I

O PAMPA

 

Como são melancholicas e solmenes, ao pino do sól, as vastas campinas que cingem as margens do Uruguay e seus affluentes!

A savana se desfralda a perder de vista, ondulando pelas sangas e cochilhas que figuram as fluctuações das vagas nesse verde oceano. Mais profunda parece aqui a solidão, e mais pavorosa, do que na immensidade dos mares.

É o mesmo ermo, porém sellado pela immobilidade, e como que estupefato ante a majestade do firmamento.

Raro corta o espaço, cheio de luz, um passaro erradio, demandando a sombra, longe na restinga de mato que borda as orlas de algum arroio. A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; ei-lo que se vae retouçando alegremente babujar a gramma do próximo banhado.

No seio das ondas o nauta sente-se isolado; é atomo envolto numa dobra do infinito. A ambula immensa tem só duas faces convexas, o mar e o céo. Mas em ambas a scena é vivaz e palpitante. As ondas se agitam em constante fluctuação; têm uma voz, murmuram. No firmamento as nuvens cambiam á cada instante ao sopro do vento; ha nellas uma phisionomia, um gesto.

A tela oceanica, sempre magestosa e esplendida, resumbra possante vitalidade. O mesmo pégo, insondavel abysmo, exhubera de força creadora; miriades de animaes o povoam, que surgem á flor d'agua.

O pampa ao contrario é o pasmo, o torpor da natureza.

O viandante perdido na immensa planicie, fica mais que isolado, fica oppresso. Em torno delle faz-se o vacuo: subita paralysia invade o espaço, que pesa sobre o homem como livida mortalha.

Lavor de jaspe, imbutido na lamina azul do céo, é a nuvem. O chão semelha a vasta lapida musgosa de extenso pavimento. Por toda a parte a immutabilidade. Nem um bafo para que essa natureza palpite; nem um rumor que simule o balbuciar do deserto.

Pasmosa inanição da vida no seio de um alluvio de luz!

O pampa é a pátria do tufão. Ahi, nas estepes nuas, impera o rei dos ventos. Para a fúria dos elementos inventou o Creador as rigezas cadavericas da natureza. Diante da vaga impetuosa collocou o rochedo; como leito do furacão estendeu pela terra as infindas savanas da America e os ardentes areaes da África.

Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se nellas como o poltro indomito; convolve a terra e o céo em espesso turbilhão. Afinal a natureza entra em repouso; serena a tempestade; queda-se o deserto, como d’antes plácido e inalterável.

É a mesma face impassível; não ha ali sorriso, nem ruga. Passou a borrasca, mas não ficáram vestígios. A savana permanece como foi hontem, como ha de ser amanhã, até o dia em que o verme homem corroer essa crosta secular do deserto.

Ao pôr do sól perde o pampa os toques ardentes da luz meridional. As grandes sombras, que não interceptam montes nem selvas, desdobram-se lentamente pelo campo fora. É então que assenta perfeitamente na immensa planice o nome castelhano. A savana figura realmente um vasto lençol desfraldado por sobre a terra, e velando a virgem natureza americana.

Essa phisionomia crepuscular do deserto é suave nos primeiros momentos; mas logo após resumbra tão funda tristeza que estringe a alma.

Parece que o vasto e immenso orbe cerra-se e vae minguando a ponto de espremer o coração.

Cada região da terra tem uma alma sua, raio creador que lhe imprime o cunho da originalidade. A natureza infiltra em todos os seres que ella gera e nutre aquella seiva própria; e fórma assim uma família na grande sociedade universal.

Quantos seres habitam as estepes americanas, sejão homem, animal ou planta, inspiram nellas uma alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem, a sobriedade, a rapidez são indigenas da savana.

No seio dessa profunda solidão, onde não ha guarida para defesa, nem sombra para abrigo, é preciso affrontar o deserto com intrepidez, soffrer as privações com paciencia, e supprimir as distancias pela velocidade.

Até a arvore solitaria que se ergue no meio dos pampas é typo dessas virtudes. Seu aspecto tem o quer que seja de arrojado e destemido; naquelle tronco derreado, naquelles galhos convulsos, na folhagem desgrenhada, ha uma attitude atlética. Logo se conhece que a arvore já lutou com o pampeiro e o venceu. Uma terra seca e poucos orvalhos bastam a sua nutricção. A arvore é sóbria e feita as inclemencias do sói abrasador. Veio de longe a semente; trouxe-a o tufão nas azas e atirou-a ali, onde medrou. É uma planta emigrante.

Como a arvore, são a ema, o touro, o corsel, todos os filhos bravios da savana.

Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o gaúcho. De cada ser que povoa o deserto, toma elle o melhor; tem a velocidade da ema ou da corsa; os brios do corsel e a vehemencia do touro.

O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como a vasta cochila; a paixão que o agita lembra os ímpetos do furacão; o mesmo bramido, a mesma pujança. A esse turbilhão do sentimento era indispensável uma amplitude de coração, immensa como a savana.

Tal é o pampa.

Esta palavra originaria da lingua kichúa significa simplesmente o plaino; mas sob a fria expressão do vocábulo está viva e palpitante a idéa. Pronunciai o nome, como o povo que o inventou. Não vêdes no som cheio da voz, que rebôa e se vae propagando expirar no vago, a imagem fiel da savana a dilatar-se por horizontes infindos? Não ouvis nessa magestosa onomatopéa repercutir a surdina profunda e merencoria da vasta solidão?

Nas margens do Uruguay, onde a civilisação já babujou a virgindade primitiva dessas regiões, perdeu o pampa seu bello nome americano. O gaúcho, habitante da savana, dá-lhe o nome de campanha.