FABULARIO PORTUGUÊS




Em 1900 tive a felicidade de encontrar na Bibliotheca Palatina (Hofbibliothek) de Vienna d’Austria um livro manuscrito, em português, que tem no respectivo Catalogo esta marcação: «3270* Philol. 291». A lettra concorda com a de documentos portugueses datados do seculo xv; é boa e uniforme. O titulo do livro diz o seguinte, em lettra muito mais moderna que a do corpo da obra: Fabulae Aesopi in lingua Lusitana.

O livro está escrito em papel, com margens. Consta de 48 folhas, numeradas modernamente até 46, porque a numeração das folhas 28 e 40 está repetida. O verso da folha 46 está em branco. Por isso o numero total de paginas escritas é de 95. Ha paginas que tem 29 linhas; outras tem menos. Altura das folhas: 0m,215; largura: 0m,145. Altura da parte escrita, quando cada pagina tem o maior numero de linhas: 0m,140 a 0m,145; largura: 0m,100. A tinta é desmaiada, um tanto amarella. Varias folhas estão deterioradas pela traça e umidade, sobretudo as de n.os 25, 34-r, 38, 39, 41-r 3 42-r, onde ha falhas de palavras. Outras tem estragos menores.

Na fl. 1-r. ha uma illustração á penna, e ha outra na fl. 3-v. Pelo meio do livro ha varios espaços em branco para conterem outras illustrações que não chegaram a ser feitas. Cada capitulo tem no principio um espaço em branco, destinado a receber uma lettra capitular floreada, que só rara vez chegou a escrever-se.

O volume foi encadernado em pergaminho branco; tanto na parte anterior como na exterior vê-se ao centro, por fóra, o brasão da Austria. Na parte anterior, em cima, vêem-se as iniciaes da Bibliotheca de Vienna, e em baixo as de uma antigo bibliothecario e a data da encadernação, — tudo disposto assim:


E. A. B. C. V.

Brasão da Austria

17. G. L. B. V. S. B. 53

Tanto o brasão como as lettras e a data são doirados. As iniciaes superiores significam: E(x) A(ugustissima) B(ibliotheca) C(aesarea) V(indobonensi)[1]. As inferiores: G(erardus) L(iber) B(aro)[2] V(an) S(wicten) B(ibliothecarius), com a data de 1753. — Altura da capa: 0m,22; largura: 0m,1450; largura da lombada: 0m,020. Na lombada collaram-se duas tiras de papel encarnado, uma superior á outra, que dizem respectivamente:

FAB. COD. MS.
ÆSOP. PHILOL.
LVSIT. CCXCI

Como o titulo o mostra, o livro consta de fabulas em português; ellas todavia não são traducções de Esopo, são apenas no gosto esopiano. Chamo provisoriamente ao livro Fabulario Português. As fabulas são em numero de 63, ou, se contarmos como uma unica as de n.º xlix e l, em numero de 62.


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Na transcrição sigo sempre o ms., exceto no seguinte: emprégo lettra maiuscula inicial nos nomes proprios, e depois de ponto final; substituo o s longo, ou ſ, por s; substituo por rr um sinal que no ms. representa o r forte (quasi sempre inicial)[3]; escrevo i, ij, por ı, ıȷ accentuados; j por J; y por y pontuado; separo as palavras procliticas, quando (por ex., a conjuncção e, a preposição a e de, o artigo definido singular, etc.) vem unidas á palavra principal; separo por traço de união, como hoje se faz, as encliticas que no ms. vem unidas á palavra antecedente (escrevo, por ex., tornauan sse por tornauansse); uso de apostropho para indicar a omissão que na pronuncia se fazia de certas vogaes (por ex. escrevo lh’o por lho); desfaço as abreviaturas, regulando-me pela maneira ordinaria como as mesmas palavras estão noutros passos, quando escritas por inteiro[4]; separo os §§; noto por travessões os dialogos; pontuo [5] e accentuo moderadamente[6]. Com relação ás nasaes, observa-se no ms. que estas estão representadas por tres maneiras: por m, por n e por til. O m e o n alternam indifferentemente no corpo da palavra (emveja, omde, homrra, ssenbramte, paamcadas, enpeecer), mas o m é muito mais frequente que o n; no fim de palavra raras vezes se encontra n. O til usa-se principalmente no fim de linha, ou proximo do fim, para abreviar a palavra, e esta não ultrapassar a margem; tambem nas mesmas condições se usa ás vezes n. Ha porém casos em que o til se usa sem regra: correrõ, mũdo, longe do fim de linha. É tambem frequente , my com til (=mim) e tpo com til (=tempo). Os ditongos ou digraphos são quasi sempre notados com til: homẽes, rãas, coraçõoes, hũu, hũa. Pela minha parte, faço a respeito das nasaes o seguinte: substituo o til por m, quando eu vir que elle representa abreviatura; deixo-o nos casos em que é evidente que elle se adota sistematicamente (ditongos, etc.)[7]; conservo sempre o n, mesmo quando elle está no fim de linha. — Como no ms. se usa ç, mesmo antes de e e i, restituo a cedilha quando ella faltar, pois vê-se que falta por engano. — Em todos os outros casos em que eu me afastar do original, indica-lo-hei em nota. Os accrescentamentos, incluindo os titulos do prologo e das fabulas, serão postos entre colchetes.


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Seguidamente ao texto apresentarei um vocabulario, farei algumas considerações linguisticas, accrescentarei umas paginas com annotações ás fabulas e um estudo litterario d’estas.

Como reservo para o vocabulario a explicação das expressões que necessitarem d’ella, só raro accrescentarei ao texto notas que não sejam meramente paleographicas ou phoneticas.

A presente edição, apesar de critica, é pois quasi diplomatica. O manuscrito está inedito, e apparece agora a lume pela primeira vez. Tanto quanto pude averiguar, nunca nenhum historiador da nossa litteratura teve conhecimento d’elle. Escusado será encarecer a importancia da publicação, quer sob o aspecto litterario, quer sob o aspecto linguistico[8].

J. L. DE V.


Notas editar

  1. Vindobona é, como se sabe, o nome da cidade antiga a que hoje corresponde Vienna, e por isso o nome adoptado para esta quando se escreve em latim.
  2. Liber baro, titulo nobiliario, «barão», = allemão Freiherr: Frei «liber», Herr «baro»
  3. Faço sem hesitação esta mudança, porque algumas vezes o tal signal alterna com rr no manuscrito. Podia, tambem, em vez de rr, adoptar r.
  4. A abreviatura nhũ por nenhum ou nem hum é sistematica, e por isso deixo-a. Tambem hoje adoptamos sistematicamente certas abreviaturas, que nunca desfazemos, por ex.: «V. Ex.ª», «D.», «Fr.» e outras. No ms. não se adopta porém a este respeito regra constante. Convém notar o seguinte. No ms. encontra-se frequentemente dc̄co, fc̄co, dc̄cor, por dc̄to, fc̄to, dc̄tor etc., latinismos orthographicos tradicionaes por dicto (dictus), fecto (factus), doctor (doctor); transcrevo essas palavras, e outras analogas, com ct. Quando estiver por extenso autor, douctor, doutor, transcrevo assim mesmo. Não ha duvida que na pronúncia o c não se fazia ouvir. — No ms. oscillam pollo, com o, e pella, com e, etc., oscillação que correspondia, como hoje, á pronuncia; como muitas vezes se encontra escrito pllo, plla etc., com ll cortados, é impossivel saber se quem escreveu queria representar e ou o: para a transcrição regulo-me pela fórma mais proxima d'esse logar, quando escrita por extenso. — Outras particularidades vão assinaladas nos seus logares.
  5. No ms. o ponto final está frequentemente indicado por dois pequenos traços verticaes e paralellos (). Ha ainda outros sinaes de pontuação: por exemplo um ponto (.) serve de virgula ás vezes.
  6. Com estas alterações, que em nada modificam a pronuncia, torno o texto mais facil de ler.
  7. No ms. o til abrange geralmente mais de uma lettra. Quando as lettras são vogaes, não se póde saber a qual d’ellas propriamente pertence; comtudo escrevo rãa, hũu, coraçõoes etc., com o til na primeira.
  8. Quando estive em Vienna d’Austria em 1900, copiei algumas fabulas directamente do ms., e fiz um indice d’ellas. Como porém a copia me levava muito tempo, obtive para a Bibliotheca Nacional de Lisboa uma photographia de toda a obra, e por ella me regulo agora. Esta photographia, que ficou excellente, tirou-a o Sr. E. Schattera (Wien, Hauptstrasse, nr. 95), por intermedio do Sr. Dr. R. Beer, illustre funccionario da Bibliotheca Palatina. O texto que hoje publico foi copiado da photographia pelo Sr. Balbino Ribeiro, 2.º conservador da Torre do Tombo, e collacionado com ella pelo Sr. Pedro d’Azevedo, 1.º conservador do mesmo estabelecimento, e por mim.