Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Noite de um Visionario

Noite de um Visionario


Numero cento e tres. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfóla
E inopinadamente o corpo atóla
Numa poça de carne liquefeita!

— “Que esta allucinação tactil não cresça!”
— Dizia; e erguia, oh! ceu, alto, por vêr-vos,
Com a rebeldia acerrima dos nervos
Minha atormentadissima cabeça.

É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh’alma — este sombrio personagem
Do drama pantheistico da treva!

Depois de dezeseis annos de estudo
Generalisações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na comprehensão monistica de tudo.

Mas a aguadilha pútrida o hombro inérme
Me aspergia, banhava minhas tibias,
E a ella se alliava o ardor das syrtes lybias,
Cortando o melanismo da epiderme.

Ahrimánico genio destructivo
Desconjunctava minha autónoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que fórma a coherencia do ser vivo.

E eu sahi a tremer com a lingua grossa
E a volição no cumulo do exicio,
Como quem é levado para o hospicio
Aos trambolhões, num canto de carroça!

Perante o inexoravel ceu accêso
Aggregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injurias,
Recebiam os cuspos do desprezo.

A essa hora, nas telluricas reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das hervas.

E não haver quem, integra, lhe entregue,
Com os ligamentos glótticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angustia millenaria que o persegue!

Bolia nos obscuros labyrinthos
Da fertil terra gorda, humida e fresca,
A infima abscondita e grotesca
Da familia bastárda dos helminthos.

As vegetalidades subalternas
Que os serenos nocturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrinseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.

E no estrume fresquissimo da gleba
Formigavam, com a simplice sarcóde,
O vibrião, o ancylóstomo, o colpóde
E outros irmãos legitimos da amœba!

E todas essas fórmas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrivel,
Um pedaço de lingua disponivel
Para a philogenetica vingança!

A cidade exhalava um pôdre báfio:
Os annuncios das casas de commercio,
Mais tristes que as elégias de Propércio,
Pareciam talvez meu epitaphio.

O motor teleológico da Vida
Parára! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de materia dissolvida.

A chimica feroz do cemiterio
Transformava porções de atomos juntos
No oleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundancia de um geyser deletério.

Dedos denunciadores escreviam
Na lugubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moleculas soffriam.

Um necróphilo mau forçava as lousas
E eu — coetaneo do horrendo cataclysmo —
Era puxado para aquelle abysmo
No rodomoinho universal das cousas!