto parece avultar aos meus olhos, ter a enformatura titânica, a grande e extraordinária corpulência de gigante rojado por terra, subjugado, vencido pela majestade suprema de urna dor avassaladora, imensa...

Do tom negro do féretro destacam, brusca e pavorosamente, os tons brancos, álgidos, crus, irritantes, dos gelos da Morte...

O corpo, hirto, tensibilizados os nervos na extrema convulsão do tremendo e derradeiro momento, tressua um frio horrível, lesmento, que parece, tal a agudeza da impressão mortal que se experimenta, tocar, envenenando, por filtros letais, o pensamento...

No silêncio aflitivo e torvo do ambiente como que vagam, num refrain lúgubre, numa sinistra litania, errantes, incoercíveis vozes de além-túmulo, crocitando: morto, morto, morto!

E a impiedosa palavra, amargamente desdobrada em angústias, ecoa, ecoa, perde-se no silêncio aflitivo e torvo do ambiente, como um dobre agudo, cortante, arrepiando e pungindo: — morto, morto, morto!...

No entanto, esse aristocrático cadáver, que agora tudo aterroriza e lesma, edificou outrora na Imaginação palácios encantados de índias opulentas, bebeu o vinho perturbador da Vida até à saciedade, sentiu com intensidade a paixão das cousas como chamas eternas que o devorassem e, como por um lodo verde e putrefato, foi vorazmente invadido pela febre pestilenta do Mal...

Goza-se agora uma sensação esquisita, mas eloqüentemente bela, em evocá-lo em Vida: quando ele voltava da vertigem, da alucinação das turbas; quando ele errava exilado, perdido, lívido, soturno, silhuético na sombra da multidão desdenhosa, arrastado pelo turbilhão devorador dos fatos, sem hora e sem rumo, como fora de todo o tempo e de todo o espaço, — fantasma do Vácuo, impelido pela avalanche sangrenta dos sentimentos atrozes que o apunhalavam, que o retalhavam...

Evocá-lo em Vida, desde a profunda cabeça que um nirvanismo búdico assinalava, cabeça venenosa de serpente que em vão a si própria morde, cabeça donde voejaram idéias sinistras como famulentas aves de rapina.

A face, branca e lânguida, de um estremecimento precocemente senil, que os livores de intensa mágoa tornavam ainda mais branca, mais esmaecida e transfigurada... Face trêmula e fria, como velho e maravilhoso mármore móvel, acusando todos os nervosismos interiores, todas as vibrações recônditas, todos os tédios desesperados e infinitos.

Os olhos lúridos, desse lúrido sombrio que dá a biliosa expansão dos ódios, olhos turbados pelos nevoeiros da amargura, pela melancolia da meditação, ou estranhamente iluminados pelos incêndios do delírio e onde a feérica fantasia rutilara e cantara outrora; esses olhos fatigados que tanto se queimaram de curiosidades exóticas, de visualidades fantásticas, de miragens excêntricas, que tanto se embriagaram na orgia da luz e do sangue, que tanto viram, gozaram, se extasiaram e esgotaram na paixão de olhar, que tantas vezes sentiram, atônitos, estupefatos, a Visão do Ignoto persegui-los, afligi-los, agoniá-los...

A boca, a boca mordaz de outrora, acre, violenta, remordida asperamente de um sarcasmo satânico, ansiada de apetites, aberta na febre voluptuosa de devorar os frutos atraentes do pecado, e rubra, rubra, acesa num colorido vermelho de guerra, gritando e cantando guerra, gritando e cantando guerra, gritando e cantando guerra, guerra, guerra, guerra, por toda a parte, por toda a parte, por toda a parte...

Evocá-lo nas mãos, luxuosas mãos de príncipe esvelto, esgalgado, nas mãos de falanges longas, e rememorar que gestos curiosos, magos, que hieróglifos demoníacos, que símbolos miraculosos aquelas mãos não traçariam finamente no ar!? Quanto poder dominativo, real, que solenes predomínios, que majestade suprema, só com um sinal rítmico dessas mãos inteiriçadas agora! Quanto ideal e quanta glória impulsionados no gesto simples, sóbrio, das mãos que tão veementemente palpitaram, que tanto estremeceram e pulsaram vivas como dois estranhos corações que vibrassem juntos! Que fugidias expressões nas linhas, nas curvas e que fluido de mistério, que segredo nos atritos, no contacto quente dessas mãos que foram já os seres caprichosos, flexíveis, dúcteis, das delicadezas da forma. Dessas mãos batalhadoras, combatentes, tenazes, onde uma vitalidade excepcional de atividades circulava; mãos intrépidas, vitoriosas, cheias de emoção, de sensibilidade, de alma, penetradas de uma bravura indômita de aplicação, de altivez e sereno orgulho; mãos donde parecia alarem-se leves asas diáfanas e triunfais de um sonho e cuja ramificação das veias, em múltiplos raios estriados, parecia também acusar uma eflorescência perpétua de qualidades, de aptidões, de sentimentos, de gostos, de secretas e particulares predileções do tato...

Para onde foi, já, todo esse surpreendente encanto das mãos, toda essa maravilha de sutilezas de pássaro, de névoa, de nuvem, que as duas mãos enigmáticas desse enregelado e esgalgado cadáver por tanto tempo prodigiosamente contiveram?! Onde, já, a beleza artística do seu gesto, a graça da sua ductilidade, a eloqüência do seu movimento?...

E os pés, — ah! — e os pés?! Por onde ficou perdido todo aquele alvoroço e ardor de caminhar, toda aquela sede insaciável, toda aquela angústia de percorrer caminhos, de demandar estradas, de conquistar distâncias, de romper nervosamente, infatigavelmente, o rumo de um Destino desconhecido?! Onde essa febre, essa febre de caminhar, de vagar sonâmbulo, pelas noites, pelos dias, taciturnamente? Onde? Onde essa nervosidade, esse calor latente para errar, para noctambular só, por entre os rudes aspectos hostis da Natureza fechada em trevas, mudo e só nas noites, sem estrelas e sem rumo!

Onde a ansiedade vertiginosa, delirante, desses pés agora frígidos, parados no espasmo terrível, no doloroso enregelamento, petrificados na amargurante saudade de rasgar caminhos ermos e infinitos?! Pés inquietos, impacientes, atormentados pela desolação dos desertos, queimados pelas tórridas areias saarianas, e agora — ah! — para sempre álgidos, hirtos e horríveis, rígidos no féretro, para jamais caminharem, para jamais errarem, como que numa glacial ironia de mudez e terror...