Ponche-Verde é o nome de um arroio que deságua no grande rio Ibicuí, próximo a suas nascentes.

Não há melhor arquivo para guardar as tradições e costumes de um povo, do que seja uma etimologia topográfica. Na página imensa do solo nacional, escreve a imaginação popular a crônica íntima das gerações. Cada nome de localidade encerra uma recordação, quando não é uma lenda ou mito, que se vai transmitindo de idade em idade até perder-se nas obscuridades do tempo

Quem sabe hoje por que chamaram ao arroio — Ponche-Verde? Acaso o banhado onde ele nasce, coberto de limo, traça a forma característica daquele trajo? Ou será a fina relva das margens, que de longe imita a lustrosa pelúcia do pano?

Talvez nem uma, nem outra coisa. Porventura algum drama vivo, onde representou sinistro papel aquela parte do vestuário nacional do gaúcho, imprimiu à localidade o nome simbólico, hoje vago e incompreendido.

Em todo caso aí está um traço fisionômico da campanha rio-grandense: o tipo gaúcho.

Nas margens desse arroio pelejou-se, em 26 de maio de 1843, um combate, em que Bento Manuel derrotou as forças rebeldes sob o comando de Davi Canabarro. Foi este o prólogo da campanha que pôs termo à revolução; o epílogo coube ao bravo barão de Jacuí escrevê-lo com a brilhante vitória de Porongos.

Além, onde a campina se alomba, como o dorso de uma anta, próximo à foz do arroio, havia uma casa com alpendre para o nascente. À direita pequeno curral, a que na província dão o nome de mangueira: na frente uma grande figueira, isolada em meio do campo; à esquerda uma ramada ou choça para os animais.

Embaixo, já na margem do Ibicuí, viam-se cinco ou seis ranchos esparsos pela campina; alguns pertenciam à estância cuja casaria destacava-se no horizonte, em meio de um bosque de arvoredos frutíferos; outros, à gente pobre a quem o proprietário consentia habitarem em suas terras.

O mais próximo povoado ficava a duas léguas de distância, no passo de D. Pedrito, sobre o Ibicuí, onde mais tarde se erigiu a freguesia de N. S. do Patrocínio.

Era sobretarde.

Estavam no alpendre da casa duas mulheres. A mais idosa, viúva de quarenta e cinco anos, conservava na tez o lustre da mocidade: tinha ainda uma bela fisionomia e passaria por formosa se não fora a excessiva gordura. Quanto à outra, era menina de quinze anos, e muito linda.

Não tinham a mínima semelhança: e contudo ao vê-las ambas ao lado uma da outra se conhecia logo que eram mãe e filha. Os afetos de que estamos possuídos exalam constantemente de nosso íntimo uma perspiração moral. Talvez haja em torno de nós uma atmosfera de sentimento para a alma, como há uma para o pulmão.

Sentada em um banco, de mãos enlaçadas sobre o regaço, acompanhava a mãe os graciosos movimentos da filha, a folgar pelo gramado. Um terneiro alvo e brincão tentava escapar-se para correr após a vaca; porém a travessa menina, atalhando-lhe o passo e cingindo-lhe os braços pelo colo, impedia o intento.

Ouviu-se relinchar ao longe um cavalo. Erguendo os olhos deu a menina com um cavaleiro que transmontara a fronteira eminência. Distraída do folguedo, ficou um instante imóvel, com as mãos juntas e a vista atenta. Logo após, exclamou batendo palmas:

— Manuel!... Manuel!...

— Onde, Jacintinha?

— Olhe mãezita! Respondeu apontando.

— Vejo!

Voltara a mãe os olhos na direção do cavaleiro; a filha deitou a correr e foi com sensíveis mostras de prazer, caminho da tronqueira, a encontrar-se com a pessoa que chegava.

Com pouco ali apareceu o Canho, montado no Morzelo e seguido da Morena e do poldrinho, que trotavam no meio da tropilha. Apeou o gaúcho para apertar a mão de Jacintinha, e dirigiram-se ambos ao alpendre, depois de algumas palavras trocadas. Quem observasse a menina naquele instante, havia de reparar na sua expressão constrangida. Um motivo qualquer retinha-lhe nos lábios, e até no gesto, a efusão de sentimento, que só pelos olhos e a furto lhe escapava. Manuel, porém, não se apercebia disso; da irmã não vira mais que o vulto; se lhe perguntassem de repente a cor de seu vestido, com certeza não soubera responder.

Saiu a viúva ao encontro do filho, logo que ele passou a tronqueira. A dois terços do caminho se encontraram, nenhum porém se havia apressado; o gaúcho adiantou-se porque seu andar era naturalmente mais desembaraçado do que o da matrona.

— Adeus, meu filho. Estais bom de saúde?

— Bom, minha mãe, obrigado. E Vm.cê, como lhe vai?

— Sempre na mesma, graças a Deus!

Subiram ao alpendre.

Deixara-se Jacinta ficar atrás, para correr ao poldrinho e o abraçar enchendo-o de meiguices. Dir-se-ia que reconhecera o animalzinho a irmã de seu amigo, ou se embelezara pela gentileza da donzela. Apesar de sua arisca braveza, consentiu em ser acariciado; e chegou mesmo a brincar com sua nova companheira.

— Que bonito poldrinho, que ele trouxe, mãezita"! exclamou Jacinta. Tão engraçadinho!

Manuel, voltando para o grupo original, envolveu num olhar de ternura as duas juventudes, da irmã e do animalzinho.

— Fizestes bom negócio com a égua, Manuel? Quanto destes por ela?

— Nada, minha mãe.

— Ah! Foi presente que vos fizeram? Por quanto pretendeis vendê-la? Alguns vinte patacões?...

— Não é de venda! respondeu o gaúcho laconicamente, descendo ao pátio.

Nem sinal deu a viúva de estranheza por aqueles modos, aos quais sem dúvida estava mais que habituada. Chamou a filha para mandar aprontar a ceia.

— Manuel há de estar com fome! Sem dúvida não jantastes, meu filho?

— Pouco e cedo.

— Então vai, Jacintinha.

Tudo isto era dito com o tom calmo e frio das coisas costumeiras. Ninguém acreditara que ali estavam mãe e filho, no primeiro instante de chegada, após uma ausência de meses.

Enquanto lhe preparavam a ceia, foi Manuel agasalhar com a maior solicitude a Morena e o filho, não esquecendo os outros cavalos. Consumiu nesse mister uma boa hora; não obstante os repetidos chamados da irmã, só deixou seus camaradas, quando os viu bem acomodados, feita a cama de palha, e distribuída a ração da noite.

Então decidiu-se a cear; contando porém visitá-los antes de dormir.

A refeição era parca: churrasco, bocado clássico das campanhas sulinas, queijos, origones ou passas de pêssego. Manuel comia rapidamente e de cabeça baixa; seu olhar uma só vez não procurou o semblante das duas mulheres, para colher ali um vislumbre de prazer por sua chegada.

Francisca de seu lado, cochilando na costumada pachorra, com as mãos cruzadas sobre o regaço, olhava o filho sossegada. Não assim Jacintinha.

Com os lindos pregados no semblante de Manuel, meio reclinada sobre a mesa, cintilante de vivacidade, espiava ela o menor desejo do irmão par servi-lo prontamente. Se porém o gaúcho erguia a cabeça, ela se enleava trêmula, não tanto de receio, com do prazer de ser olhada.

Terminada a refeição, preparou Jacintinha o chimarrão; enquanto Manuel chupava a bomba, trocaram-se entre as três pessoas da família algumas palavras, calmas e compassadas, sem efusão, mas também sem o mínimo ressentimento.

— A mãe não teve novidade? Vai passando bem?

— Assim, assim, Manuel; já me sinto pesada. A gordura é demais.

— Mãezita não gosta de andar, observou a menina.

— Como vai a bragadinha, Jacinta?

— Ah! Morreu, Manuel!...

— Coitadinha! Como? ... perguntou o gaúcho enternecido.

— A mãe deu-lhe um coice! respondeu Francisca rindo.

Manuel ergueu-se de mau modo, dando as boas-noites, e saiu para o terreiro, donde ganhou a estrebaria. A Morena e o filho o receberam com mil carícias, que ele retribuiu; arranjou-lhes de novo a cama, com receio de que não estivesse bem macia, escolhendo-lhes alguns molhos do capim mais tenro; depois do quê, recolheu a seu aposento, que ficava numa espécie de sótão por cima da manjedoura.