Voltaram ambos impressionados da tapera. Manuel tentara por duas vezes uma conversa que não vingara no ânimo acabrunhado do companheiro; Raimundo respondia maquinalmente às suas palavras, ia muito preocupado e aborrecido. Na dúvida da sua procedência e com a certeza do seu bastardismo, vinha-lhe agora uma estranha suscetibilidade; não sabia por que motivo, mas sentia que precisava, que tinha urgência, de uma explicação cabal do que levou Manuel a recusar-lhe a filha. "Com certeza estava aí a ponta do mistério!"

Ele o que queria era penetrar no seu passado, percorrê-lo, estudá-lo, conhecê-lo a fundo; encontrara até então todas as portas fechadas e mudas, como a sepultura de seu pai; embalde bateu em todas elas; ninguém lhe respondera. Agora um alçapão se denunciava na recusa de Manuel; havia de abri-lo e entrar, custasse o que custasse, ainda que o alçapão despejasse sobre um abismo.

E, tão dominado ia pela sua resolução que, ao passar pelo cruzeiro da Estrada Real, nem só deu por ele, como pelo guia que logo se pusera a caminho.

— Ó meu amigo! gritou-lhe o tio. Isto também não vai assim!... Despeça-se deste lugar!

E apeou-se, para depor aos pés da cruz um galho de murta.

Raimundo voltou atrás e, depois de um grande silêncio, fitou Manuel e perguntou-lhe, externando um retalho do pensamento que o dominava:

— Ela será, porventura, minha irmã?...

— Ela, quem?

— Sua filha.

O negociante compreendeu a preocupação do sobrinho.

— Não.

Raimundo tomou a mergulhar no pau da sua dúvida e das conjeturas, procurando de novo o motivo daquela recusa, como quem procura um objeto no fundo d'água; e a sua inteligência, de outras vezes tão lúcida e perspicaz, sentia-se agora impotente e cega, às apalpadelas, às tontas, desesperada, quase extinta, nas lamacentas e misteriosas trevas do pântano.

E, de tudo isso, vinha-lhe um grande mal-estar. Depois da negativa de Manuel, Ana Rosa afigurava-se-lhe uma felicidade indispensável; já não podia compreender a existência, sem a doce companhia daquela mulher simples e bonita, que, no seu desejo estimulado, lhe aparecia agora sob mil novas formas de sedução. E, na sua fantasia enamorada, acariciava ainda a idéia de possuí-la, idéia, que, só então o notava, dormira todas as noites com ele, e que agora, ingrata, queria escapar-lhe com as desculpas banais e comuns de uma amante enfastiada. Oh! sim! desejava Ana Rosa! habituara-se imperceptivelmente a julgá-la sua; ligara-a a pouco e pouco, sem dar por isso, a todas as aspirações da sua vida; sonhara-se junto dela, na intimidade feliz do lar, vendo-a governar uma casa que era de ambos, e que Ana Rosa povoava com a alegria de um amor honesto e fecundo. E agora, desgraçado — olhava para toda essa felicidade, como o criminoso olha, através às grades do cárcere para os venturosos casais, que se vão lá pela rua, de braço dado, rindo e conversando ao lado dos filhos. E Raimundo antejulgava perfeitamente que aquele empenho de Manuel em negar-lhe a filha, longe de arredá-la do seu amor, mais e mais o empurrava para ela, ligando-a para sempre ao seu destino.

— Terá sua filha alguma secreta enfermidade, que levasse o médico a proibir-lhe o casamento? Terá algum defeito orgânico?...

— Oh! com efeito! O senhor tortura-me com as suas perguntas! creia que, se eu pudesse dizer-lhe a causa de minha recusa, tê-lo-ia feito desde logo! Oh!

Raimundo não pôde conter-se e disparatou, fazendo estacar o seu cavalo.

— Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem mais nem menos, a um homem que vem, legítima e constenciosamente, pedir a mão de uma senhora, que a isso o autorizou. "Não lha dou, porque não quero!" Por que não quer? "Porque não! Não posso dizer o motivo!..." É boa! Tal recusa significa uma ofensa direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de concordar que me deve uma resposta, seja qual for! uma desculpa! uma mentira, muito embora! mas, com todos os diabos! e necessária uma razão qualquer!

— É justo, mas...

— Se me dissesse: "Oponho-me ao casamento, porque antipatizo solenemente com o seu caráter". Sim senhor! Não seria uma razão plausível, mas estaria no seu direito de pai, mas o senhor...

— Perdão! eu não podia dizer semelhante coisa depois de o haver elogiado por várias vezes, e ter-me declarado, como repito, seu amigo e seu apreciador...

— Mas então?! Se é meu amigo, que diabo! diga-me a razão com franqueza! tire-me, por uma vez, deste maldito inferno da dúvida! declare-me o segredo da sua recusa, seja qual for, ainda que uma revelação esmagadora! Estou disposto a aceitar tudo, tudo! menos o mistério, que esse tem sido o tormento da minha vida! Vamos, fale! suplico-lhe por... aquele que caiu assassinado! — E apontou na direção da cruz. Era seu irmão e dizem que meu pai... Pois bem, peço-lhe por ele que me fale com franqueza! Se sabe alguma coisa dos meus antepassados e do meu nascimento, conte-me tudo! Juro-lhe que lhe ficarei reconhecido por isso! Ou, quem sabe? serei tão desprezível a seus olhos, que nem sequer lhe mereça tão miserável prova de confiança?...

— Não! não! ao contrário, meu amigo! Eu até levaria muito em gosto o seu casamento com a minha filha, no caso de que isso tivesse lugar!... E só peço a Deus que lhe depare a ela um marido possuidor das suas boas qualidades e do seu saber; creia, porém, que eu, como bom pai, não devo, de forma alguma, consentir em semelhante união. Cometeria um crime se assim procedesse!...

— Com certeza há parentesco de irmão entre ela e eu!

— Repare que me está ofendendo...

— Pois defenda-se, declarando tudo por uma vez!

— E o senhor promete não se revoltar com o que eu disser?...

— Juro. Fale!

Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar de confidência:

— Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava...

— Eu?!

— O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade...

Raimundo tomou-se lívido. Manuel prosseguiu, no fim de um silêncio:

— Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa mas e por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que, para realizá-lo, teria que quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora.

— Eu nasci escravo?!...

— Sim, pesa-me dizê-lo e não o faria se a isso não fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.

Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. E ali no campo, à sombra daquelas árvores colossais, por onde a espaços a lua se filtrava tristemente, ia Manuel narrando a vida do irmão com a preta Domingas. Quando, em algum ponto hesitava por delicadeza em dizer toda a verdade, o outro pedia-lhe que prosseguisse francamente, guardando na aparência uma tranquilidade fingida. O negociante contou tudo o que sabia.

— Mas que fim levou minha mãe?... a minha verdadeira mãe? perguntou o rapaz, quando aquele terminou, Mataram-na? Venderam-na??? O que fizeram dela?

— Nada disso; soube ainda há pouco que está viva... É aquela pobre idiota de São Brás.

— Meu Deus! exclamou Raimundo, querendo voltar à tapera.

— Que é isso? Vamos! Nada de loucuras! Voltarás noutra ocasião!

Calaram-se ambos. Raimundo, pela primeira vez, sentiu-se infeliz; uma nascente má vontade contra os outros homens formava-se na sua alma ate aí limpa e clara; na pureza do seu caráter o desgosto punha a primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operava-se dentro dele; idéias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança, iam e vinham, atirando-se raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros vagalhões encapelados. Uma só palavra boiava à superfície dos seus pensamentos: "Mulato". E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa nuvem, que escondia todo o seu passado. Idéia parasita, que estrangulava todas as outras idéias.

— Mulato!

Esta só palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: "Ora mire-se!" a razão pela qual diante dele chamavam de meninos os moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: "Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!"

— Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil!

E na brancura daquele caráter imaculado brotou, esfervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores, onde vinham o ódio, a vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade. E no círculo do seu nojo, implacável e extenso, entrava o seu país, e quem este primeiro povoou, e quem então e agora o governava, e seu pai, que o fizera nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. "Pois então de nada lhe valia ter sido bem educado e instruído; de nada lhe valia ser bom e honesto?... Pois naquela odiosa província, seus conterrâneos veriam nele, eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?.." E vinham-lhe então, nítidas à luz crua do seu desalento, as mais rasteiras perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por intermédio de entes ociosos e abjetos, a que ele nunca olhara senão com desprezo. E toda essa miséria, toda essa imundícia, que até então se lhe revelava aos bocadinhos, fazia agora uma grande nuvem negra no seu espírito, porque, gota a gota, a tempestade se formara. E, no meio desse vendaval, um desejo crescia, um único, o desejo de ser amado, de formar uma família. Um abrigo legítimo, onde ele se escondesse para sempre de todos os homens.

Mas o seu desejo só pedia, só queria, só aceitava Ana Rosa, como se o mundo inteiro houvera desaparecido de novo ao redor daquela Eva pálida e comovida, que lhe dera a provar, pela primeira vez, o delicioso veneno do fruto proibido.