O fim da poesia é o bello.
Bello material, bello moral; do bello por assim dizer mimoso, até esse bello arrebatador que se chama sublime — desde o bello calix da flor alvasinha a branquear ao bando de irerês marinhas deslisando garrido na saphyra das aguas — como a nuvemzinha irisada da tarde na limpidez do céo — até ao bello da cataracta mugidora a despenhar-se das quebradas negras da montanha, em lençóes d’agua, e a bramir lá em baixo no despenhadeiro com suas vagas de escuma — desde o bello da estatua de marmore da Venus Callypigia até ao bello do Jupiter Capitolino, desde a estrella até ao rugir do trovão, — sempre é o bello — Pois o que é o sublime senão o gráo mais ardente do bello?...
O fim da poesia é portanto o bello ou, se melhor se quizer, — a poesia é o bello. — A missão do poeta é pois o apostolado da belleza, o dever de esfolhar corôas sobre todas as quadras da vida, enfeital-as, enfeitiçal-as; e ahi desses jardins da natureza colher as flores perfumosas da capella de sua lyra, de sua harpa de trovador.
Como as aves do céo, como as flores da selva, como os clarões das noites, é sua missão dar cantos, perfumes, fulgores — espalhar recendencias, derramal-o gotta a gotta esse vaso de balsamo que se chama a alma — como a Magdalena — para perfumar essa passagem na terra que se chama — a vida. —
Assim pois o mérito ou demérito de um poema é — ser ou não bello.
Pode-se perdoar ao Triboulet do Rei diverte-se — esse sangrento epigramma de um poeta sublime, aba de manto de velludo reluzente de pedrarias rota pela mão do gênio, mostrando quanto de infame lá embaixo se escondia — pode-se pois perdoar a Triboulet sua vida á frente da sua agonia, e ante aquella cabeça de homem estallada nas pedras da calçada esquecer os remoques infames do truão — mas nem por isso a peça deixa de ser immoral.
Qual é a immoralidade de uma peça?
Não é a apresentação de quadros contra a moral?
E constituirão alguma scena edificante, algum quadro digno das santíssimas paredes de uma Igreja essas duas scenas do rei-seductor com a donzella enganada — o estupro, uma, e a outra o sacrifício della por aquelle que ora dorme nos braços da barregan das ruas?
Não é esse o lugar para sustentar theorias de moralidade. — O que dissemos do Rei divertese diríamos de Marion Delorme — citaríamos essa scena em que ella entra com as faces ainda ardentes e avermelhadas dos beijos — no ultimo acto, — o mesmo de Ruy Blaz, o mesmo em geral do theatro e até dessa obra sublime do cantor das Orientaes — Nossa Senhora de Pariz — vasta e sombria concepção como a cathedral gothica avultando negra na escuridão da noite avermelhada pela luz dos fachos sacudidos, — no ataque dos Bohemios — idéa immensa, joia de facetas tão diversas, fresco gigantêo da imaginação de Miguel Ângelo, — onde de um lado do quadro dança a ligeira e suave Zingara com os crespos soltos nos hombros morenos, batendo o seu adufe, e enlevado de tão bella feiticeira nos passos leves, a vista do bello capitão, a miral-a de cima do fogoso ginete com olhos accesos de volúpia — e lá de cima da torre prezo, pelas mãos convulsas, á pedra das frestas, o monge livido com os olhos em fogo e os dentes cerrados, immovel e terrível como o jaguar do Oriente com os olhos na preia, — essa « Nossa Senhora de Pariz », emfim, ora clara e bella como as vidraças multicôres das ogivas rendadas, ora ligeira como as columnas delgadas de mármore branco, ora sonora e ruidosa, alegre e bacchante, ebria de orgias como esse monge entalhado no portal da cathedral de Mayença; ora voluptuosa e lasciva como os beijos da Cigana desatada nos braços de Phebo na taverna das bordas do Sena — mas no meio dessas flores, desses cantos de orgia, desse frêmito de beijos em lábios soffregos — desse anciar de collos apertados — lá surde torva como uma djin na crença oriental — como uma serpente junto da mangueira onde descantão as aves, como a fera de olhos de fogo junto da relva onde dorme a creança perdida, essa sublime e medonha figura de monge, esse homem cuja historia, cuja crença, cuja esperança — era uma palavra — Cláudio Frollo!...
Se ha poeta francez a que votemos decidida affeição por suas obras, a quem rendamos dos fundos d'alma culto como é de render-se ao gênio — é esse mancebo louro, de olhos límpidos e azues, sonhador de pesadellos onde sorri satânico e infernal sempre na fórma incarnada de gênio do mal — quer seja Han d'Islandia o bebedor de sangue e água do mar, ou Habibrah o anão, ou Triboulet o bufão, em opposição a essas cândidas creaturas de Esmeralda e Branca, Ethel e Maria Neuburg. Como eu dizia, pois, acho cá de mim para mim que o fim não torna moral uma obra da qual cada capitulo seja immoral. — Assim acabasse Byron o seu Don Juan, esse primor da palheta multicôr do Bretão sarcástico e desesperançado, fazendo eremita com barbas a cahirem-lhe longas sobre o peito e as faces resequidas pelos jejuns, esse tão invejado gosador da vida que não se poderia dar como nenhum modelo de moral em acção sua Odysséa — brilhante, porém summamente immoral. É a razão porque não achamos a moralidade do nebuloso Faust do poeta Allemão, desse gênio sublime representante e chefe da litteratura nova — da eschola romântica, como a chamão, tal qual se acha ella instituída — apezar da apotheose da ultima pagina....
Eis ahi pois a primeira razão.
Quanto á segunda — foi porque não quiz.
E que ladrem critiqueiros — Que importão elles?
Pobres mulheres estéreis que com olhos chammejando de inveja devorão as crias rosadas das outras — Serpes rojadoras e impotentes a insultarem os vôos das águias que vão perder-se nas nuvens, que importão elles? Hade a mulher esmagar seu filho entre os joelhos pelas invejas dellas, hade a águia desvairar-se do vôo só porque a víbora vomitou-lhe a bava do insulto? Não! eil-a se pende com as azas abertas, a rainha dos ares — que lhe importão sarcasmos do verme estúpido? Ri delles, e se baixa-se a ouvil-o é para esmagal-o. A satyra de Byron e o fundo do painel do Caravaggio fizerão-lhes justiças a essas audacias loucas.
Qual Homero que não tivesse o seu Zoílo ?
Qual poeta grande ou pequeno que não tivesse um desses escrevedores de regras, La Harpes assobiados nos theatros, pifios rimadores, como dizia Gilbert, tombés de chûte en chûte au throne académique, que lhes profanasse os sonhos?
E pois consolar-me-hei de optima mente com as criticas. — Se os grandes as ouvirão, porque queixar-me? Não é dos jasmineiros chamar os reptis? Não é das doçuras chamar os insectos?
A missão do poeta como eu disse no começar esse preâmbulo é o bello. Assim pois — o único juízo de que damos ao leitor competência sobre esses versos soltos e rimados que ahi vão, é sobre sua belleza ou não.
Se achal-os conforme com o fim da poesia — bom será — Senão...
Poucas couzas ha ahí no mundo que olhadas de certo modo não tenhão o seu que de poético: se ainda ahi ha tanta flor solteira de poeta — é que elle ainda virá, o seu vate, para descantar-lhe as bellezas. A vós — clássicos como Horacio, Anacreonte e Ovidio, e a vós Românticos como Byron — perguntarei, das noites de gozo monstruoso das lupercaes, das orgias e turtolias da Grécia e de Roma, desses cantos infames que marearão as lyras dos três poetas da antigüidade que entre tantos ahi cito, não por falta, porque fora-me fácil incluir nelles o casto Virgílio com sua Eccloga de Alexis, e Tibullo com seus hymnos ternos ao mancebo formoso de seus amores, cândido como os fulgores da Latonia lua (*) —desses meus cantos seja-lhes scena o salão do banquete, com o seu refulgir de copos cheios de licores e a sua musica de loucas alegrias e alegres amores, sobre chão cheiroso de rozas, respirando o ar volupias e lascivias — quaes mais immoraes, quaes menos puros?
Não fallarei de Byron. — Repito, não é essa uma obra de Moral, e para mim que quando leiu é para apreciar o bello da imaginação do poeta, Don Juan é um primor.
A razão porque comparei os Cantos do meu poema á devassidão dos poetas clássicos foi unicamente para lembrar que ha uma differença entre o immoral e o torpe.
O immoral pôde ser bello — As vizões nuas
(*) Condor erat qualis proefert Latonia luna, Et color in niveo corpore purpureus Ut juveni primum virgo deducta marito Inficitur teneras ore rubente genas, &, &. Ov. Liv. 3 Elegia 4. do juizo derradeiro de Miguel Ângelo — Antony, Angela, Thereza, quasi todo o theatro emfim, quasi todas as obras de Alexandre Dumas são immoraes. — Àquella alma de poeta quem negará comtudo glorias e louros ? quem poderá não achar bellas essas paginas do romancista-rei do século ?
Jacques Rolla e Franz.
Eis ahi pois — Antony é bello — mas algumas odes immoraes de Horacio, não o são. — Se tem seu que de bello o Alexis do cantor da Eneida, se os amores de Ovidio são tão cheios de belleza — ás vezes outros quando essa alma de poeta desce á torpeza, como o cysne branco atolado no charco do pantanal, nem ha lel-os, esses cantos prostituídos !
Do sublime ao ridículo ha um passo, disse um grande pensador e um grande guerreiro — do immoral ao torpe também vai um passo.
Dos cantos de Byron, ardentes como o tremor do enlevo no sorver dos beijos — vai um passo talvez a esses poemas infames, corrompidos e corruptores imputados ao grande sonetista de Portugal. — Mas esse passo é por sobre um abysmo.
O que alli era bello — aqui nada tem disso — foi um passo somente, mas foi uma queda da montanha esmeraldina e purpurea de rozas ao paul do brejo. Foi um passo sim — mas um passo do serro ao precipício de entulho e lodo onde só habitâo os vermes da podridão. O bello manifesta-se por três diversos modos, por três fontes, o que faz dizer que ha três espécies de bello.
Outros mais illustrados poderão achar defeituosa minha classificação — é comtudo a que eu adopto em falta de melhor. — Bello ideal, bello. sentimental, e bello material.
Diga-se o que se quizer — nem em Homero nem em Virgílio, em uma palavra em nenhum dos poetas antigos apparece a primeira classe que apresentamos.
Dizem os poetas idealistas que isso pende de duas causas — da philosophia e das tendências do clima voluptuoso das terras do Sul.
Não é nosso empenho tratar disso.
Talvez o sol oriental chame os homens á realidade, e a bruma e as nuvens cinzentas dos luares boreaes levem-no ao idealismo. — Seja como quizerem.
A litteratura Européa, humilde discípula dessa velha arrebicada de Horacio, dessa lyra acostumada a soltar suas notas amorosas no trepidar das saturnaes de Roma a Sybarita, dessa lyra que deixara as entesadas cordas metallicas dos tempos épicos para nos soltos nervos, no acompanhamento das flautas lydias e dos plectros cretenses, transpirar aromas de banquete, levarão-na em França as orgias da regência e do reinado de Luiz XV ao ultimo aperfeiçoamento da immoralidade. O blasphemo cantor da guerra dos deuses levou o materialismo poético até aonde Horacio — o vate das orgias romanas regadas dos vinhos de Falerno e Massico — nem se atrevera a pensal-o.
A culpa é da philosophia materialista do século !
A revolução Franceza levou comsigo esse cortejo de bacchantes languidas e ébrias, com seus brindes de gozo e seus beijos de lábios de braza — essa carreta morna e voluptuaria de Thespis a que succedera fria e sangrenta a carreta dos Girondinos. Com a renascença da poesia em França houve então uma reacção total, de Zenith a Nadir, sobre a poesia.
Em lugar da poesia dos olhares trêmulos de gosto, dos seios quentes, anciosos, a se elevarem em suspiros afogados, em lugar dos contornos das linhas ondeantes, do esmero das cadeiras arredondadas e das pernas cheias, macias e roseas como a flor de Venus, dessas nymphas meio deitadas, os membros de madreperola, com a cabeça sobre um braço arredondado e lácteo, e de cabellos soltos em chuva sobre o avelludado das costas nuas, Antílope ou Clytias nos requebros voluptuarios do somno á sombra das florestas, que o cinzel dos estatuarios antigos, os lascivos pincéis de Zeuxis e Phidias, os versos dos poetas pagãos traduziram a esses homens novos, — veiu a poesia nebulosa e Ossianica, — em lugar das roupas roçagantes, das tremulas sedas Sericas, das transparentes escomilhas purpureas de Cós, perfumadas de nardo Assyrio e dos incensos da Arábia escrava — vierão os longos véos brancos, as creaturas dos poetas se transformarão em nevoas, deixarão a terra com suas bellezas, ardentes para irem sonhar á lua, um anjo, uma Sylphide em cada nebrina alvacenta pousada nas ramagens das florestas — em lugar desses bosques fallantes povoados de Dryadas, onde cada gemido de briza parecia um anhello de nympha, onde cada sussurro das lymphas do rio era o chamado de uma bella creatura por algum Hylas formoso, vierão os cyprestes esguíos e escuros, com suas sombras alongadas, movendo-se com a lividez sepulcral das luzes da lua, e além, nas sombras, as fôrmas incertas das virgens chorosas dos bardos boreaes.
Foi uma terrível reacção. Os poetas modernos rião-se dos antigos por terem misturado a theogonia paga com a theologia christã, culpavão o Homero portuguez por essa mistura de Aphrodites e a Virgem Maria, Mercúrio e Jehovah; e comtudo acharão muito bonito misturarem-se os anjos do Livro das crenças sagradas com as Sylphides, os Gnomos, Elfos, Gigantes e anães, dos sonhos dos poetas runicos do Norte, as tradições Bíblicas dos seraphins com ãs superstições não menos pagas que as romanas e gregas, dos clans de Morven e Erin, e dos caçadores de phocas e ursas, dos gelos dessa Islândia de pescadores que se estendera á Groelandia, e da tríplice Scandinavia.
Iamos-nos desviando das theses da nossa classificação. — Voltemos a ellas. Vimos pois como appareceu a poesia do bello ideal, com suas vizões vaporosas e nevoentas, com seus anjos de cabellos loiros desmaiados e rostos ováes, com olhos azues-languidos e uma lagrima sempre nas faces e um sorrizo triste nos lábios descorados — e seus sylphos aerios, seus Triblys vagabundos e galhofeiros, seus Gobelinos de azas de borboleta, e seus duendes malignos vagando nos paues para desviar e perder os viajantes.
A poesia do bello sentimental é para nós a mais bella : são esses hymnos que exhalão-se do coração como os perfumes da redoma quebrada de crystal onde se guarda o balsamo, como o aroma das flores abertas ao Sol — é o coração enternecido e embalado ao som dos cantos, desfeito em harmonias, aves côr de neve voando em céo de sonhos.
Porém se somos tão apaixonados desse bello, se o achamos talvez o mais doce de todos três, comtudo não somos daquelles que deixão o bello material.
O que ha ahi de mais poético do que uma mulher bella, com os cabellos soltos entrelaçados de flores e pérolas, e dentre as roupas meio abertas o collo de chamalote branco a lhe ondear com reflexos de setim, com os lábios rozados entreabertos num sorrizo, mostrando como grãs de uma romã verde os dentes tão alvos, tão prateados que melhor os dissereis pérolas ?
E ante um desses olhares de humido fulgôr, de uma pupilla languida de effluvios de gôzo ante um desses volveres de enfeitiçado condão de uns olhos negros cheios de amor, promettendo amor, quem ha ahi que não sinta a alma no peito estremecida, anhellante, desmaiando de anceios, sequiosa de orvalhos de beijos, e a correr-lhe nas veias o sangue com ardor mais suave, os olhos emfraquecidos de uma nuvem de prazer, sem luz, sem côr, sem vida, embriagados de enleio, — e os lábios immoveis, entreabertos, sem hálito, — quem ha que não a sinta a sua alma exanime, esvaecida, quasi morta num suspiro, nessa morte, na expressão de Bocage — « de uns brandos olhos desmaiados, morte, morte de amor, melhor que a, vida » ?
E ha na terra sensação de bello mais forte, mais cheia de poesia que essa ?
Porém como os perfumes das flores são mais
bellos quando misturados no ramilhete que traz
no collo voluptuoso a donairosa donzella no baile,
como as cores são mais bellas quando bem combinadas no iris do céo, ou nesses matizes dos
crepúsculos de outomno e verão, e os sons são mais doces ao ouvido quando reunidos na orchestra, combinados com arte e gosto nessas peças
de Bellini e Donizetti, assim também mais se
lhes realça o valor a esses três gêneros d e belío-,
quando se reúnem num objecto.
É esse, ou pretende sel-o ao menos, o fim da poesia romântica.
Talvez se notasse não ter eu nesses três gêneros de bello fallado do bello-sublime, ter corrido das cordas da prima do violão em diante parando no bordão. — Fil-o de propósito.
Ha dous gêneros de bello — Ha o bello doce e meigo, o bello propriamente dito — e esse outro mais alto — o sublime.
A águia n o seu ninho afagando as suas avezinhas, carregando-as nas, antennas poderosas das azas, beijando-as, aquentando-as ao peito — eis o bello da primeira divisão, o bello meigo e doce; — mas suba a águia a perder-se nas immensidades do céo nubloso, entre o rugir solto dos ventos e o rouquejar percursor da borrasca, ou lance-se ella de là ao seu ninho atacado, vejão-na lutar com garras e bico, lutar até morrer, vejão-na com as azas molhadas de sangue e a cabeça abatida, os olhos já vidrados cobrir ainda! suas crias, e morrer ainda amparando-as como um escudo — eis ahi o sublime.
Agora quereis ver o sublime ideal, o sublime sentimental e o sublime material ? Abri as folhas do Livro Santo, nos Psalmos, nos Threnos, ou nas Prophecias, ou nas lamentações de Job sobre o primeiro — vede ahi a imagem de Jehovah, nesses sonhos tenebrosos e sombrios dos poetas da Judéa, esses velhos prophetas de fronte altiva, e calvas coroadas de cãs prateadas, ouvi a voz trovejadora do Deus do Sinai, e depois dizei-me, sentistes já emoção mais forte vibrar-vos as fibras todas da harpa de vossa alma abalar-vos com um choque tão poderoso como o da pilha Voltaica?
Eis o sublime ideal — mais bello mil Vezes, mais elevado e mais forte que todas essas vizões do bardo sublime das montanhas brumosas dos Highlands.
Quereis ver o sublime sentimental ? Vinde comigo — dai-me a mão. — A noite vai tenebrosa, e a ventania se levanta rija nas montanhas, o céo de espaço a espaço se entre-abre alumiando corri vislumbres de clarões ondeantes de incêndio á1 terra convulsada.—Vedes aquelle monte de crista negra, escalvada e nua? Á luz do relâmpago da tormenta não vistes alli a fôrma de um cadáver pregada a um madeiro ? Nos intervalos do trovão não ouvistes soluços que eshalarão-se de aó pé ? Ide lá, ide sorrindo que eu não ousara lá ir, tanto é solemne o sacrifício que lá se consumma. — Ide e perguntai a essas mulheres porque chorão, porque gemem, porque lhes estalla o peito em soluços no anciar atropellado do coração... Ide, ainda é tempo e cada som quebrado da garganta do agonisante da cruz, cada convulsar de uma angustia intensa dessas pobres mulheres que abração o madeiro repassado de sangue e lagrimas, dir-vos-ha mais do que eu vos poderá dizer.
Eis ahi o sublime sentimental.
Cada suspiro de uma daquellas fôrmas brancas e desgrenhadas, cada voz soluçada por aquella trindade santa de martyres dir-vos-ha o que palavras não sabem ressumbrar.
E o sublime material, — dizei, nunca o sentistes no estallar das florestas sob o pezo gigante do bulcão, no nutar das vagas hirtas e verdenegras que o braço da tormenta eleva e atira em lençoes de fervedora escuma, no cheiro abafador e sulfureo dos ares cortados pelo raio? Dizei, nunca assististes a um desses dramas da natureza em que o vento infrene lucta com o mar que esbraveia, e o mar parece querer invadir nuvens e terras, que o raio affogueia? Essa scena tremebunda do dia final, tão sublime sempre, apezar de tão vista, tão abaladora ainda no descrever dos cantos soltos dos poetas, quando não ha um só que com a lembranças delia não estremecesse as cordas de ferro de sua harpa ?