O Piolho Viajante/Prólogo da Parte III

Novo prólogo, novas coisas a dizer, novas as desculpas a dar ainda que não há muito de que as pedir, porque eu não meto a obra à força; ponho-a à venda, como já disse. É certo que poderão dizer: — Quem o obrigou a compor? Mas eu posso-lhes responder: — E quem os obriga a comprar? E se nós entramos no dize-tu-direi-eu, então não acabo a obra, e uma de tanto interesse como esta, principalmente para mim se a comprarem, e para aqueles que quiserem abafar a cabeça com a sua carapuça. E mais agora, de Inverno, que é uma consolação. E estão muito baratas, havendo folheto que tem seis carapuças, fora o prólogo, e ei-las aí a menos de trinta réis. Além disso, todas são muito folgadas, andam as cabeças muito à sua vontade, mesmo aquelas que não têm vontade de as trazer. Mas não entre eu a embaraçar-me com coisas de pouca entidade, como me sucedeu no prólogo passado, que me desviei umas poucas de vezes dele. Fiz um prólogo de duas varas de comprido e duas polegadas de largo. Nada, sério.

Esta minha tradução ou original, ou como vossas mercês lhe quiserem chamar, (que eu estou por tudo, uma vez que me desenganei, que todos têm costas, pena de serem defeituosos), há-de ser bastante volumosa, pois há-de botar a quarenta volumes e, por consequência, há-de ter quarenta prólogos, na forma da minha promessa a que não sou capaz de faltar. Mau é que eu tenha prometido. O outro dia prometi eu quatro cachações a um amigo, por causa de umas histórias que tive com ele, e lembrando-me daqueles versos de Camões

Quem no mundo quiser ser
Havido por singular,
Para mais se engrandecer,
Há-de trazer sempre o dar
Nas ancas do prometer,

pus-lhos logo a cavalo no cachaço e ainda fui tão brioso que lhe dei quatro ou cinco de mais, e não esperei pela resposta. E mais, ele queria dar-me os agradecimentos. Torno a dizer: mau será prometer, pois não falto. O que eu nunca prometi foi casamento, mas se o chegar a prometer, a um homem que seja, sou capaz de casar com ele. Nestes termos, não desço da burra. Hei-de pôr um prólogo em cada tomo para o que já tenho feito quarenta e quatro. E faço o mesmo que os poetas cirieiros. Pego num avulso e encaixo-lho no frontispício.

Como aqui se não precisa de consoante, não há muito trabalho. Agora, se acaso não caírem bem, quem comprar a obra troque os prólogos e ponha cada um em seu lugar competente e muito à sua vontade. Ou, se lhe parecer, não o leia. Quantos comprarão livros que podem trazer veneno por dentro, que lhes faça mal aos olhos! Mas não os vêem senão por fora e conforme a encadernação assim os gabam. Cada um do que gosta. Tenho visto casas que, por fora, têm uma arrogância de autor e, por dentro, são casinhas de fazer pó de sapatos. Tornando, porém, ao nosso propósito, o que eu lhes posso segurar dos prólogos, é que os podem comprar e ter em casa sem sustos; que não são furtados; são todos muito meus e eu muito seu dono, e de vossas mercês, se forem servidos, e que lhes faça muito bom proveito se os aceitarem, isto é, por dinheiro.

Parece-me que não será mau tornar este prologozinho a tratar dos senhores Críticos. A matéria é grande, ainda que eu talvez a toque mal. Mas se assim suceder, não é culpa do instrumento. Sou eu que o não sei temperar e não toco a compasso.

Primeiro que tudo vou falar de uns certos duendes que também são críticos, mas andam pelo ar. Não chegam a pôr os pés no chão, fazem as suas fosquinhas mas em não se lhes tendo medo, não tornam a aparecer. E sei um remédio que não falha para estes amigos. Recipe: prólogo e mais prólogo com eles.

Sucede muitas vezes, porque há de tudo, haver uns críticos por negócio. Por exemplo: um que pilhou alguma coisa a dente (sem ser erva) e a vai encaixando por sua. Outro furta uma obrazinha, muda-lhe os pés para a cabeça e como ela vai com o corpo todo, ei-la aí vai! Deixá-la ir que eu não lhe pego. Outro vomita quatro palavras em mau português, (assim como nós), e fica tão inchado que parece um hidrópico de eloquência, e vai passando-as a dinheiro. Deixá-las passar! Vão estes amigos, vem outra obra pela proa, dão-lhe caça e querem metê-la a pique, receando falta de venda à sua, sem primeiro indagarem se a nova pode passar, se é menos má. Que engano! Se é má, melhor para a sua. Se é boa, ainda melhor, que não há tanto quem a entenda e menos quem a compre. Tenho visto quatro e cinco tendas juntas e todas venderem e se é em calçada, a última na descida é a que vende mais, porque o criado de servir não passa dali, vindo debaixo, ainda que a outra logo de cima tenha menos ranço na manteiga ou mais barata de preço. Que isso têm eles, não olham lá para mais cinco réis, menos cinco réis. Com que, Senhores, quem faz obras más não tenha medo por isso, nem lhe importe as que saem. Sai um com um piolho que ferra nas cabeças; sai o outro com um carrapato que se agarra à carne. Hei-de gostar de ver e não hei-de esmagá-lo. Até mesmo se me morder de leve, hei-de rir, e se me emendar algum vício hei-de chorar pelo não ter emendado antes que ele mo denunciasse.

Com que, senhores Críticos de alcunha, deste género deixem sair o que sai. Olhem para a rua dos algibebes e vejam que estão uns ao pé dos outros e todos dão saída à fazenda. O caso está em que a obra seja do trinque, que não metam obras velhas por novas. Que isso também não se atura e a gente não é cega nem tola.

Eis aqui dos tais duendes que eu digo. As avessas dos Escritores e Tradutores sábios e hábeis, de quem há bastantes no reino, e que certamente dizem "a obra que vos dou é minha". Se vós, bons críticos, tendes que emendar, emendai-a e eu vos fico agradecido. Se traduzem, explicam-se da mesma forma mas não temem nem lhes importa que os outros escrevam. Antes gostam que os génios se desenvolvam.

Igualmente o homem bem-educado. Nunca toma os rasgos de sátira como dirigidos a si. Se encontra alguma coisa que lhe toca, emenda-se e gosta da lição.

As Máximas de La Rochefoucauld, e os Caracteres de La Bruyère são obras preciosas. O primeiro, grande observador e conhecedor do coração humano, satirizou com firmeza fazendo a sátira dos cortesãos. O segundo, pintor hábil de costumes, forçou os originais a envergonharem-se e a corrigirem-se. Com que, se é certo haver defeitos, que mal faço eu em contar esses defeitos?

Quem me pode proibir que, passeando eu por um sítio onde está uma casa mal delineada e defeituosa, tire da minha pena de lápis e lhe faça a cópia para depois a mostrar a quem bem me pareça ou a todo o mundo? Onde está aqui o escândalo? Se eu desenhei o que é patente a quem o queira ver!

Se eu encontrar um homem doido na rua e disser simplesmente: — É doido. Ofendi-o? Quanto mais eu pinto um doido mas um doido que eu não conheço. Eu pinto um homem com defeitos, mas não sei quem é este homem. Conheço-lhe o vício, mas não sei onde ele é morador. Se aparece esse homem e grita que eu falei dele, a culpa é sua porque se deu a conhecer. Eu não disse: — Este terreno é bom para couves. Eu disse: — Aqui está a semente que há-de produzir couves. Se alguém lhe quis pegar e a semeou no seu quintal, tenho eu culpa de lhe nascerem? Se eu chamar algum destes e lhe disser: — Vá-se vossemecê botar no mar. Irá ele? Não. E suponhamos nós que vai. Não se perdeu nada, que era um tolo, porque foi.

Senhores críticos, que vossas mercês censurem a obra quanto ao que é meu, concedo. Quanto ao objecto, nego. O que eu digo é oiro. O estro terá, embora, muita liga mas a essência não a perde. Eu falo verdade e esta nunca precisou de enfeite. O Livro dos costumes é um tratado completo. Traçar o triste retrato da sorte da humanidade, para marcar as diferentes épocas que a política faz na felicidade pública, é um serviço que eu faço à minha Pátria. Este género de história, ainda que não sirva para os presentes, porque a sabem, instruirá os vindouros dos costumes dos séculos passados e fá-los-á conhecer o que poderão ser pela experiência do que têm sido.

Eu poderia inventar uma novela (talvez) cheia de beleza e de lances. Mas que se tira de um livro que nos conta uma viagem pueril onde a verdade é sacrificada ao maravilhoso e o útil ao agradável? Onde se nos conta tudo isto que nós podíamos muito bem ignorar sem inconveniente e que de nada nos importa sabê-lo? De que serve pintar uma estéril e brilhante expedição que fez a glória de um navegador ardiloso e que, ainda a ser certa, tanto mal teria feito à humanidade? Eu vou por caminho mais sólido. Os génios medíocres não se apartam nunca das estradas. Eu o sou. Sou muito pouca coisa. Se me tiro do caminho direito, perco-me. Nada de atalhos. Verdades é o que escrevo, costumes é quanto pinto. Digam, embora, o que quiserem, o que nunca poderão dizer, nem os vindouros nem os meus contemporâneos, é: — Este Autor mentiu. Poderão dizer: — Foi um tirano que escreveu, rindo-se dos defeitos da humanidade. Mas o meu coração não tem esse vício, porque eu tenho-os e choro uns e outros. Segui este estilo para ver se me liam e oxalá que nunca tivessem passado por mim muitas práticas do que escrevo. Quantas e quantas vezes, desviando-me de um erro vou cair em dois! E quantas e quantas vezes as minhas circunstâncias me têm precipitado? Por isso, quem ler nos costumes do tempo os vícios do seu próximo, deve ter a cautela de olhá-los com indulgência, pois se em uns são prejuízos de educação e má índole, em outros são... Dizia um dos maiores filósofos do século passado, numa carta que escrevia a um dos seus concidadãos: Vós me julgais tão ligeiramente nas minhas desgraças, que bem se deixa ver o pouco que se trata de escutar os infelizes e que quase sempre se está disposto a fazer-se-lhe um crime das suas infelicidades.

Com que é preciso bastante cautela e caridade a ler os vícios dos outros homens e fazer diferença deles. Uns não merecem desculpa; outros merecem piedade.

Tornemos à crítica. Eu não era bom para crítico porque tenho um defeito: tudo quanto leio dos outros parece-me melhor do que o que eu faço e do que é meu. Se não fossem os amigos que me lison jeiam dizendo-me que é menos mau, eu, por mim, nunca me capacitaria de tal.

Pope diz, num dos seus pensamentos: Logo que examinais um Autor, olhai, primeiro que tudo, qual foi o seu fim, porque não deveis exigir do escrito mais do que o Autor lhe quis meter.

O meu fim está visto qual foi. Se houver outro que o escreva melhor do que eu (que não precisaria muito), eu me calarei. Quando uma obra é aperfeiçoada por outro, ambos têm louvor. A doutrina de Platão foi tão sublime, tão apurada, tão extraordinária, que algumas vezes foi obscura. Pareceu pouco sólida e muitas vezes inconsequente. A de Aristóteles foi mais metódica e mais acomodada à condição humana. A comparação é má a meu respeito mas quantas vezes se compara um cavalo e um homem para demonstrar alguma coisa? Eu vou escrevendo os vícios do tempo, mas talvez sem método, sem ordem e em mau português. Se vier outro que aperfeiçoe, sempre serei lembrado como inventor, ainda que pouco inteligente. A arte de navegar está hoje bastante perfeita. Os nomes dos que a inventaram cheia de erros, andam à ilharga dos que a corrigiram.

Faço as minhas carapuças. Se as cores não são de boa escolha não é culpa minha. Não tenho melhor gosto, é quanto posso. Apeles respondeu a um artista que lhe mostrou uma Vénus adornada com ricos vestidos e que de um ar contente lhe pediu que lhe dissesse o que pensava dela: — Eu vejo que não podendo fazer a tua Vénus bela, a fizeste rica. As avessas eu, não posso enriquecer as minhas carapuças mas são bem talhadas. Tenho boa tesoura mas não coso bem e a minha obra, verdade seja, é mais de descoser.

Basta de pregação. Vamos a concluir: a obra não tem ido mal e eu estou muito obrigado ao público porque a vai comprando apesar dos poucos anúncios que dela se têm dado e da pouca diligência para a sua extracção, e os assinantes serem-no de sua livre vontade. E para que fiquem mais certos que se não querem iludir, daqui por diante basta que dêem os seus nomes e que mandem buscar o folheto pelo competente preço dos assinantes. E quanto basta e é quanto

Vale.