Outras Reliquias (Machado de Assis, 1910)/Poezia/O Almada/Advertencia

O assunto deste poema é rigorosamente histórico. Em 1659, era prelado administrador do Rio de Janeiro o Dr. Manuel de Sousa Almada, presbítero do hábito de São Pedro. Um tabelião, por nome Sebastião Ferreira Freire, foi vítima de uma assuada, em certa noite, na ocasião em que se recolhia para casa. Queixando-se ao ouvidor-geral Pedro de Mustre Portugal, abriu este devassa, vindo a saber-se que eram autores do delito alguns fâmulos do prelado. O prelado, apenas teve notícia do procedimento do ouvidor, mandou intimá-lo para que lhe fizesse entrega da devassa no prazo de três dias, sob pena de excomunhão. Não obedecendo o ouvidor, foi excomungado na ocasião em que embarcava para a capitania do Espírito Santo. Pedro de Mustre suspendeu a viagem e foi à Câmara apresentar um protesto em nome do rei. Os vereadores comunicaram a notícia do caso ao governador da cidade, Tomé de Alvarenga; por ordem deste foram convocados alguns teólogos, licenciados, o reitor do Colégio, o dom Abade, o prior dos Carmelitas, o guardião dos Franciscanos, e todos unanimemente resolveram suspender a excomunhão do ouvidor e remeter todo o processo ao rei.

Tal é o episódio histórico que me propus celebrar e que os leitores podem ver no tomo III dos Anais do Rio de Janeiro, de Baltasar da Silva Lisboa.

No poema estão os principais elementos da história, com as modificações e acréscimos que é de regra e direito fazer numa obra de imaginação. Busquei o cômico onde ele estava: no contraste da causa com os seus efeitos, tão graves, tão solenes, tão fora de proporção. Dos personagens que entram no poema, uns achei-os na crônica (Almada, o tabelião, o ouvidor, o Padre Cardoso e o Vigário Vilalobos), outros são de pura invenção. Aos primeiros (excetuo Almada) não encontrando vestígios de seus caracteres e feições morais, forçoso me foi dar-lhes a fisionomia mais adequada ao gênero e à ação. Os outros foram desenhados conforme me pareceram necessários e interessantes.

Não é exagerada a pintura que faço do prelado administrador. Era ele, na verdade, homem irritadiço e violento, conquanto Monsenhor Pizarro no-lo dê por vítima de perseguição. Inimigos teria, decerto, e de tais entranhas, que uma noite lhe disparam contra a casa uma peça de artilharia. Verdade é que da devassa que então se fez resultou ter sido aquele ataque noturno preparado por ele mesmo com o fim de se dar por vítima do ódio popular. O juiz assim o entendeu e sentenciou, e o prelado foi compelido a pagar as custas da alçada e do processo. Monsenhor Pizarro pensa que isto foi ainda um lance feliz dos seus perseguidores. Pode ser; mas capaz de grandes coisas era certamente o Almada. Não tardou que recebesse ordem da corte para desistir do cargo, como se colhe de um documento do tempo citado nas Memórias Históricas, tomo VII.

Observei quanto pude o estatuto do gênero, que é parodiar o tom, o jeito e as proporções da poesia épica. No canto IV atrevi-me a imitar uma das mais belas páginas da antiguidade, o episódio de Heitor e Andrômaca, na Ilíada. Homero e Virgílio têm servido mais de uma vez aos poetas herói-cômicos. Não falemos agora de Ariosto e Tassoni. Parodiou Boileau, no Lutrin, o episódio de Dido e Enéias; Dinis seguiu-lhe as pisadas no diálogo do escrivão Gonçalves e sua esposa, e ambos o fizeram em situação análoga ao do episódio em que imitei a imortal cena de Homero.

Não se limitou Dinis à única imitação citada. Muitas fez ele da Ilíada, as quais não vi até hoje apontadas por ninguém, talvez por se não ter advertido nelas. Indicá-las-ei sumariamente.

Um dos mais engraçados episódios do Hissope, o da cerca dos capuchos, parece-me discretamente imitado do diálogo de Helena e Príamo, quando este, no alto de seus paços, interroga a esposa de Menelau a respeito dos guerreiros gregos que vê diante de Tróia. O vaticínio do galo assado é nada menos que o vaticínio Xanto. A pintura do escudo de Aquiles inspirou certamente a do machete do Vidigal. Dinis faz a resenha dos convidados do deão, como Homero a dos guerreiros de Agamenon. No último canto do Hissope o gênio das Bagatelas pesa na balança as razões do deão e do bispo, como Júpiter pesa os destinos de Aquiles e Heitor.

Com tais exemplos, e outros que a instrução do leitor me dispensa apontar, e, porque é foro deste ramo da poesia, fiz a imitação indicada acima.

Agora direi que não é sem acanhamento que publico este livro. Do gênero dele há principalmente duas composições célebres que me serviram de modelo, mas que são verdadeiramente inimitáveis, o Lutrin e o Hissope. Um pouco de ambição me levou, contudo, a meter mãos à obra e perseverar nela. Não foi a de competir com Dinis e Boileau; tão presunçoso não sou eu. Foi a ambição de dar às letras pátrias um primeiro ensaio neste gênero difícil. Primeiro digo, porque os raros escritos que com a mesma designação se conhecem são apenas sátiras de ocasião, sem nenhumas intenções literárias. As deste são exclusivamente literárias.

Posto que o assunto entenda com pessoas da Igreja, nada há neste livro que de perto ou de longe falte ao respeito devido ao clero e às coisas da religião. Sem dúvida, os personagens que aqui figuram não são dignos de imitação; mas além de que o assunto pedia que eles fossem assim, é sabido que o clero do tempo, salvas as devidas exceções, não podia ser tomado por modelo. São do Padre Manuel da Nóbrega, da Companhia de Jesus, estas palavras textuais: "Os clérigos desta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos; porque, além do seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo e dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado... e outras coisas semelhantes por escusar seus pecados e abominações. De maneira que nenhum demônio temos agora que nos persiga senão estes. Querem-nos mal porque lhes somos contrários aos seus maus costumes, e não podem sofrer que digamos as missas de graça em detrimento de seu interesse".

Numa obra deste gênero pode-se e deve-se alterar a realidade dos fatos, quando assim convenha ao plano da composição; mas as feições gerais do tempo e da sociedade, a essas é necessária a fidelidade histórica. Foi o que eu fiz neste livro, convindo dizer que tudo aqui se refere ao clero do lugar e do tempo; nada generalizei, como Boileau, nos dois versos do seu Lutrin:

La déesse, en entrant, qui voit la nappe mise,
Admire un si bel ordre, et reconnait l'Eglise.

Por causa destes e outros versos, um comentador aplicou ao poeta aquilo que ele mesmo dissera do presidente de Lamoignon, que o convidara a escrever o Lutrin: Comme sa piété était sincère, aussi elle était fort gaie et n'avait rien d'embarrassant.

Dada esta explicação, necessária para uns, ociosa para outros, deposito o meu livro nas mãos da crítica, pedindo-lhe que francamente me aponte o que merecer correção.