IX


Profunda revolução se havia operado durante uma noite no intimo do bandido.

Quando elle chegou ao couto, estava já resolvido o assalto á familia de Liberato, a qual por se achar mais proxima do que qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.

Cabelleira não deu mostras de que approvava, ou reprovava semelhante resolução.

Seu animo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e investidas, mostrava-se agora frio diante do assentado acommettimento. Viração suavissima passára por cima do férvido charco das suas paixões, e deixára, senão purificadas, de certo quietas as aguas que ahi se ennovellavam turvas e lodosas. Essas aguas nunca jamais viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão, por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes que se geram e alimentam em putridos pantanos; podiam tornar-se mansas, como as dos lagos, azues como as dos golphos.

Ao principio os companheiros do bandido attribuiram o seu silencio, a sua tristeza e a sua abstracção aos ferimentos recebidos na luta. Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento querido que, não só a elle, mas tambem a todos os do couto proporcionava, nas mãos do inspirado tocador, momentos de prazer e consolação.

Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma verêda que ia ter á borda da grota aonde chegava levemente a aragem do taboleiro, e d'onde se descortinava o vasto sertão oppresso e abrazado.

Aos sons da viola puzeram-se uns a cantar, outros a dansar, como brincam saltando as crianças na campina.

De repente Manoel-corisco fez signal para que se calassem.

— Estou vendo alli em baixo um homem que vem na direcção da grota, disse elle aos camaradas.

— Vossê não se engana, Manoel. Elle vem tomando chegada tão gacheiro e amedrontado, que não póde ser amigo nosso.

Os saltedores tinham razão, porque o desconhecido era Mathias.

Um delles quiz immediatamente estendel-o por terra com um tiro do seu bacamarte. Assentaram porém occultar-se a fim de verem primeiramente o que pretendia.

Quando Mathias desappareceu por um lado, segundo já dissemos, os malfeitores sumiram-se pelo lado opposto, pé ante pé, na embocadura do profundo abysmo.

Tinha o Cabelleira avançado já alguns passos após os companheiros, quando uma idéa subita, actuando sobre sua vontade por modo irresistivel, o fez sobresaltar-se. Elle se lembrára de que si os companheiros conseguissem apoderar-se do desconhecido, não o deixariam com vida. Mas o bandido sentia-se naquelle momento tão pouco disposto a contribuir para a morte de um homem, que não pôde acabar comsigo que voltasse á beira da grota.

— Si eu quizesse, esse desconhecido não morreria, disse de si para si. Mas não. Si não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, tambem não o irei salvar.

O lodo tinha já desapparecido da superficie do charco immundo que elle trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo, como se vê, a vasa corrupta e pestilencial.

Para que Mathias declarasse o fim que o levava áquelle ponto, preciso foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nelle sem piedade. Supplicio atroz e cobarde que o indio soffreu com estoica resignação caracteristica de sua raça.

— Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno? perguntára Joaquim.

— Vim em procura daqueles que alli estão para os urubús comerem, respondera o velho.

— Até que emfim déste com a lingua nos dentes.

— Quizeste primeiramente provar o cipó de rego.

— Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso?

— Quem me mandou! Tive pena daquellas mulheres que choravam por seus maridos, e larguei-me a ver si os encontrava.

— Tiveste pena das mulheres, hem? Maganão! Havemos de lá ir hoje de noite para tambem termos pena como tu tiveste.

— Ellas não serão tão tolas que appareçam a qualquer que lá chegue, retorquiu Mathias com segunda tenção.

— Mas a ti abriram ellas a porta, velho mandingueiro.

— Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu sou incapaz de as offender

— Então, si lá formos, não nos deixarão entrar? perguntou Joaquim.

Mathias, depois de um momento de reflexão, respondeu:

— Só si forem comigo.

— Pois está dito. Iremos comtigo, disse o Mulatinho.

— Mas tu irás amarrado, bem amarrado, gia de lagôa, acrescentou José-trovão.

— Como quizerem, com tanto que não me matem no caminho.

— Si nos facilitares a entrada, pódes ter por certo que não haverá quem se atreva a tocar-te em um cabello siquer.

— Bem sabes que não precisamos do auxilio de pessoa alguma para tomarmos conta de uma casa onde só ha mulheres choronas, observou Joaquim. Mas sempre é melhor entrar sem fazer barulho para não dar que fallar á vizinhança.

Era quasi noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão, quando se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado entre elles, quatro seguiram com Mathias pelo lado por onde este havia descido, emquanto os outros, subindo pelo lado opposto, se dirigiram ao escondrijo a fim de se proverem dos instrumentos necessarios para o assalto. Os primeiros esperariam pelos ultimos na bocca da mata para, reunidos, seguirem a seu destino.

No momento em que os malfeitores tomaram a direcção da engenhoca, um cavalheiro, que entrára na mata por secretos atalhos, fôra dar com o Cabelleira em seu retiro. Era o Theodosio.

— Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento.

Foram estas as suas primeiras palavras.

— D’onde vens tu? Que diabo tens, Theodosio?

— Vem ahi soldados que nem terra.

— Quem te contou semelhante cousa?

— Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite da procissão.

— Ora!... Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca torci a cara a homem nenhum, e não morro de carêta, como saguí.

— Eu tambem não tenho medo delles, disse o cabra. Mas é bom a gente estar prevenido para não cahir no mondé como bicho do mato.

O Theodosio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer. Fino, matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição o crime que haviam elles commettido na villa.

— Ora, Theodosio! redarguiu José com mostras de fazer pouco do que lhe dizia o camarada. Eu, por ser bicho do mato, é que não hei de cahir no mondé. Olha tu: emquanto houver mata virgem por esse mundão de meu Deus, podem elles mandar contra mim os soldados que quizerem, que não me apanham, ainda que sejam tantos como formigas. Não me hão de ver nem a fumaça.

— Não digo menos disso, respondeu Theodosio.

— Eu sou cabra mesmo damnado — proseguiu Cabelleira. Quem se engana comigo é porque quer. Metto a unha no chão, e entro no ôco do mundo para nunca mais ninguem me pôr o olho em cima. As matas de Serinhaem, Agua-preta, Goitá, Goyanna, Parahyba, Rio-grande ahi estão bem fresquinhas para esconderem em seu seio a onça pintada. É bom que não me assanhem. Si o governador duvidar do meu sério, sou capaz de me largar daqui pi, pi, até á villa, e lá mesmo vou mostrar-lhe com quantos páos se faz jangada.

— Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão não tarda a roncar.

— Eu nunca deixei de trazer a faca e o bacamarte promptinhos para o serviço. Quem quizer, venha ver.

— Está bom. Até já, disse o Theodosio, despedindo-se para sahir.

— Aonde vás? perguntou-lhe o Cabelleira.

— Tenho cá uma idéa. Vou passar pela porta do capitão-mór.

— O capitão-mór está na villa, disse José.

— Não, senhor, está ahi. Veiu antes de mim, que não me escapou. Vou passar-lhe pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho que ahi se ache de serviço a fim de ver si pesco noticia que nos oriente.

— Não é máo o que queres fazer. Mas olha bem, não caias em alguma ratocira.

— Macaco velho não mette mão em combuca, respondeu Theodosio, preparando-se para montar novamente.

— Faço-te companhia até o cercado da engenhoca do defunto Liberato, acudiu Cabelleira.

E saltou sobre a garupa do cavallo que Theodosio pôz a passo pela vereda secreta que ia dar na via publica.

— Uê! exclamou Theodosio, voltando-se para o companheiro a fim de melhor saber delle a verdade. Pois morreu o Liberato, tão bom amigo nosso, que nunca nos faltou com geremús, cannas e criação?

— Elle era camarada, é verdade. Mas metteu-se-lhe na cabeça que havia de tirar-nos o couro, e ha tres dias veiu bolir comnosco.

— Que estás dizendo?

— Não só elle, mas tambem os filhos e o bom do genro.

— Foi a sua derradeira delles, hem?

— É verdade. O Zé Rufino, que o negro fôra convidar para o ajudar na tragedia que tinha ideado contra nós, correu logo a dar-nos parte de tudo ainda em tempo. Quando os cabras appareceram, encontraram gente. Fizemos o bonito em poucas horas. Estão todos dentro do grotão.

— E que vás tu ver á engenhoca?

— Vou reunir-me com os outros que lá estão fazendo uma das suas. Mas onde arranjaste tu este quartáu passeiro e passarinheiro que se vai derretendo na estrada depois da grande caminhada que traz da villa?

— Falta ahi engenho onde se vá buscar um animalzinho fóra de horas para a gente fazer sua viagem?

— Pois então vai logo pondo de olho alguns outros para fazermos a nossa mudança si a tropa vier perseguir-nos.

— Amanhã pela manhã teremos um lote, e poderemos metter terra em meio antes que o tropão bata por cá.

Tinham deixado a vereda, e achavam-se já na estrada que, fazendo pouco adiante um angulo, seguia em linha mais ou menos recta até o povoado.

Ao passarem por baixo de uma pitombeira que no angulo apontado agitava no ar a sua copa gigantesca, subito ruido espantou o cavallo que por um triz não tirou o cabresto da mão do Theodosio. Com o violento arranco, partiu-se a cilha da cangalha, e os dous cavalleiros vieram á terra.

— Diabo! exclamou o Theodosio contrariado e perturbado. Foi alguma curuja que abalou da pitombeira.

Não se havia partido só a cilha, mas tambem a armação da cangalha.

— Sabes que mais, Theodosio? Acho melhor, que não vás ao povoado.

— Porque não?

— A cilha partida, a cangalha arrebentada, tudo me parece aviso para que não faças a viagem, disse o Cabelleira.

— Estou já em outro accôrdo. Deixo-te o cavallo e vou a pé. Este cavallo é quem me está encaiporando.

Em quanto o Theodosio seguia pela beira do rio, o Cabelleira, que havia tomado a direcção da engenhoca, dava a volta do caminho, e descobria a casa envolta em chammas cujo clarão sinistro illuminava a estendida solidão. Em breves instantes achava-se entre os companheiros, e cortava, como vimos, a porfia do Trovão e do Mulatinho sobre a posse de Luiza.

— Luizinha! exclamou o bandido. Tu me pertences.

— Que dizes, Zé Gomes? interrogou Joaquim sem poder bem comprehender o que ouvira ao filho, que lhe pareceu hallucinado.

— Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ella, pertencer-nos na mocidade. Chegou a occasião.

— Atreves-te a fallar-me em juramento! Não sabes o que estás dizendo. Esta mulher é minha, e quem fôr homem que se metta a vir tomar-m’a.

Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabelleira puxava da faca dando mostras de querer ferir com ella o seu interlocutor.

— Zé Gomes! gritou este. Já te esqueceste de que sou teu pai?

— Não tenho pai; só tenho mãi que me ensinou o caminho do bem; pai nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquelle que só me ensinou a roubar e a matar.

— Zé Gomes, olha bem o que dizes! redarguiu Joaquim, medindo o filho com olhar ameaçador e terrivel.

— Já lhe disse, retorquiu o mancebo sobreexcitado pela opposição do velho, ao qual se atirou com furia brutal para lhe arrancar das mãos os pulsos de Luiza afogada em prantos e soluços.

Joaquim resistiu. Os outros malfeitores reuniram-se em torno daquellas duas hyenas que ameaçavam despedaçar-se mutuamente. Mas não houve um só d’entre tantos que tentasse compor os discordes.

Cabelleira brandiu emfim a faca contra o velho.

Neste momento voz chorosa e soluçada resoou na solidão. Foi a voz de Luiza.

— Cabelleira, disse ella, terás animo para ferir teu pai?!

O braço do bandido descahiu em continente como si aquella voz lhe tivesse cortado os musculos athleticos.

— Meu pai! exclamou o desgraçado. Um pai não toma a mulher de seu filho. Mas já que o queres, fica-te com ella, acrescentou voltando-se para Joaquim. Cabelleira vai desapparecer para sempre, e sem o seu auxilio hão de cahir nas mãos da justiça todos os que me cercam. A tropa ahi vem.

— A tropa! gritaram os malfeitores sobresaltados, olhando uns para os outros, e todos para a solidão que, ao declinar do incendio, retomava seu aspecto equivoco e medonho.

Tendo assim fallado, Cabelleira deu o andar na direcção da estrada. Seu espirito estava abatido, seu coração despedaçado pelo golpe cruel que lhe havia vibrado a desgraça.

Então Luiza, vendo assim perdido o ultimo raio de esperança que ainda a guiava no meio das trevas do seu infortunio, exclamou:

— Meu Deus, meu Deus, que será de mim?

Joaquim entretanto tinha-se atravessado diante do Cabelleira. Todo assassino é cobarde.

— Porque nos queres deixar? perguntou elle ao filho. No momento em que mais precisamos de ti, é que tu, nos desamparas? Não sejas mão, Zé Gomes. Eu te perdôo a desobediencia, e te restituo a mulher. Fujamos todos.

Cabelleira atirou-se a Luiza, e tomou-a nos braços com phrenesi de hallucinado.

Volvendo um instante depois os olhos ao redor, não viu um só siquer dos companheiros. Penetrados de panico terror, todos tinham corrido, sem excepção de Joaquim, a occultar-se na mata.

— Vamos, Luizinha, disse o bandido á moça, com ternura. Ninguem a offenderá, ninguem.

— E minha mãi?! soluçou Luiza cahindo que a eternidade se ia metter entre ella e Florinda, e que sobre a terra estava tudo acabado para ella.

O bandido conchegou-a ao peito e abafou-lhe as ultimas palavras com um beijo.