CAPITULO V
O Imperio e a escravidão


Ao Imperio legou a colonia ou antes o Reino unido uma pingue mas triste herança, á qual aquelle não teve a coragem de renunciar: foi a instituição servil, euphemismo que na America do Sul, como na do Norte, serviu a tornar menos dura a expressão e menos acerba a evocação da condição social a que correspondia. Captiveiro lembrava muito as lamentações biblicas e a sorte menos cruel dos prisioneiros de guerra no mundo antigo. Escravidão é a palavra propria, mas frizava demasiado a aviltação de uma parte da humanidade. Servil é uma especie de meio-termo, recordando a Edade Media mais do que os tempos classicos e dando á posse da creatura por um seu semelhante um aspecto de dependencia.

O Brazil não tivera, para alcançar sua independencia, que sustentar, como as colonias hespanholas, uma lucta porfiada pelas armas: si tal houvesse sido o caso, a abolição ter-se-hia então realizado pela mesma razão que a produziu nos Estados Unidos, onde aliás o Sul considerava a escravidão «a pedra angular do edifício social» e profligava a emancipação como «um attentado perturbador dos designios providenciaes», pois que a Biblia consagrava a instituição servil. O Norte pretendia uma transacção mais, encaminhando-se para um desfecho verdadeiramente christão e foi a resistencia dos plantadores, indo ao ponto da separação, que provocou a reacção do governo de uma União laboriosamente consummada, traduzindo-se pela medida extrema da proclamação libertadora de 1.º de Janeiro de 1863, cuja vestimenta humanitaria encobria a represalia das auctoridades federaes contra a insurreição.

Bolivar era pessoalmente mais idealista do que Lincoln. De antemão perfilhava qualquer idéa generosa; seu espirito nutrira-se de illusões egualitarias e de devaneios metaphysicos que não prejudicavam o seu senso agudo das realidades politicas. Não teria comtudo provavelmente denunciado a propriedade escrava si os grandes proprietarios de terras não fossem em bom numero hespanhoes e portanto partidarios devotados da mãe patria. Ainda assim durou ella em Venezuela até 1849, quando Monagas lhe deu o ultimo golpe, que no Brazil só veio em 1888, mercê do caracter quasi pacifico da sua seccessão e das cautelas que exigia a organização economicamente agricola de uma nacionalidade cujas exportações consistiam em productos tropicaes que requeriam o braço robusto do negro africano e do mulato da terra, dadas a extincção gradual do elemento indigena e a insufficiencia do factor portuguez em quem o commercio exercia muito maior, senão exclusivo appelo.

Coube assim ao Brazil o inglorio fado de continuar a ser no decorrer do seculo XIX um dos paizes americanos de trabalho alimentado pelo trafico — de direito até 1831, de facto até 1851 e mesmo depois. O espectaculo frequente dos navios negreiros não commovia uma população que, havia trez seculos, se habituara a presenciar o desembarque da mercadoria humana com a indifferença testemunhada para o de qualquer outra. Pode-se no emtanto bem imaginar o que devia ser a repetição dessas scenas nefandas. Um dos maiores oradores brazileiros, Ruy Barbosa, as descrevia na Camara dos Deputados sob as seguintes patheticas côres: «Si Dante Alighieri tivesse vivido no seculo XVIII, collocaria o vertice dos soffrimentos inexprimiveis, o circulo infimo do seu Inferno no porão de uma embarcação negreira, n'um desses nucleos de supplicios infindos que apenas poderia descrever a poesia sinistra da loucura; n'uma dessas gemonias fluctuantes, ninhos de abutres humanos que a mão da mais perversa das malfeitorias espargiu durante trezentos annos no Atlantico, entre as scintillações da esmeralda e a saphira do ceu e do oceano».

O governo britannico, obedecendo desde os fins do seculo XVIII a preoccupações philanthropicas que se casavam com as commerciaes, puzera como condição ao reconhecimento do Imperio brazileiro a abolição do trafico, e no tratado de 1826 ficou, com effeito, exarado que este cessaria em 1831, mas o interesse dos agricultores foi mais poderoso do que o respeito aos convenios internacionaes, e aquelle commercio proseguiu sem interrupção nem diminuição. Em 1830 tinham-se importado 100.000 escravos: a lei de 7 de Novembro do anno immediato não modificou por assim dizer sua importancia. Anno apoz anno a Inglaterra reclamou contra o desleixo das auctoridades brazileiras, muito da natureza de cumplicidade, e seus cruzadores deram caça no alto mar aos que ella declarara piratas até que, dizendo-se persuadido da inefficacia deste recurso, o Parlamento Britannico adoptou o bill Aberdeen que, attentando contra a soberania imperial, concedeu aos navios de guerra inglezes a faculdade de perseguirem e capturarem as embarcações empenhadas no trafico nas proprias aguas territoriaes do Brazil. Sir Richard Burton, que era um espirito de singular desassombro, qualificou esta lei[1] de «um dos maiores insultos infligidos por um povo forte a um povo debil» e condemnou vigorosamente sua vigencia, mesmo depois de demonstrada a efficiencia da repressão, agindo sob a convicção da necessidade e superioridade da colonização européa. Uma commissão da Camara dos Communs publicou em 1853 que a importação de escravos, que em 1847 fôra de 56.172, em 1848 de 60.000 e em 1849 de 54.000, baixara em 1851 a 3.287. Em 1853 apenas entraram 700, a mór parte confiscada pelo governo; em 1854 um unico navio negreiro foi capturado pelas auctoridades na bahia de Tamandaré (Pernambuco), sendo a carga posta em liberdade e em 1862 o insuspeito ministro britannico Christie, partidario de actos de força, informava ao Foreing Office que o trafico acabara por completo e seria impossivel revivel-o.



No Brazil nunca houve, pelo menos que o alardeassem, partidarios da perpetuidade da escravidão, e a maneira progressiva e admiravel por que foi resolvida a sua questão magna, explica-se em boa parte pela sabedoria dos seus governos parlamentares e pelo rhytmo dos seus partidos, e mais que tudo pela influencia verdadeiramente moderadora que sobre a marcha dos acontecimentos e sobre a direcção da opinião se fez sentir por parte do throno, chave das instituições. Deu-se no Imperio sul americano o caso frequente na Inglaterra dos conservadores applicarem, uma vez amadurecidas, as medidas preconizadas pelos liberaes. A lei Rio Branco de 28 de Setembro de 1871, a lei do ventre livre, não foi mais do que o projecto redigido em 1868 pelo senador Nabuco e destinado a ser submettido á discussão quando terminada a guerra do Paraguay. Inspirara-o a Corôa, a qual já em 1866 suggerira os ante-projectos de Pimenta Bueno (São Vicente), enterrados pelo Conselho d'Estado.

O Imperador, justamente porque encarnava a acção prudente, foi alternadamente censurado pelos abolicionistas e pelos anti-abolicionistas, por haver, para uns, demorado, para outros, apressado a reforma fatal. Joaquim Nabuco mais de uma vez o castigou em discursos e escriptos como um duro inimigo da liberdade da raça opprimida; Coelho Rodrigues, jurisconsulto e parlamentar de idéas conservadoras, imbuido dos principios do direito romano, dirigiu-lhe as Cartas de um lavrador, em que se apontam os perigos de uma politica mais vistosa do que circumspecta, com bastante senso pratico e não pouca acrimonia. A resposta promissora de D. Pedro II á junta franceza de emancipação, o conselheiro Furtado a tratou no Senado de «fanfarronice abolicionista ou de vaidade á cata de louvores». De facto, não se enganavam os que attribuiam ao soberano um papel judicioso mas activo neste ponto: seria iniquo prival-o da sympathia de que é merecedor quem em 1850, aos 25 annos de idade, declarava, por occasião de querer Euzebio de Queiroz pôr cobro ao trafico, que preferiria abdicar a manter-se á frente de um imperio repellido pela humanidade.

Não veio n'aquella epocha á baila a substituição da instituição servil pelo trabalho livre, e os quinze annos que se seguiram, até 1865, foram de calmaria podre. Como e porque proceder no Brazil a uma reforma radical que aos Estados Unidos não se afigurava precisa? Ora, de 1850 a 1861 os escravocratas estiveram em Washington no temão do Estado. O dobre de finados da escravidão só se fez ouvir depois de rota a federação, mas os politicos que representavam os interesses ligados ao solo fechavam-lhe os ouvidos e só a raros espiritos especulativos pareceu elle um repique de esperança. D. Pedro II foi um destes, a fazer côro com os philosophos. Sondou constitucionalmente, mas sem felicidade, o marquez d'Olinda, ao presidir o antigo Regente o seu ultimo ministerio, para que a emancipação fosse um dos topicos da falla do throno. Zacharias de Goes e Vasconcellos, que subiu ao poder em 1866, mostrou-se mais accommodado: a campanha contra Lopez era, porem, um empecilho a todo andamento effectivo. Todavia na falla de 1867 figura um paragrapho dizendo que o assumpto não podia deixar de merecer opportunamente a attenção do Parlamento, o qual deveria proceder de modo que tomasse em consideração os altos interesses que comportava a medida, ao mesmo tempo respeitando a propriedade existente, sem imprimir um abalo profundo na agricultura, a saber, a industria capital do paiz.

O acolhimento dispensado á declaração concebida nestes termos precavidos não foi caloroso: foi antes frio, para não dizer hostil. Aliás o assumpto ia ser arredado pela retirada a breve trecho do gabinete Zacharias, cujo chefe buscava um ensejo para demittir-se desde que o monarcha formulara perante o Conselho d'Estado a pergunta famosa — devia conservar o ministerio ou conservar á testa do exercito em operações o seu commandante em chefe, o marquez de Caxias, o qual mandava representações contra o governo? O voto do Conselho d'Estado compellira o ministerio a permanecer, mas o dilemma imperial proposto fôra de natureza a melindrar o orgulho e a susceptibilidade politica de Zacharias, cujo caracter era altivo e independente.

O novo gabinete, conservador, de 1868, sob a presidencia de Itaborahy, occupou-se principalmente das finanças que a guerra tornara precarias. Houvera que emittir um emprestimo interno com juro de 6% ouro. Nesse anno a campanha paraguaya entrou na phase victoriosa para os alliados, mas, pessoalmente, ltaborahy era infenso a toda e qualquer alteração no regimen do trabalho; e o Imperador não logrou convertel-o ás suas idéas, nem mesmo depois de Aquidaban, da morte de Lopez e da occupação da Republica, quando as primeiras manifestações parlamentares secundaram a iniciativa do Chefe do Estado. Perdigão Malheiro previamente advogou em substancia a reforma que veio a vingar em 1871; Theodoro Machado que, como ministro da Agricultura, referendou a lei do ventre livre, propoz que fossem considerados libertos os escravos não matriculados; José de Alencar tratou de facilitar as manumissões pelo peculio do escravo e nos casos de successão fóra dos herdeiros necessarios. Tomando coragem, os liberaes mais adiantados, guiados pelo senador Nabuco, alçaram o programma reformista e, no tocante á necessidade da emancipação, fizeram causa commum com elles alguns conservadores, como Teixeira Junior (visconde do Cruzeiro). Aventou-se em projecto de lei que o governo fosse auctorizado a retirar do saldo orçamentario e a empregar a somma de mil contos em alforrias, com preferencia de mulheres e raparigas e tambem que, apezar da recusa do senhor, fosse outorgada pela auctoridade a libertação do escravo que dispuzesse de um peculio equivalente ao seu preço.

Sentindo faltar-lhe sob os pés o terreno e não dispôr da sympathia imperial para a sua politica de resistencia, Itaborahy apresentou sua renuncia e o poder passou para as mãos de São Vicente, que não tinha grande desejo de tomal-o, já porque se achava um tanto fóra da politica activa, como não era bastante familiar com os jovens elementos militantes e antepunha o gosto pelas controversias juridicas aos debates parlamentares.

Não lhe acudindo o apoio liberal e impotente para preservar a união dentro do seu proprio partido, transferiu poucos mezes depois o bastão de commando a Rio Branco, que rapidamente ascendia á direcção suprema das hostes conservadoras, excepção feita dos «emperrados». A habilidade deste estadista era grande porque se compunha em doses iguaes de lucidez de intelligencia e firmeza de acção e realçava-a um singular magnetismo pessoal. A obra do gabinete de 7 de Março de 1871 foi das mais fecundas na historia do Imperio, levando a termo a reforma judiciaria; promovendo consideraveis melhoramentos no ensino superior e no elementar, já fundando a Escola Polytechnica e a Escola de Minas, já abrindo cerca de 3.000 escolas primarias; procurando reorganizar o exercito e a marinha, que a guerra deixara em condição de descalabro e desenvolvendo a viação ferrea. Nenhum serviço publico prestado se pode comtudo comparar com o da libertação do ventre escravo, e nenhum lhe foi mais difficil executar em frente a uma opposição parlamentar que durante quatro mezes não desarmou e que abrangia adversarios como Andrade Figueira, dialectico formidavel; Ferreira Vianna, mestre de ironia; José de Alencar, orador de surtos litterarios; Paulino de Souza, cuja tenacidade se dissimulava sob a suavidade da voz, dos gestos e dos methodos de discussão.

Com o fito de iniciar sua filha — a princeza imperial D. Izabel — á faina do governo e de angariar-lhe popularidade, o Imperador confiara-lhe a regencia e partira para a Europa, que ainda não conhecia. Sentia-se seguro do resultado da lucta, embora a maioria ministerial fosse só de uma voz, o que facilitava a tactica da opposição para prolongar os debates, demorar as votações e atrazar o desenlace do pleito que Rio Branco sustentava no Senado e o ministro do Imperio, João Alfredo Correa de Oliveira, na Camara. Rio Branco prodigalizava-se em discursos de uma eloquencia simultaneamente precisa e elevada, mais do feitio de convencer do que de arrastar, mostrando sciencia profunda desta especie de discussões e impressionando pelo estylo simples, puro e elegante mesmo nas suas imagens. Por sua vez o leader taciturno, como chamavam João Alfredo, aparava todos os golpes, affectava indifferença aos ataques, vigiava de perto a defesa, valendo-se das occasiões proporcionadas para tirar vantagem dos descuidos do inimigo, levar de roldão a malevolencia e animar os timoratos.

A meio da campanha um ruidoso incidente parlamentar, motivado pela chamada á ordem pelo presidente da Camara do presidente do Conselho, que usara com relação a um deputado de uma allusão julgada offensiva á sua intemperança, determinou uma mudança na mesa. O novo presidente, Teixeira Junior, poz ao dispôr da causa humanitaria todos os recursos da sua sagacidade e experiencia e encaminhou as discussões a feliz termo, arrostando as injurias, a furia da opposição a cada artigo da proposta para a qual se reclamava encerramento do debate. A violencia jamais ultrapassou, porem, o recinto das sessões, isto é, confinou-se á oratoria e Rio Branco nunca se deixou offuscar ou intimidar pelo brilho ou pela virulencia dessas justas da tribuna. Sempre prompto a revidar, nunca deixava a resposta para o dia seguinte, e a cada passo se erguia sua figura imponente de parlamentar inglez, acompanhando de gestos breves e raros a dicção clara e fluente, destacando-se á meia luz da sala sua bella cabeça calva e seu rosto barbeado emmoldurado pelas suiças brancas, emquanto o olhar luminoso mergulhava nas fileiras contrarias e uma argumentação cerrada e convincente decorria dos seus labios finos. Assim o descrevem coevos e narradores hodiernos de tempos idos. No Senado a contenda foi muito mais curta e muito menos animada. Os liberaes, Nabuco á frente, collaboraram com vontade e Salles Torres Homem trouxe a contribuição da sua eloquencia magestosa. A proposta foi approvada em meio de geraes acclamações e o soalho do Senado ficou juncado das flôres, lançadas pelo povo das galerias.



As duas fontes da escravidão achavam-se estancadas: o trafico e o ventre condemnado. Faltava apenas prover ao destino dos que ainda soffriam sem grande esperança a lei cruel do captiveiro. Durante o tempo que os conservadores permaneceram no poder, a saber, até 1878, a questão ficou suspensa, na apparencia porque realmente chammejava no intimo das consciencias. O mundo marchara demasiado e com elle o Brazil para que o resultado obtido pudesse ser julgado sufficiente. A renovação da Camara com a subida dos liberaes fizera apparecer perante o paiz outros nomes e outras idéas. Joaquim Nabuco, primus inter pares, pois que se lhe agruparam alguns adeptos, joven, formoso, talentoso, dotado de uma palavra facil que sua cultura tornava particularmente attrahente, sacudiu a Camara e teria bastado a abalar a nação si a seu lado se não houvesse destacado José do Patrocinio.

De raça negra, como Luiz Gama, Ferreira de Menezes, André Rebouças, jornalistas e pensadores de merito, Patrocinio foi um orador apaixonado e empolgante e um escriptor exaltado e frenetico. Delle disse um publicista que não houve nota alguma do teclado humano, desde as mais sublimes até as mais soturnas, que não passasse pela sua penna, compondo uma symphonia terrifica em que subiam as mais altas aspirações espirituaes, gemiam as mais angustiosas lamentações da raça desgraçada e reboavam as mais pungentes imprecações. A liberdade, o trabalho, a dignidade da especie, a resignação, a piedade, o perdão, a caridade, a submissão, a lisonja, a mentira, a calumnia, a confissão da falta commettida, o arrependimento, a fadiga, a dor, a revolta, o crime — tudo passara n'um turbilhão ferindo todas as gammas, levando a cada ouvido a impressão que o devia fazer vibrar[2]. O romantismo não possuiu na verdade um mais acabado exemplar.

A eleição directa, que os liberaes apregoavam como uma panacéa e que foi realizada em 1880 por Saraiva, successor de Sinimbú, poderia certamente purificar o suffragio, convertel-o n'uma expressão mais sincera e mais exacta da vontade nacional, mas outra coisa havia mais urgente e mais nobre a tentar, que era a liberdade, mais do que de uma classe ou casta, de toda uma raça, cujo soffrimento era mais premente do que o do voto. A breve trecho travava-se aliás a batalha entre os abolicionistas e os denominados escravocratas, os dois extremos de uma sociedade politica, cujo meio era occupado pelos emancipadores ou abolicionistas moderados, prudentes, opportunistas e conciliadores.

Em toda a ultima phase da agitação, de 1880 a 1888, reinou um serio malentendido que só demasiado tarde se tratou de esclarecer e que então não se procurou desmanchar. O eixo da questão era a indemnização e no emtanto esta palavra nunca foi claramente articulada, a tempo de ser resolvido o problema. Os abolicionistas puros não queriam ouvir fallar em tal, o que não faz credito á sua noção de equidade, á sua previdencia economica e á sua capacidade politica: os seus adversarios ou pelo menos os representantes no Parlamento dos proprietarios territoriaes mais dotados de senso pratico, não confessavam francamente que sua resistencia cederia si o respeito á propriedade escrava confortasse aquella consequencia. A sentimentalidade luso-brazileira é assim tecida de um lyrismo abstracto e sua actividade tolhida por um falso acanhamento.

Á medida que se urdia tal malentendido, desenhava-se e accentuava-se um contraste geographico entre Norte e Sul, como nos Estados Unidos, si bem que obedecendo a causas differentes. Os Estados do Norte tinham entrado para a União Americana com o caracter de livres; as provincias septentrionaes brazileiras tendiam, a pezar seu, para igual regimen porque a gradual decadencia da cultura da canna (um instante compensada, durante a guerra da Seccessão pelos altos preços do algodão, producto da catinga e do sertão) provocava uma vinda progressiva de trabalhadores escravos para os cafezaes cada dia mais prosperos do Sul. A grande propriedade alli se expandia, quando alhures no paiz minguava. O Ceará especialmente, que em 1877 e 1878 passara por uma das crises de secca mais terriveis da sua lamentavel historia economica, elaborada sob alternativas climatericas, preparava-se um tanto forçadamente para justificar o titulo de «terra de luz» com que Patrocinio lhe acenara quando alli fôra em propaganda abolicionista. A «patria livre» começava a seduzir a maioria dos espiritos. Os gabinetes liberaes que se succediam no poder e que resultavam ephemeros, tinham começado por cerrar os ouvidos ao trovejar ainda longinquo, mas tinham acabado por admittir a necessiade de satisfazer a opinião despertada e alerta.

Os ministerios presididos pelo marquez de Paranaguá (1882) e Lafayette Rodrigues Pereira (1883), contando para este fim com as boas graças imperiaes, pensaram em avolumar o fundo de emancipação, em estabelecer um imposto de transmissão sobre as vendas de escravos e até em abolir o trafico inter-provincial. Faltava-lhes, porem, o fogo sagrado. As assembléas provinciaes do Ceará e Amazonas foram alem dos seus programmas platonicos e votaram a prohibição da exportação de escravos. Logo apoz ambas as provincias decretaram sua inteira libertação da instituição servil, exemplo que não poucos municipios de outras provincias entraram a imitar. O anno de 1884 marca o auge da campanha. A escolha do successor de Lafayette gyrou toda em redor da questão. Dos marechaes do partido liberal, Saraiva, o que D. Pedro II preferia, não se julgava com força bastante para attingir o alvo sem graves perturbações economicas e politicas; Sinimbú, o Nestor, considerava o problema já resolvido pela lei de 28 de Setembro de 1871; Affonso Celso, o de mais luzes, punha acima de qualquer outra a questão financeira, embora não se esquivando a am pliar a acção da lei de emancipação existente por meio de disposições complementares, uma vez que não affixassem um radicalismo revolucionario. Dantas, mais progressivo, ou mais flexivel, ou mais cortezão segundo o denunciava a opposição reaccionaria, foi o unico com valor para acceitar a tarefa e poz valentemente mãos á obra, para transformar numa medida governamental o que estava em via de degenerar numa arruaça. O seu lemma foi — «nem retroceder, nem parar, nem precipitar».



O conselheiro Dantas possuia, mais do que qualquer outro dos homens politicos do momento brazileiro, o dom do encanto pessoal, aquillo que os americanos chamam o magnetismo. Sua aptidão politica era notoria: tanto sabia cercar-se de homens de intelligencia e aproveitar-lhes o engenho, como occupar-se dos interesses, mesmo dos pequenos negocios dos seus correligionarios para quem o chefe do partido deve agir como um deus ex machina. Orador abundante e de recursos, tinha a maneira communicativa, a faculdade de enternecer, e tocava, na perfeição, o instrumento da sympathia. A cordialidade parecia uma manifestação espontanea da sua bonhomia caracteristica. Joaquim Nabuco delle dizia que fazia pensar em Gladstone, pelo liberalismo do seu temperamento de homem d'Estado, cada dia mais inclinado a escutar a opinião publica e a emprehender reformas ousadas. Em summa, era o homem indicado para chamar a si o sentimento popular, guiar os moços ao assalto e affrontar as difficuldades por pura ambição de gloria.

O Imperador não só lhe concedeu toda liberdade de acção como lhe prometteu todo o apoio constitucional. Fallou-se de um «pacto» entre o soberano e o presidente do Conselho, cujo programma comprehendia, além da extincção do trafico inter-provincial e da conversão do fundo de emancipação, para o qual só contribuiam os senhores de escravos, numa fonte alimentada por um imposto geral, um artigo novo, que era a libertação incondicional dos escravos sexagenarios. Segundo o calculo do governo, o numero total da população servil era então de 1.211.946. A matricula de 1873 accusava 1.541.819, havendo a deduzir 195.348 obitos, 115.625 alforriados pelos particulares e 18.900 alforriados pelo Estado, por meio do fundo official. Muitos dos sexagenarios, registrados apoz a abolição do trafico africano, não tinham, porem, a supposta idade, e a disposição envolvia «uma negação, si bem que parcial, do direito de propriedade do homem sobre o homem»[3], a qual poderia ser facilmente extendida. Comprehende-se que os conservadores emperrados e a dissidencia liberal que compartilhava sua politica, recebessem essa innovação perigosa com vibrantes ataques, servindo o celebre «pacto», julgado anti-constitucional e que Dantas explicava como um mero encontro de idéas para thema de diatribes contra o proprio monarcha — «eleitor dos seus ministros» na phrase de Andrade Figueira.

O velho espirito republicano recebia assim um estimulo inesperado, procedente de arraiaes onde não se podia suspeitar que medrassem predilecções democraticas.

No Conselho d'Estado Paulino de Souza, um dos chefes conservadores, aventurou o alvitre da indemnização: conforme ponderou, a propriedade escrava era legal e sua legitimidade não podia juridicamente ser posta em duvida. A unanimidade por assim dizer dos conselheiros — menos um — professava esta opinião, com variantes nos pareceres ou nos meios da solução do problema. A indemnização teve o seu instante de possibilidade, mas Affonso Celso desvendou um outro aspecto grave da reforma: a condição servil de facto desappareceria, pois que os escravos de menos de 60 annos ficariam statu-liberi, aguardando apenas a idade legal para se emanciparem.

Não podendo ser formulada como proposta do executivo porquanto creava impostos novos e modificava os existentes, o que constitucionalmente competia á iniciativa parlamentar, a medida foi apresentada como proposta pelo deputado Rodolpho Dantas, filho do presidente do Conselho e herdeiro dos seus dotes. Os sexagenarios permaneceriam a cargo dos senhores si ainda lhes pudessem prestar alguns serviços, a cargo do Estado si fossem invalidos. Uma nova matricula, comportando uma taxa fixa, importava na emancipação ipso facto dos escravos que não fossem a ella sujeitos. O valor maximo do escravo de menos de 30 annos era arbitrado em 800$000 (£ 80 ao cambio par). Estabeleciam-se um imposto sobre a propriedade escrava, de 5% nas cidades maiores, de 3% nas villas e de 1% nos campos; a revisão dos impostos de transmissão da propriedade já qualificada de anomala, e a cessação do seu commercio de uma para outra provincia.

Tanto mais complicada e borrascosa se annunciava a situação quanto era das mais precarias a maioria governamental, a qual se deslocava a cada votação. O gabinete só acceitava que fosse posta a questão de confiança a proposito da reforma servil, ponto essencial do seu programma; á opposição parecia isto constituir uma offensa ao regimen parlamentar, desde que um gabinete não passava de uma commissão das Camaras, que podiam livremente escolher o terreno de combate. A dialectica entrou em jogo, os sophismas pullularam, mas Dantas fez frente aos adversarios, recusando-se a travar batalha fóra da discussão essencial. O resultado foi-lhe todavia desfavoravel. A maioria hostil contou 59 votos; a minoria fiel 52. A dissolução estava de antemão concedida e o gabinete o sabia quando o seu chefe a solicitou da Corôa, fazendo ver que a discussão da proposta não fôra sequer iniciada e que era o caso da nação pronunciar-se em ultima instancia. Dest'arte o resolveu o Imperador, discordando do Conselho d'Estado. No que se concordou foi que, antes de tornar effectiva a dissolução, se tratasse de obter da Camara os meios de governar, isto é, os creditos necessarios á administração, porque a discussão do orçamento ficara suspensa. Podia-se intitulal-a dissolução a prazo, e contra ella desfecharam golpes desapiedados dois dos mais ilustres deputados conservadores.

Andrade Figueira pretendia que se negasse tudo ao governo, um governo imposto á nação por um «poder faccioso», qual se tornaria a Corôa si se obstinasse em protegel-o, assumindo a responsabilidade de uma dictadura financeira. «Si os contribuintes — não hesitava elle em exclamar da tribuna — se recusarem a pagar os impostos, eu preferirei esta revolução á revolução da rua, que o governo favorecia contra as gentes de bem». Subia, pelo que se vê, o diapasão, e as palavras reflectidas e serenas de Paulino de Souza não lograram deter as satiras mordazes de Ferreira Vianna contra o chefe do Estado. Paulino declarara com gravidade: «O partido conservador dá ao governo o exemplo da prudencia, do patriotismo, da sinceridade da sua adhesão á causa, que o mesmo governo compromette, da monarchia representativa constitucional no Brazil». O enfant terrible da grey, despindo a cordura monastica que simulava prezar, longe de acceitar o sacrificio preconizado no altar dos principios, repellia a mansuetude como norma politica e insurgia-se contra a votação de qualquer credito como o unico meio á sua disposição para extravasar sua indignação contra o «principe conspirador».

Os protestos suscitados pela objurgatoria injuriosa que annunciara esta expressão não o intimidaram, antes lhe forneceram o impulso de que carecia. A Camara, ora surpreza, ora tripudiante, teve que ouvir até o fim essa philippica, mais precursora da Republica do que os artigos estudados de Quintino Bocayuva ou os discursos declamatorios de Silva Jardim: «Liberaes e conservadores, republicanos, homens de todas as seitas, congregados em redor do estandarte da liberdade constitucional, é tempo de sacudir o jugo de uma omnipotencia usurpadora e illegal, que arruinou todas as forças vivas da nação... Estou farto de representar um papel n'esta comedia politica. É um scenario dos mais tristes, em que só se agitam espectros e uma unica realidade. Esse poder omnipotente e solitario afflige-me, irrita-me, e por mim quero fugir a todas as tentações... Si fosse mais moço, saberia porventura lavrar o protesto com meu proprio sangue, porque a liberdade vale bem tal preço...». A provação iniqua era digna da oração: «Quarenta annos de oppressões, de arbitrio e de victorias incruentas do poder armado contra a opinião desorganizada do paiz; quarenta annos de desfallecimentos, de submissões, de murmurios, de timidos protestos; quarenta annos de usurpações bem succedidas, de liberdade constitucional quasi supprimida, terão talvez animado o poder até fazel-o arrostar a opinião do paiz e desferir sobre a Camara o golpe mortal da dissolução. Sobre as ruinas da primazia popular, o novo Cesar caricato ousa insufflar coragem nos que hesitam ou temem, repetindo: Quid times? Cesarem non vehes!».

Semelhante discurso ou antes verrina contra as «mentiras e perfidias» de um principe tão nobre e tão leal não deixava por certo prever que quatro annos mais tarde o orador seria ministro da Justiça de um governo conservador, organizado para abolir a escravidão immediatamente e sem indemnização, que elle defenderia com a mesma eloquencia. Em 1884 elle ajudara como ninguem mais a arrastar para a arena eleitoral a pessoa do Imperador sem o menor respeito dynastico e sem sombra de equidade, porquanto o monarcha queria o pleito nas urnas tão livre e tão franco quanto o de 1880, sob o gabinete Saraiva, em que ministros foram derrotados. Sua fiscalização foi minuciosa, quasi impertinente com relação aos actos do governo e dos presidentes de provincia, seus delegados. O snr. Tobias Monteiro, que commentou intelligentemente estes episodios, teve em suas mãos 29 cartas ao presidente do Conselho, nas quaes D. Pedro II não cessava de censurar as transferencias de juizes (a magistratura era então una) e de outras auctoridades, e as solicitações officiaes de votos; de aconselhar a mais completa abstenção dos proconsules; de prevenir qualquer interferencia da força publica, excepto para manter a ordem; de defender a independencia de opinião de todo funccionario publico. Sua actividade infatigavel de tudo inquiria, de tudo se informava, procurando evitar as faltas ou pelo menos reparar os damnos. Nunca chefe d'Estado foi mais do que elle pastor do seu povo.

Tornavam-no responsavel da espoliação que se dizia preparada com attribuir-lhe a principal iniciativa da reforma. Quando negou ao ministerio Dantas, desprestigiado logo por occasião da verificação de poderes e alvo de uma moção de desconfiança, uma segunda dissolução, o outro lado alcunhou-o de tartufo da emancipação e paladino da escravidão. Proceder diverso da Corôa teria seguramente provocado uma agitação revolucionaria, que já se deixava presentir nas vaias e arruaças, por tal forma andavam exacerbados os animos, tanto se mostrava enfurecida a classe agricola e tão claramente se desenhava a crise financeira. Já era em demasia tarde para fazer vingar a idéa de indemnização. Questão de pessoas ou questão de principios o Parlamento manobrava para traz ao manifestar-se persuadido de que o governo não podia «garantir a ordem e a segurança publicas, indispensaveis á solução do projecto relativo ao elemento servil».

A minoria apregoava-se coarcta: nas palavras de Joaquim Nabuco, a Convenção Franceza invadida pelas secções da Communa não se sentia mais ameaçada do que a Camara Brazileira n'aquelle momento. As recordações da Grande Revolução são de um effeito sempre seguro n'uma assembléa latina. É uma tragedia que prima no repertorio.

Fizera-se comtudo impossivel não conceder satisfacção á opinião humanitaria e mister era achar o terreno de um accordo para retardar a emancipação immediata e incondicional que se tornara o lemma do partido abolicionista depois que os seus antagonistas tinham demonstrado que «disputavam a liberdade ao tumulo», recusando libertarem os veteranos da escravidão. Na situação que se tinham creado perante o paiz os conservadores não poderiam ser chamados ao poder. Seria o recúo. Saraiva, o chefe liberal, organizou um ministerio de transacção, melhor se diria de transição, apoiado pela dissidencia do seu partido e poupado pelos contrarios, adoptando estes o que se poderia chamar um estado de neutralidade benevola. O projecto concebido pelo novo gabinete era uma parodia do anterior: libertava os escravos de 65 annos, em vez de 60; fixava uma tabella decrescente, entre um conto de réis e duzentos mil réis (talvez umas 15 libras ao cambio da occasião), do valor da mercadoria humana, baixando com a idade, e mandava proceder a nova matricula.

Uma vez apresentado e quando não havia duvida de ser perfilhado, Saraiva não aguardou qualquer outra possivel manifestação de desconfiança e retirou-se, passando o governo logicamente aos conservadores sob a direcção de Cotegipe, presidente do Senado.



Toda tentativa de resistencia já podia ser qualificada de capricho. Os interesses particulares dos senhores de escravos mereciam consideração porque em muitos casos n'essa propriedade humana consistia o melhor ou antes unico dos seus haveres para exploração das suas terras. A desorganização geral do trabalho trazendo a ruina economica do paiz já deixara, porem, de ser um espantalho. Com a abolição do trafico verificara-se o accrescimo do desenvolvimento material do Brazil ao ponto do saldo commercial passar a ser favoravel á exportação de 1861 em diante e assim progredir notavelmente depois da emancipação dos nascituros e da diminuição da proporção do braço escravo. Cotegipe era um mestre da politica, porque tinha o sentimento dos interesses dos seus concidadãos e das correntes da opinião; mas era igualmente um mestre da ironia, associada a uma notavel sagacidade. Suas respostas eram tão promptas quanto eram lucidos os seus golpes de vista. Muito senhor de si, na tribuna ou no gabinete, ora desarmava os adversarios com uma bonacheirice simulada, ora os irtitava com as locuções pittorescas e até plebéas com que polvilhava os seus discursos, pronunciados com uma lentidão calculada e a preoccupação das expressões apropriadas. Não se lhe dava de fazer caretas, brincando com a luneta, com o lenço, com o lapis, com os papeis ao seu alcance, não lhe bastando o jogo da physionomia ladina. Sua fealdade intelligente, sua cara de famulo astucioso da comedia classica, por vezes se guindava a exterioridades de desdem aristocratico. Sempre d'elle se esperava uma zombaria, e, por vezes, o que sahia dos seus labios era uma observação profunda, quando não a condensação de uma visão prophetica que fazia duvidar do seu scepticismo habitual, o qual sobretudo se manifestava por uma maneira muito delle. Com uma constante naturalidade e uma clareza elegante timbrava em occupar-se com gravidade dos assumptos frivolos e com frivolidade dos assumptos graves[4], dando mostra de uma philosophia da vida contradictoria, buliçosa, divertida, occultando os aspectos sombrios sob os aspectos joviaes.

Com relação á questão da abolição, a duração do ministerio Cotegipe foi assignalada pela lucta final entre o espirito de reacção, que queria fazer vingar a immobilidade, e o espirito de progresso, que mais audacioso se tornava e dispunha de melhores trunfos. Não mais se tratava da legalidade da emancipação completa, apenas de opportunidade da sua cessação, quanto ao direito, desde 1866, pelo menos, que Perdigão Malheiro, estabelecera que a propriedade escrava não era de direito natural e sim creação do direito civil e, conforme acrescentara outro jurista, São Vicente, não correspondia, a um principio necessario, representando um privilegio, uma excepção feita ao direito commum. A agitação generalizara-se. Do Norte ganhara o Sul. A pena de açoites, ainda no codigo negro, teve que ser extincta. Os escravos — e o Sul era a região das grandes escravarias — puzeram-se a desertar as plantações, a tal ponto que se formaram quilombos e que só em Santos houve numa occasião 12.000 desses refugiados. Os grandes proprietarios de fazendas de café já se resignavam publicamente a que a instituição servil fosse mantida apenas por tres annos mais, afim de melhor prepararem o advento do trabalho livre. Alguns alforriavam de uma vez todos os seus escravos. Os senadores liberaes adheriam na sua maioria ao projecto de abolição total para a data de 31 de Dezembro de 1889, quando ficariam livres os 720.000 escravos ainda existentes. Nabuco e os outros abolicionistas arrastavam o throno para a arena, assetteando o Imperador e adulando a Princeza Regente quando D. Pedro II, enfermo, embarcou de novo para a Europa saudado pelo artigo famoso de Quintino Bocayuva — O esquife da Monarchia. O exercito, finalmente, reclamava da Corôa, em nome da humanidade e da caridade christan, que os soldados não fossem torpemente empregados em perseguir negros fugidos. De indemnização não se fazia sequer menção como justa compensação dos prejuizos acorrentados á lavoura pela reforma que se impunha. Era um eclipse total o que devia occultar a mancha negra.

A princeza D. Isabel, como mulher e mulher de grande coração, era em favor da abolição e não dissimulava suas preferencias, antes as patenteava, manifestando-se até de todo alheia a preconceitos de côr. Os republicanos faziam causa commum com os abolicionistas, mas procurando envenenar todos os incidentes, tirar partido d'elles e englobar na mesma miragem todas as liberdades. Infelizmente para a monarchia, na questão abolicionista, que lhe ia alienar a propriedade agricola, o arcabouço social do paiz, se enxertou por esse tempo a questão militar, ajudando a transformar em politica uma crise que devia ser exclusivamente economica. A Regente levada pelos seus sentimentos e por alguns conselheiros de pensar leviano, julgou que procedia com acerto e assegurava o futuro da dynastia, despedindo um gabinete que, defendendo-se, defendia as instituições com a energia calma que era o apanagio do seu chefe, o qual habilmente tratava com indulgencia, para não o irritar mais, o espirito de insubordinação e de indisciplina, tão espalhado já, por um effeito atavico, que a prisão, aliás arbitraria, de um official reformado, levara os seus companheiros de classe na actividade a reunirem-se no Club Naval e armarem os marinheiros da tripulação de guerra para atacarem de noite os policiaes[5].



A correlação da instituição servil com a instituição monarchica é facil de comprehender. Os conservadores mais ferrenhos tinham-se esfalfado «em denunciar o soberano, attrahindo sobre elle o odio dos senhores de escravos: agora fôra a vez dos ultra-liberaes denuncial-o ao rancor popular, concordando uns e outros em apresental-o como um typo de astucia, de machiavelismo, de despotismo e de indifferença oriental. A rhetorica pode ser a mais mentirosa das artes. Ninguem foi mais iconoclasta da grande figura imperial que a sorte proporcionou ao Brazil para prestigiar a nacionalidade do que Joaquim Nabuco, que julgou depois expiar sua falta com alguns annos de fidelidade á memoria do regimen que elle tanto ajudara a demolir. A 24 de Agosto de 1885 bradara elle da tribuna da Camara, qual novo Timandro, que «o problema servil, que era de dignidade para a nação mas de vergonha para o throno, essa tarefa divina e humana que os dois grandes libertadores, o do absolutismo e o da republica, Alexandre II e Lincoln, tinham resolvido em 24 horas, não merecera do Imperador do Brazil nem um minuto das suas preoccupações; por amor d'ella não correra risco algum; 45 annos tinham decorrido sem que houvesse pronunciado uma palavra sequer que a historia tivesse podido registrar como uma condemnação formal da escravidão pela monarchia, um sacrificio da dynnastia em favor da liberdade, um appello do soberano ao povo em prol dos escravos. Nada, absolutamente nada, e agora que os dez annos proximos, os ultimos da escravidão, serão provavelmente tambem os ultimos do Imperio, n'esse espaço de tempo equivalente ao antigo interregnum das monarchias electivas, porque nas monarchias populares, não obstante todas as Constituições escriptas, é então que se estabelece definitivamente o direito de successão, o Imperador, a meio da agitação abolicionista e no dia immediato ao das eleições mais disputadas que jamais tiveram lugar neste paiz, substitue o partido que comparecera perante os eleitores em nome da liberdade, chamando a si o patronato dos escravos, pelo partido que não se propoz no Parlamento senão a ser o agente e defensor da escravidão, quer dizer — volta-nos as costas, a nós que fomos accusados de ter com elle celebrado um pacto, no proprio dia da derrota que nos devia ser commum e estimular a lealdade de um poder... que não poude deixar de ter a consciencia de que, sacrificando-nos pelo paiz e pelos escravos, nós serviamos directamente, si bem que desinteressadamente, a causa do unico throno americano».

Quando o gabinete Cotegipe teve que se demittir por lhe faltar publicamente a confiança da Corôa, retirada ao seu delegado, o chefe de policia da Côrte, dos trez principaes vultos do partido conservador, dois, o ex-presidente do Conselho e o senador Paulino, entendiam caber aos liberaes a vez de governar de novo, mas a Princeza Regente, que porventura vacillaria entre os differentes marechaes da opposição, pensara desde algum tempo no senador João Alfredo e nem julgou conveniente consultar a tal proposito o barão de Cotegipe.

João Alfredo Corrêa de Oliveira possuia aliás muitos predicados para levar a cabo do melhor modo a reforma que já se fizera indispensavel. Era como parlamentar um mestre de estrategia, que sabia immolar ás vãs vaidades oratorias os triumphos positivos das votações. Sem dispôr da auctoridade quasi sacerdotal, conforme a qualifica o snr. Tobias Monteiro, do senador Paulino de Souza sobre o seu grupo, desfructava muito prestigio e um prestigio mais amplo, proveniente da sua experiencia de administração e da sua longa associação no governo com o visconde do Rio Branco, tendo creado a estatistica e mandado proceder ao primeiro recenseamento. Como preferia agir a fallar, e este traço é raro entre os latinos e rarissimo entre os latino-americanos, suppunham-no geralmente destituido de eloquencia e o senador Silveira Martins, vibrante orador rio-grandense, designou-o um dia da tribuna como membro da Academia dos Silenciosos da Persia, mas teve ensejo mais para diante de mostrar que lhe não faltava, quando era necessario, o dom da palavra e que saberia fazer bom uso da sua extraordinaria memoria, que conservou até depois dos 80 annos, das suas aturadas leituras, dos seus variados conhecimentos de Historia e de Economia Politica. A sessão legislativa de 1888 foi cheia de imprevisto e de discussões animadas e mesmo violentas pelo feitio pessoal que assumiram. Ficou celebre o torneio entre Lafayette e João Alfredo, no qual o presidente do Conselho brilhou no primeiro plano, revelando-se um orador severo, correcto, nunca se deixando apanhar de surpreza, inspirando confiança aos seus partidarios, da mesma forma que se sabia impôr aos seus adversarios.

João Alfredo fôra apologista da indemnização, mas a idéa da abolição caminhara com demasiada rapidez para que o gabinete, apezar de conservador, julgasse prudente insistir n'ella. Ficou famosa a phrase de Joaquim Nabuco na Camara, que os escravos não eram liberaes, sendo-lhes indifferente que este partido ou o partido adverso os redimisse do captiveiro. O momento era tal, disse elle n'um assombro tribunicio, que se tornara tão impossivel distinguir a voz dos partidos á beira da catadupa dos destinos nacionaes quanto ouvir o zumbido dos insectos atordoados que esvoaçavam sobre as quedas do Niagara.

Apreciando os acontecimentos a uma luz costumeira e segundo o criterio ordinario do systema parlamentar, houvera na verdade na exigencia pelo poder moderador da demissão do magistrado que á testa da policia se mostrara capaz de fazer frente á desordem e era por isto verberado pelas folhas da opposição e pelos discolos de farda, uma invasão na esphera do executivo, responsavel pela ordem publica. Fôra aliás um simples pretexto da Corôa para substituir um ministerio que gozava do apoio da Camara e do Senado por outro ministerio, reflexo da sua politica. O barão de Cotegipe apontou o episodio, em discurso, como «facto unico na nossa historia parlamentar» e o chefe liberal Silveira Martins deu-lhe o nome de «conspiração do Paço». Joaquim Nabuco justificara de «erro do Imperador» a recusa de conceder ao gabinete Dantas uma segunda dissolução da Camara e de proseguir com o mesmo governo até ultimar a abolição, o que na sua opinião teria poupado ao paiz trez annos de agitação esteril ou antes prejudicial á causa monarchica. O Imperador, no seu papel de arbitro constitucional, quizera, porem, sondar o juizo nacional e não affrontar os espiritos conservadores, sob pretexto de que o principio de legitimidade da propriedade escrava fôra declarado moralmente caduco, com a realização de uma reforma de natureza revolucionaria, pois que assim supprimia, pela intervenção de um poder superior e alheio ás luctas partidarias, o que tinha ainda caracter de legalidade. Resta aliás saber si o eleitorado acompanharia a Corôa na sua arriscada iniciativa.

Erro politicamente mais grave commetteu, no parecer de outros, a Regente chamando um segundo gabinete conservador para executar a medida legislativa radical a que o primeiro era infenso. O partido conservador, esteio principal das instituições, foi assim separado em dois troços e, quando um anno depois os liberaes subiram ao poder, viram-se impedidos pelo seu proprio espirito e pelas suas proprias doutrinas de proporem uma indemnização que teria dictado silencio á lavoura e obstado á sua conversão por despeito á idéa republicana, mas que repugnara aos conservadores. Silveira Martins perguntava com razão no Senado onde iriam os liberaes fincar sua bandeira reformista si os conservadores desertavam a sua tradicional. «É nada menos do que a estrada da revolução, porque o partido da liberdade não pode ficar atraz d'aquelle ao qual caberia naturalmente a repressão». E ajuntava que todas as reformas estavam de uma vez em debate, mesmo a federação. Foi, com effeito, o que aconteceu.

Os liberaes, que tinham com Dantas envidado esforços ingratos, mereciam ter tido a honra de completar a grande transformação social. Os abolicionistas collocavam, porem, seu ideal acima dos ciumes dos partidos. Um anno aliás havia que João Alfredo, chefe nortista, celebrara alliança com o chefe conservador de São Paulo, Antonio Prado, rico fazendeiro mas partidario devotado da abolição e politico tão pouco imbuido de devoção monarchica – o que os inglezes chamam loyalism – que n’um discurso pronunciado ao tempo em que occupava a pasta da Agricultura, não hesitara em referir-se com desdem aos «ouropeis da realeza». A expressão foi então largamente commentada como um signal dos tempos. A maioria conservadora da Camara evoluira tambem no mesmo sentido e o projecto de abolição immediata e incondicional, adoptado sem discrepancia pelo gabinete, foi apresentado no Parlamento a 8 de Maio e promulgado a 13. Na Camara 83 votos o approvaram contra 9. Joaquim Nabuco teria até desejado um voto por acclamação, imitado da Convenção Franceza. Como Andrade Figueira, o campeão da resistencia legal, seguisse protestando, sem se desviar uma pollegada do seu ardor insolente, Nabuco lançou-lhe o epitheto de «coração de bronze»; o outro retorquiu fallando dos «corações de lama».

João Alfredo teria estimado, si possivel, achar um meio de tornar a situação menos penosa para a classe agricola. Fallara-se um instante em preservar nominalmente a condição servil para um curto prazo, de 3 a 5 annos, seguido de uma aprendizagem de trabalho livre e remunerado com salario, por parte dos antigos escravos. Qualquer demora ou obrigação, temporaria que fosse, não era comtudo mais admittida pelo enthusiasmo popular. Arredou-se até o alvitre da obrigação para os ex-escravos de residirem durante algum tempo nos municipios do seu domicilio, afim de evitar a vagabundagem e as desordens. Cerca de um anno mais tarde, em presença da ruina de muitos plantadores, reappareceu na tela de discussão, trazida pelo barão de Cotegipe e por Lafayette – este, antigo republicano – a possibilidade de indemnização, mas sem a menor esperança de ser attendida a sua reclamação.

Ao ter conhecimento em Milão, onde o prostrara gravissima enfermidade que quasi o victimou, da consummação da abolição, D. Pedro II exclamou, ao que se conta – Grande povo! Uma vez, de regresso, e vendo de perto a situação tensa, criada pelo lyrismo dos abolicionistas extremados, observou, porem, que si tivesse estado presente, as coisas não se teriam talvez passado de igual modo.

Elle não acreditava, como apregoava Joaquim Nabuco, que se houvesse por tal preço cimentado a união do throno e do povo. Melhores videntes julgavam ao contrario compromettida seriamente essa união. Está na memoria publica a oração memoravel de Cotegipe no Senado, annunciando por palavras pouco veladas a republica proxima que Ruy Barbosa deixava adivinhar, quando ponderava que a Corôa sacrificara ingenuamente seus interesses, mas que afinal não mais fizera do que «abrir os olhos á luz meridiana e deixar de chicanar com os factos consummados».

A reforma estava de facto decidida desde que a realeza se ligara á propaganda abolicionista, no dizer do senador Paulino, para quem se buscava tão sómente emprestar um simulacro de legalidade a uma medida cuja concepção e cujo alcance eram francamente subversivos. Sabendo que a Princeza Regente aguardava impaciente no Paço da Cidade o autographo da lei, para assignal-a, o chefe conservador que se blasonava de representar «a junta do couce», encurtara seu discurso no Senado para, na sua phrase, «não fazer esperar uma senhora de tão alta linhagem». Regente e povo estavam febris. Nunca se vira nem se tornará a ver no Brazil expansão igual de enthusiasmo. Foi um delirio. Multidões, embriagadas de alegria, invadiram o recinto da Camara e do Senado. Por toda a parte ouviam-se musicas, resoavam vivas, estalavam foguetes, pronunciavam-se discursos, cantava-se e dançava-se ao ar livre. Na verdade era uma victoria da opinião, de todos quantos tinham collaborado com fervor identico e com identico fito: os fazendeiros que tinham reconhecido a necessidade da reforma; os que tinham alforriado em massa suas escravarias e introduzido o braço livre; os officiaes que se tinham recusado a perseguir os negros fugidos das plantações; as auctoridades que se esquivavam a dar apoio aos senhores queixosos; o povo que protegia os escravos e vaiava os senhores, reclamando a lei de Christo...



O Imperio resgatou pelo mais tocante dos sacrificios, pelo seu proprio holocausto, o erro da Independencia, libertando politicamente o branco sem libertar socialmente o negro, e sobretudo o crime da mãi patria, fazendo de sua colonia uma nação de escravos. Bernardo de Vasconcellos, o grande estadista do primeiro Reinado, da Regencia e da Maioridade, que, pondo de lado o seu credo liberal, oppoz a cohesão conservadora á desaggregação federalista, exclamou um dia na Camara: Nossa civilização provém da costa d'Africa; e como todos o encarassem com surpreza, accrescentou: «Sim, a civilização brazileira de lá veio, porque d'aquelle continente veio o trabalhador robusto, o unico que sob este ceu africano e n'um clima mais inclemente então que hoje, poderia ter produzido, como produziu, as riquezas que proporcionaram a nossos pais recursos para mandar seus filhos estudar nas academias e universidades da Europa, alli adquirirem os conhecimentos de todos os ramos do saber, os principios da Philosophia do Direito, em geral, e do Direito Publico Constitucional que impulsionaram e apressaram a Independencia e presidiram á organização consagrada na Constituição e n'outras leis organicas, ao mesmo tempo fortalecendo a liberdade».

O cruzamento, com effeito, tornou o labor no Brazil incomparavelmente mais resistente, e a divida moral contrahida, pela civilização brazileira com a raça negra é mais consideravel ainda do que a divida physica, por mais importante que esta seja com relação á economia nacional; porquanto a emigração européa veiu modernamente colher o que a importação africana semeara e plantara, fecundando o solo virgem. Os negros foram os guardas constantes, os defensores natos dos estabelecimentos ruraes. Podiam alguns evadir-se para escapar ás sevicias ou buscar a illusão da liberdade, mas raros se revoltaram em grupos contra os seus senhores, ou os trucidaram, ou commetteram desacatos, antes ajudavam com todas suas forças os proprietarios a se tornarem abastados e influentes, soflrendo muito embora com esse seu poder. Quando, sob a Regencia, a anarchia se alastrou por todo o paiz, havia uns toques de levantes de gente de côr como a balaiada do Maranhão e a sabinada da Bahia, mas não tomaram o aspecto geral de uma guerra de raças. Foram antes movimentos ou suscitados ou explorados pela politica. Os agitadores abolicionistas da ultima decada de regimen servil, mesmo os menos demagogos dentre elles, aconselharam aberta e malevolamente os escravos a empregarem aquella arma do terror negro e, em accessos de eloquencia tropical, evocaram aos olhos dos senhores o espectaculo hediondo dos seus corpos recortados e das suas filhas violadas. Não foram cohibidos nas suas atrozes suggestões, mais ameacadoras do que sinceras e o desinteresse da Corôa por si protegeu os proprietarios, da mesma forma que a isenção de ambições pessoaes dos homens da Regencia tinha salvado a instituição monarchica encarnada n'uma criança.

Nada succedeu que recordasse de longe sequer as scenas de São Domingos. Ao proclamar-se a abolição, os escravos abandonaram na sua immensa maioria as plantações e foram para a cidade prover a seu modo a liberdade concedida, mas não deixando atraz de si um ultraje, uma vingança, quasi que saudosos das senzalas que tinham abrigado o seu infortunio. Sob varios dos seus traços a instituição servil offerecia uma apparencia patriarchal. A cordialidade que reinava geralmente — o que não quer dizer absolutamente — entre senhores e escravos prova que a humanidade era a regra commum entre os primeiros, os quaes, vivendo em contacto diario com os segundos e fiscalizando em pessoa seus feitores, tinham toda vantagem em tratal-os sem dureza e sobretudo sem crueldade. Foi o odio que provocou as terriveis represalias antilhanas. Os proprietarios viviam pela maior parte na Europa e a administração das suas terras andava entregue a homens sem ternura nem commiseração pelos seus semelhantes, ás vezes da mesma raça, para os quaes se mostravam algozes. A tortura era no Brazil uma excepção: era a regra ordinaria nas colonias inglezas, hollandezas e francezas, onde a abolição significou n'alguns casos um divorcio tragico com que os martyres despedaçaram o laço. No Brazil foi uma separação amigavel de que resultou a pacificação dos espiritos.

  1. Exploration of the Highlands of the Brazil, London, 1869, 2 vols.
  2. Tobias Monteiro, Pesquizas e Depoimentos, Rio, 1913.
  3. Evaristo de Moraes, D. Pedro II e o movimento abolicionista, n'O Jornal, de 2 de Dezembro de 1925.
  4. Affonso Celso, Oito annos de Parlamento.
  5. Tobias Monteiro, ob. cit.