Mesma decoração com a diferença que é noite; a lua aparece no fundo sobre o arvoredo, as janelas e a porta da casa estão iluminadas interiormente.
CENA PRIMEIRA
editarMACEDO e OLIVEIRA
(Ao levantar o pano OLIVEIRA sai da casa e encontra-se com MACEDO que passeia fumando.)
MACEDO - Então, falou ao Pacheco?
OLIVEIRA - Falei; porém nada obtive.
MACEDO - Não cedeu?
OLIVEIRA - Qual!
MACEDO - É teimoso.
OLIVEIRA - É uma pedra.
MACEDO - Que razões deu ele?
OLIVEIRA - As mesmas de ontem. Disse-me que no momento em que me casar com Julieta, entrega-me o dote que lhe destina, duzentos contos de réis, porém antes nem um vintém.
MACEDO - Devia explicar-lhe que não pede dinheiro e sim a sua firma no endosso das letras.
OLIVEIRA - Expliquei-lhe tudo, mostrei-lhe que sendo o prazo das letras a três meses, e devendo eu casar-me muito antes, se eu não as pagasse no vencimento, ele poderia descontá-las do dote de sua filha.
MACEDO - E que respondeu?
OLIVEIRA - Que o futuro pertence a Deus, e que ninguém sabe do dia de amanhã.
MACEDO - Terá desconfiado?
OLIVEIRA - De quê? Da minha intenção de não casar-me?
MACEDO - Sim.
OLIVEIRA - Não; a princípio tive a mesma idéia; porém desvaneceu-se logo.
MACEDO - Por quê?
OLIVEIRA - Porque acabou declarando-me que o negócio estava nas minhas mãos: que, se eu quisesse podia casar-me amanhã, e amanhã mesmo receberia o que ele tem de me dar.
MACEDO - Pois então case-se!
OLIVEIRA - Com duzentos contos! Uma ninharia...
MACEDO - Mas lembre-se que amanhã sem falta precisamos de setenta.
OLIVEIRA - Lembro-me!
MACEDO - E não sei onde os iremos buscar; nossas firmas já estão muito carregadas.
OLIVEIRA - Uma emissão de ações! O seguro tem subido.
MACEDO - É verdade; porém já temos mais de seis mil na Praça.
OLIVEIRA - E não é possível demorar-se por alguns dias essa operação? Sábado talvez o Pacheco se tenha resolvido, vou recorrer a Julieta.
MACEDO - É um bom meio, que já devia ter empregado. Quanto à demora, é impossível; a todo o momento pode divulgar-se o segredo do dividendo e perdemos a transação.
OLIVEIRA - Mas está bem certo que ela nos dará lucro?... Por que já são duas...
(BORGES sai de casa e vem aproximando-se.)
MACEDO - Esta é segura. O dividendo há de ser de doze mil-réis, coisa que ninguém espera; compramos amanhã, dinheiro à vista, dez mil dividendos a sete mil-réis, três dias depois recebemos os setenta contos, e mais trinta e cinco de lucro. Não pode haver especulação mais... (Volta-se.)
OLIVEIRA (baixo) - É o Borges.
CENA II
editarOs mesmos e BORGES
BORGES - Conversavam em particular? Vim talvez interrompê-los?
MACEDO - Não; falávamos de coisas indiferentes.
OLIVEIRA - Saímos para tomar um pouco de fresco.
BORGES - Desejava dar-lhe uma palavra, Sr. Macedo.
MACEDO - Imediatamente?
BORGES - Sim.
MACEDO - Às suas ordens.
BORGES - O senhor permite?
OLIVEIRA - Oh! Sem dúvida. (BORGES passa ao lado do portão.)
MACEDO (baixo a OLIVEIRA) - Um cheque!
OLIVEIRA (sorrindo) - De D. Olímpia?
MACEDO - Já lhe disse que são calúnias.
OLIVEIRA (rindo) - Acredito.
MACEDO - Espere, temos que falar ainda.
OLIVEIRA - Bem. (Afasta-se para o fundo. MACEDO dirige-se ao portão, BORGES vem a ele.)
CENA III
editarMACEDO E BORGES
BORGES - Meu amigo, tenho tantas vezes abusado de sua bondade que me acanho...
MACEDO - Não tem razão: sabe que estou sempre disposto a servir às pessoas a quem estimo.
BORGES - Vejo-me obrigado ainda a recorrer ao senhor para livrar-me de um grande embaraço. Preciso de algum dinheiro.
MACEDO - A ocasião agora é má, estou no desembolso de grandes quantias. Certas negociações.
BORGES - Asseguro-lhe que é a última vez que o incomodo. Tenho esperança de poder breve pagar-lhe o que já lhe devo; só não poderei pagar-lhe a amizade e os obséquios imensos que nos têm sido feitos. Mas o meu reconhecimento...
MACEDO - Conta, então, com algum auxílio?
BORGES - Em segredo, eu lhe digo: o senhor é amigo, e posso confiar-me. O casamento de Cristina com o filho do Pacheco é coisa quase decidida; eles se amam, o pai e a mãe sabem e vêem até com prazer. Talvez que um destes dias seja pedida...
MACEDO - Ah! Tinha já uma inclinaçãozita; mas não julgava as coisas tão adiantadas. Dou-lhe o parabém. É uma fortuna!
BORGES - Já vê que, realizado esse casamento, minha filha rica não deixará de pagar as dívidas que seu pai contraiu para á sua educação!...
MACEDO - Decerto, e até mesmo nem precisa fazer sacrifício, basta que o rapaz entregue os seus capitais a um homem hábil que saiba fazê-los girar para, em pouco tempo tirar lucros enormes.
BORGES - É justamente a minha idéia: Hipólito é um moço inteligente, e si ele unir-se a um homem como o senhor, fará uma bela carreira.
MACEDO - Obrigado, meu amigo. Amanha irei vê-lo e farei o possível para cumprir as suas ordens.
BORGES - Fico-lhe infinitamente agradecido. MACEDO - Não tem de quê. (BORGES entra.)
CENA IV
editarMACEDO e OLIVEIRA
OLIVEIRA - Pagou?
MACEDO - Não, aceitei a um dia de vista. OLIVEIRA - Sem desconto?
MACEDO - Integralmente, e lancei o primeiro fio de uma grande operação.
OLIVEIRA - Sobre aquela Praça, duvido! Parece-me que está em crise monetária.
MACEDO - Que pensa? É o melhor tempo para a especulação.
OLIVEIRA - Pode ser, mas tenho as minhas dúvidas.
MACEDO - Mas sobre o nosso negócio... Não esqueça de pedir a Julieta.
OLIVEIRA - Agora mesmo.
MACEDO - Do meu lado, eu tocarei o Pacheco.
OLIVEIRA - Vai falar-lhe? Peça-lhe que venha...
MACEDO - Nessa não caio; no momento em que lhe disser que desejo falar-lhe, encolhe-se como uma ostra dentro da casca. Há de ser de repente.
OLIVEIRA - É inútil: não consegue nada.
MACEDO - Quem sabe. (Vão conversando para a porta. Saem HIPÓLITO e RODRIGO; este pede fogo a MACEDO e acende o charuto.)
CENA V
editarHIPÓLITO e RODRIGO
HIPÓLITO - Sinceramente, não te compreendo.
RODRIGO - Por quê?
HIPÓLITO - Duvidas de tudo.
RODRIGO - Ao contrário. (MACEDO e OLIVEIRA entram na casa.)
HIPÓLITO - Ainda hoje não te disse uma palavra que a tua resposta não fosse "talvez."
RODRIGO - E chamas a isto duvidar?
HIPÓLITO - Decerto.
RODRIGO - E se eu afirmasse?
HIPÓLITO - Como?
RODRIGO - Se eu afirmasse que te enganas?
HIPÓLITO - Ah!... (Depois de uma pausa) Então Cristina não me ama?
RODRIGO (sorrindo) - Talvez!
HIPÓLITO - Queres brincar! (Senta-se.)
RODRIGO (tira a carteira) - Toma um charuto. Que bela noite! Vamos passear.
HIPÓLITO - Não quero!
RODRIGO - Preferes ficar aqui. Não gostas de banhar-te na claridade da lua, e sentir os seus raios te envolverem como uma onda de luz?
HIPÓLITO (erguendo-se) - Não penses que me iludes com os teus devaneios! Sabes alguma coisa e não queres dizer-me.
RODRIGO - Não sei nada. (Afasta-se.)
HIPÓLITO - Rodrigo, há um momento abri-me contigo, confiei-te as minhas afeições, as minhas esperanças e fiz-te quase da família. Depois disto tenho o direito de exigir de ti igual confiança.
RODRIGO - É exato. Mas sabes se eu sou teu amigo?
HIPÓLITO - Como?
RODRIGO - Sabes distinguir atualmente a amizade, o amor, o sentimento enfim, de um outro objeto que tem a mesma aparência?
HIPÓLITO - Que objeto?
RODRIGO - O crédito.
HIPÓLITO - Não te entendo! (Uma pausa.)
RODRIGO - Todas as grandes idéias, Hipólito, têm a sua aberração, é a conseqüência da fraqueza humana. A liberdade produziu a licença, a religião o fanatismo, o poder a tirania, o dinheiro a usura. O crédito não podia escapar a essa lei fatal; ligando-se à ambição, produziu também o seu aborto. Novo Proteu, esse filho bastardo toma todas as formas, imita todos os sentimentos. Nós o encontramos a cada passo, nos salões, no interior das casas, nas relações mais íntimas; às. vezes sob a figura de uma menina, às vezes disfarçado em moço elegante ou em um homem respeitável.
HIPÓLITO - Para quê? Com que fim?
RODRIGO - O seu fim é a monetização do sentimento. Não ouviste o que dizia há pouco o Macedo sobre o amor? Tomaste por gracejo?
HIPÓLITO - Certamente, ele está sempre a brincar.
RODRIGO - Pois é uma verdade. A ciência que nestes últimos tempos tem feito grandes progressos, empreendeu, e conseguiu mobilizar todos os valores; um prédio, uma terra toma a forma de uma letra e corre como moeda. É um grande resultado para a indústria. A especulação porém que é mais inventiva do que a ciência, entendeu que do mesmo modo que se fazia de uma casa um bilhete de banco, podia se fazer do sentimento um capital.
HIPÓLITO - Como?
RODRIGO - Ah! Desejas conhecer esse novo sistema econômico? É muito curioso! Entra em uma sala e observa. Ali vês um homem gasto que faz a corte a uma moça; a dois passos, uma menina que, vencendo o pudor, requesta claramente o filho de um negociante rico, uma senhora que dizem ser a amante de um velho, um rapaz que persegue outro com a sua amizade. Acreditas que é o sentimento que se manifesta?
HIPÓLITO - Ao menos parece.
RODRIGO - Pois é o crédito social que funciona. O sentimento aí é apenas o meio de manter relações que são habilmente exploradas. O homem gasto que vai casar com uma moça rica, tem a esperança de um dote e saca sobre essa esperança como sobre um depósito. A menina que muitas vezes por ordem de sua mãe dá à sociedade o espetáculo de um namoro ridículo com um moço rico, faz supor um casamento que deve ser para seus pais uma caução de dívidas já contraídas. A mulher casada que afeta uma ligação com um velho desprezível, diz ao público que a sociedade conjugal tem um sócio capitalista ou um marido suplementar solidariamente responsável pelos encargos da firma. O moço que se liga ao filho de um negociante e não o deixa; que toma-lhe o braço na rua, e senta-se junto dele no teatro ou no hotel, afetando uma grande intimidade em todos os lugares públicos, trata de mostrar aos credores já desconfiados que ele tem um fundo de reserva que responde pela emissão de suas letras. Para essa espécie de gente, Hipólito, os homens não são homens, são penhores; os sentimentos são hipotecas tácitas.
HIPÓLITO - Então não acreditas que exista amor verdadeiro?
RODRIGO - Tanto existe que o procuram imitar porque o grande triunfo que tem a virtude sobre o vício em todos os tempos é esse; que a virtude se mostra a rosto descoberto, enquanto o vício toma a máscara de sua inimiga para aparecer; uma é sempre a verdade; o outro só pode viver como uma mentira.
HIPÓLITO - Não importa! É sempre uma coisa bem triste a sociedade do Rio de Janeiro.
RODRIGO - Não é a sociedade do Rio de Janeiro, é a lia dessa sociedade. Nunca viste um copo d'água aos raios do microscópio solar? No meio daquela onda límpida e cristalina, nada uma infinidade de vermes que se esforçam por subir à flor, e que se depositam no fundo apenas a água fica em repouso. Esses vermes existem na escala ínfima da população e ao menor movimento, procuram vir à superfície; vistos a olho nu são gotas d'água pura; vistos ao microscópio são vermes. Eles formam em todas as grandes cidades essa parte da população que procura resolver o problema de viver sem trabalho.
HIPÓLITO - De viver à custa dos outros!
RODRIGO - Outrora, esses vermes sociais empregavam a piedade; mendigos de casaca e luvas, iam chorar em todos os lugares onde as lágrimas podiam cristalizar em moeda. Da piedade passaram à educação; cada um fez-se um ponto de admiração que se via constantemente perfilado diante de um homem rico, na sua casa, na sua mesa, na sua intimidade. Finalmente inventou-se o crédito; a sociedade invisível aproveitou-o. Cada verme constituiu-se um agiota de sala, e joga com a alta e a baixa dos sentimentos.
HIPÓLITO - E tolera-se semelhante gente? Por que os homens de bem não os expelem e não os cobrem com o seu desprezo?
RODRIGO (sorrindo) - Por uma singularidade bem natural, Hipólito. Os homens de bem e de talento ordinariamente têm um certo ciúme uns dos outros; repelem-se, mas temem-se; aspiram à superioridade e por isso não querem um rival. Os tratantes, ao contrário, têm uma certa maçonaria; conhecem-se, ligam-se, atraem-se e auxiliam-se mutuamente para combaterem o inimigo comum - a sociedade. Quando, pois, um homem honesto acha-se no meio deles só e isolado, o que pode fazer?
HIPÓLITO - Tirar-lhes a máscara.
RODRIGO - Para quê? Para rirem-se dele? Quem o acreditaria? Aqueles que o consideram seus amigos? Demais, lembra-te que há em toda a criatura que se perde, um resto de bem que é abafado pelos maus instintos, mas que um dia pode desenvolver-se e regenerar o espírito. Quantos homens não se corrigem pela amizade, pelo amor, pela estima de uma pessoa honesta, e que pela vergonha do escândalo se irritariam contra a sociedade, e do vício desceriam ao crime? O que um homem honesto deve fazer é aproveitar os impulsos generosos, estender a mão a essas almas decaídas que encontra em seu caminho e ajudá-las a erguer-se, ou pelo exemplo, ou pelo conselho.
HIPÓLITO - E se esse homem vê um amigo que vai ser vitima de uma dessas especulações, não deve falar-lhe francamente? Não deve dizer-lhe: a mulher que te diz amar, calcula com o teu coração?
(Ouve-se tocar piano dentro de casa.)
RODRIGO - Deve falar francamente quando tiver as provas; e antes disso tudo quanto pode fazer um amigo por seu amigo, sem mentir à consciência, é mostrar-lhe o mundo como ele é, e dizer-lhe: - Olha e vê!
HIPÓLITO - Debalde procuras encobrir! Compreendo tudo; sei de quem pretendes falar.
RODRIGO - Não te falei de indivíduos, falei-te da sociedade.
HIPÓLITO - Respeito a tua delicadeza e te agradeço. Tu me abriste os olhos. Cristina faz do meu amor um objeto de especulação.
RODRIGO - Por que pensas assim? Ela é muito moça para fazer semelhante cálculo. É uma criança, que serve de instrumento a outras ambições. Quando compreender o sentimento, talvez te ame por ti exclusivamente.
HIPÓLITO - Não, um coração que se perverte a este ponto, não pode amar. Pois olha, Rodrigo, era uma afeição séria, apesar desta minha jovialidade ordinária; no meio das extravagâncias, dos prazeres rápidos e passageiros, essa menina representava para mim a imagem do amor puro. Quando às vezes me sentia gasto e fatigado, a sua lembrança me fazia entrever uma outra vida melhor...
CENA VI
editarOs mesmos e CUSTINA
CRISTINA (na porta) - Hipólito!
RODRIGO (baixo, a HIPÓLITO) - Não a ofendas!
CRISTINA (chegando-se) - Venha valsar comigo.
HIPÓLITO (friamente) - Obrigado!
CRISTINA (baixo) - Está zangado outra vez?
HIPÔLITO (secamente) - Não, senhora.
CRISTINA - Que quer dizer isto?
HIPÓLITO - Quer dizer, D. Cristina, que o amor é uma coisa muito séria para os estudantes e para as meninas que não o compreendem. Eu tenho os meus romances, a senhora as suas bonecas para nos divertirmos; não precisamos, portanto, arremedar os namorados.
CRISTINA - Está gracejando?
HIPÓLITO - Adeus!
CRISTINA - Ah! (Senta-se. HIPÓLITO afasta-se pelo fundo.)
CENA VII
editarRODRIGO e CRISTINA
RODRIGO (aproximando-se) - Ele ama-a.
CRISTINA - E zomba de mim?
RODRIGO - De quem é a culpa?
CRISTINA - Não sei! Minha, não! Ele bem sabe os meus sentimentos!
RODRIGO - Não os acredita.
CRISTINA - Não percebo!...
RODRIGO (rindo-se) - E eu não sei explicar-lhe.
CRISTINA - Por quê?
RODRIGO - Porque há coisas que sentem-se e não se dizem.
CRISTINA - Mas que posso eu fazer para que ele não duvide de mim?
RODRIGO (depois de uma pausa) - Quer que lhe fale como Hipólito lhe falaria?
CRISTINA - Eu lhe peço.
RODRIGO - É difícil! Mas enfim!... Não sei em que livro li que Deus, querendo proteger a mulher contra as seduções deste mundo, viu-se em sérios embaraços; não podia dar-lhe a bondade infinita porque fazia dela um anjo; não podia dar-lhe a força e a razão porque fazia dela um homem. Então teve uma lembrança feliz; bafejou a mulher com o seu hálito divino. Está sorrindo da minha poesia? Não importa! A poesia é às vezes o único meio de dizer certas coisas.
CRISTINA - Ao contrário, ouvindo-o com prazer.
RODRIGO - Não sabe para que Deus lembrou-se de bafejar a mulher?
CRISTINA - Confesso que não.
RODRIGO - Foi para que o homem não pudesse tocá-la com um gesto, um olhar, uma palavra, sem tocar nesse sopro celeste, e sem revelar tudo que há de divino em sua alma. É essa espécie de sensitiva moral, que traz o rubor às faces, que cerra as pálpebras e prende a palavra nos lábios, O que os homens chamam pudor.
CRISTINA Ah!
RODRIGO - Ora, se uma menina de quinze anos dissesse a um homem que o ama, sem que os seus olhos límpidos se turvem, sem que seu rosto core, é preciso que este homem esteja cego para não ver...
CRISTINA - O quê?
RODRIGO - Que essa menina não compreende o que diz, e repete palavras que ouviu, e nesse caso Hipólito tem razão, brinca-se o amor com as bonecas. (Mudando de tom) Que belo luar está fazendo, D. Cristina...
CRISTINA - Porém...
RODRIGO (interrompendo-a) - O Rio de Janeiro tem o privilégio destas bonitas noites. A senhora não faz idéia! Viaja-se toda a Europa... Creio que Hipólito me chama... (Vai sair, chega JULIETA; todas as outras personagens, à exceção de HIPÓLITO vão saindo de casa.)
CENA VIII
editarOs mesmos, JULIETA, depois OLÍMPIA e GUIMARÃES
JULIETA - Muito bem! Fugiram da sala para virem conversar com as estrelas. Por que não me chamaste, Cristina?
CRISTINA - Estavas falando com o Oliveira...
JULIETA (interrompendo-a) - Que tinha isso? Tu és muito egoísta. (A RODRIGO) E o senhor também.
RODRIGO - Ao contrário, D. Julieta; distrair os pensamentos que pertencem a outro é que seria além de egoísmo um crime.
JULIETA - Crime que não se pune.
RODRIGO - Sim, mas que também não se perdoa!
JULIETA - Quantas vezes!... Que dizes, Cristina?
CRISTINA - Não sei!...
JULIETA - Estás tão séria!
OLÍMPIA (chegando) - Sr. Rodrigo! Alguns amigos jantam em nossa casa na quinta-feira próxima, e desejamos ter o prazer de sua companhia; meu marido há de convidá-lo pessoalmente, mas eu quis ser a primeira a fazer-lhe este pedido.
GUIMARÃES - Não se pode resistir a um convite tão amável.
RODRIGO (com ironia) - Sobretudo quando não se está habituado! (A D. OLÍMPIA) Mas é impossível, minha senhora!
OLÍMPIA - Por quê? Faça um pequeno sacrifício.
RODRIGO - Estou fora da cidade na quinta-feira.
OLÍMPIA - Podemos transferir.
RODRIGO - Por minha causa?
OLÍMPIA - Não; pela minha. Entra nisso um pouco de vaidade e de capricho: desejo tê-lo em minha casa. Não me desculpa?
GUIMARÃES - A isto não se responde, D. Olímpia.
OLÍMPIA (a RODRIGO) - Então?
RODRIGO - Até quinta-feira, minha senhora.
OLÍMPIA - Obrigada, não falte. (A CRISTINA) Cristina, vamos. Já disseste adeus a Hipólito?
RODRIGO (a JULIETA) - Boa noite. (Aperta a mão.)
OLÍMPIA (à mesma) - Diga a seu mano que eu conto com ele.
RODRIGO (a CRISTINA) - D. Cristina!...
CRISTINA - Não me aperta a mão?
RODRIGO - Com prazer. (Afasta-se; JULIETA acompanha-o com os olhos.)
GUIMARÁES (a OLÍMPIA) - V. Ex.a então mora aqui mesmo em S. Clemente?
OLÍMPIA - Sim, senhor.
GUIMARÃES - É um lindo arrabalde. Venho muitas vezes para estes lados por causa do Hipólito. Somos muito amigos...
OLÍMPIA - Ah! não sabia!...
GUIMARÃES - Amigos íntimos; jantamos juntos todos os dias no Hotel da Europa, somos inseparáveis!
OLÍMPIA - Pois, então, não quero ser a causa de um desprazer entre dois amigos; na quinta-feira, em minha casa...
GUIMARÃES - Oh! minha senhora!
OLÍMPIA - Já tinha dito a meu marido... GUIMARÃES - O Sr. Borges? Uma bela pessoa. (Vão-se afastando) Há pouco estivemos conversando. (HIPÓLITO aparece.)
CENA IX
editarOs mesmos e HIPÓLITO
JULIETA (a CRISTINA) - Estiveste tanto tempo aqui! Que te dizia ele?
CRISTINA - Quem? Hipólito...
JULIETA - Não.
CRISTINA - O Sr. Rodrigo?
JULIETA - Sim.
CRISTINA - Conversava a teu respeito.
JULIETA - Mentirosa!...
CRISTINA - Oh! de ti ele não diria o que me disse.
JULIETA - O quê?
CRISTINA - Nada! (Enxuga os olhos.)
JULIETA - Ofendeu-te?
CRISTINA - Não.
JULIETA - Mas então?
CRISTINA - Deixa-me!
JULIETA - Cristina!
CRISTINA - Adeus! Onde está mamãe?
JULIETA - Vem cá!... (A HIPÓLITO) Tu lhe fizeste alguma coisa?
HIPÓLITO - Não, mas peço-te que não converses mais com ela a meu respeito.
JULIETA - Por quê?
HIPÓLITO - Amanhã te direi.
JULIETA - Onde vais?
HIPÓLITO - Passear; acompanho Rodrigo até Botafogo!
JULIETA (sorrindo) - Olhe, não roube os pensamentos que pertencem a outra!
RODRIGO - Quando se partilham não é possível. (Sobem a cena, enquanto PACHECO e MACEDO descem. RODRIGO aperta a mão de JULIETA e dirige-se ao portão com HIPÓLITO.)
CENA X
editarPACHECO e MACEDO
MACEDO - Ora, esqueceu-me de dizer-te uma coisa. O Oliveira...
PACHECO (voltando-se) - Sr. Rodrigo! E a nossa questão de crédito?
RODRIGO (do portão) - Tem a palavra o Sr. Macedo.
PACHECO - Olhe que não cedi dos meus princípios.
MACEDO - Com o tempo hás de ceder.
PACHECO - Pois não! Mas ias dizendo...
MACEDO - Que o Oliveira está em vésperas de fazer uma fortuna colossal, mas é bom que o ajudes. Ele talvez tenha acanhamento de dirigir-se a ti, por isso deves oferecer-lhe...
PACHECO - Já que falas nisto, vou dizer-te o que há. Lembras-te que quando este moço entrou em minha casa e se falou neste casamento, não me opus; tu me deste as melhores informações a seu respeito; Julieta queria, e eu sempre entendi que a escolha do marido pertence à mulher que deve viver com ele, e sofrê-lo. Destinei um dote de duzentas apólices para cada um dos meus filhos, e por isso não preciso sacrificar a sua felicidade ao dinheiro. Entendeu, porém, meu futuro genro que eu devia endossar-lhe letras, falou-me nisso ontem, e hoje trouxe-me sete de dez contos cada uma!
MACEDO - E endossaste naturalmente.
PACHECO - Não, nem pretendo.
MACEDO - Por quê? Não te acho razão. Não é dinheiro que tens de dar, é simplesmente a tua firma.
PACHECO - Pior! A minha firma não anda por aí em todas as mãos. Enquanto tiver um real de meu não quero que ninguém possa dizer que lhe devo.
MACEDO - Mas não é dever. Atente bem, é garantir.
PACHECO - Todo o homem que garante uma dívida constitui-se principal pagador e deve ter o dinheiro pronto.
MACEDO - Então pensas que o Oliveira, um moço rico...
PACHECO - Quando ponho o meu nome em uma letra, tomo o seu valor em dinheiro, fecho-o na burra e digo comigo: este não me pertence mais.
MACEDO - Em todo o caso, visto que ele tem de receber o dote... que destinas...
PACHECO - Quando minha filha casar-se, seu marido disporá do que é seu como lhe aprouver!... Antes disso não devo tocar nesse depósito sagrado!...
CENA XI
editarOs mesmos, BORGES, OLIVEIRA, ANTÔNIA, JULIETA, OLÍMPIA e CRISTINA
BORGES - Boa noite, Sr. Pacheco.
PACHECO - Boa noite. (Fala com as senhoras.)
MACEDO (a OLIVEIRA) - Nada.
OLIVEIRA - Não te disse?
BORGES - Meus senhores!
OLÍMPIA - Adeus, D. Antônia.
D. ANTÔNIA - Passe bem. Agora estamos outra vez vizinhas.
OLÍMPIA - É verdade!
JULIETA (a CRISTINA) - Então decididamente não me dizes?
CRISTINA - Não posso.
JULIETA - Pois fico mal contigo.
CRISTINA - Paciência!
MACEDO (a OLIVEIRA) - Ainda fica?
OLIVEIRA - Não, vamos.
MACEDO - Até amanhã, Pacheco.
PACHECO - Até amanhã.
MACEDO - D. Antônia! (Vai ao portão.)
OLIVEIRA - Não se esqueça de falar a seu pai.
JULIETA - Não, eu prometi-lhe e bem que me custe...
OLIVEIRA - Em que lhe custa, Julieta?
JULIETA - Eu sei!...
OLIVEIRA - Boa noite! (sai.)
PACHECO - Venham fechar o portão. (Dirige-se à casa.)
D. ANTÔNIA - Hipólito ainda não entrou.
PACHECO - Anda de passeio a esta hora! Por isso é que acorda-se ao meio-dia. (Entra.)
CENA XII
editarD. ANTÔNIA e JULIETA
D. ANTÔNIA - Tu não vens, Julieta?
JULIETA - Escute, minha mãe.
D. ANTÔNIA (chegando-se) - O que é?
JULIETA - Quero falar-lhe.
D. ANTÔNIA - Sobre?
JULIETA - Sobre esse casamento.
D. ANTÔNIA - Ah! Houve alguma coisa?
JULIETA - Não; mas tenho um pressentimento... parece-me que não hei de ser feliz!
D. ANTÔNIA - Por que, minha filha? Tu não amas esse moço?
JULIETA - Não sei!... Creio que não!
D. ANTÔNIA - Mas houve um tempo em que o amaste. Foi por tua vontade...
JULIETA - Não me queixo, minha mãe. Consenti!...
D. ANTÔNIA - Então?
JULIETA - Naquela ocasião, confesso, senti um prazer quando ele pediu a minha mão, essa idéia de fazer a felicidade de um homem que me oferecia sua vida, me seduziu! mas não sei!... Parece-me que me enganei... que tomei por amor o que era apenas um desejo de menina. Olhe, minha mãe, quando interrogo meu coração, revolto-me contra mim mesma! Por que aquilo que antes me causava alegria, agora me repugna?
D. ANTÔNIA - Sei o que é; uma moça que teve a tua educação, nunca pensa nisto sem um certo receio.
JULIETA - Como se engana, minha mãe! O que eu sinto é uma desilusão, conheço que esse casamento seria o sacrifício de minha vida inteira.
D. ANTÔNIA - Escuta, Julieta; nós as mulheres vivemos de sacrifícios; devemos dar a felicidade e não procurá-la para nós. Deus assim o quis; é menos doce, porém é mais nobre e mais generoso. O Oliveira te ama... tu aceitaste o seu amor...
JULIETA - Ele não me ama!
D. ANTÔNIA - Como? Não disseste há pouco...
JULIETA - A princípio, cuidei; foi outro engano; ele só pensa na sua fortuna. Vem aqui para tratar dos seus negócios. Ainda hoje... Sabe o que me pediu?
D. ANTÔNIA - O que foi?
JULIETA - Pediu-me para obter de meu pai que assinasse umas letras! Eis para que me quer! Não é triste?
D. ANTÔNIA - Por quê? Teve acanhamento de falar a teu pai, dirigiu-se a ti. É ao contrário uma prova de confiança.
JULIETA - Mas não de amor.
D. ANTÔNIA - O amor desculpa tudo, Julieta. Eu também fui moça como tu e amei; nós somos ordinariamente muito exigentes; queremos que o homem a quem amamos seja um herói, a nossa imaginação os engrandece tanto que depois quando o vemos de perto, na intimidade, o achamos pequeno.
JULIETA - Nunca pensei assim; mas esperava amar um homem que eu admirasse pela sua inteligência... (Entra HIPÓLITO e passa no fundo.)
CENA XIII
editarAs mesmas e HIPÓLITO
HIPÓLITO - Ainda estão conversando?
D. ANTÔNIA - Ficamos te esperando. (Sobe.) Manda fechar o portão.
HIPÓLITO (beija a mão de D. ANTÔNIA) - Sim, senhora. Boa noite, Julieta.
D. ANTÔNIA (a JULIETA) - Tranqüiliza o teu espírito, e acredita-me: a inteligência admira-se, mas a admiração não é o amor, e só se deve amar neste mundo o coração; porque é ele que faz o homem bom ou mau! Vem, é tarde. (Retiram-se. Passa um preto que vai fechar o portão. Cai o pano.)