Ao tempo destas cenas de infância, que reviviam agora na memória de D. Flor, o sertão de Quixeramobim era infestado pelas correrias de uma valente nação indígena, que se fizera temida desde os Cratiús até o Jaguaribe.

Era a nação Jucá. Seu nome, que em tupí significa matar, indicava a sanha com que exterminava os inimigos. Os primeiros povoadores a tinham expelido do Inhamuns, onde vivia à margem do rio que ainda conserva seu nome.

Depois de renhidos combates, os Jucás refugiaram-se nos Cratiús, de onde refazendo as perdas sofridas e aproveitando a experiência anterior, se lançaram de novo na ribeira do Jaguaribe, assolando as fazendas e povoados.

Não se tinham animado ainda a assaltar a Oiticica, onde o capitão-mór estus insultos eram constantes. Não se passava semana em que não matassem algum agregado da fazenda, ou não queimassem plantações.

Resolveu o capitão-mór Campelo castigar êsse gentio feroz; e saíu a manteá-lo com uma numerosa bandeira, em que lhe servia de ajudante o Louredo, pai de Arnaldo, que era vaqueano de todo aquele sertão.

Com tal astúcia manobrou o vaqueiro, que os Jucás apanhados de surpresa foram completamente destroçados, ficando prisioneiro seu chefe, o terrível Anahmum, nome que na língua indígena significa irmão do diabo.

Desamparado pelos seus, o formidável guerreiro defendeu-se como um tigre, e só rendeu-se quando o número dos inimigos cresceu a ponto de submergí-lo. Então mandou o capitão-mór amarrá-lo de pés e mãos e conduzí-lo à Oiticica, onde foi metido no calabouço.

Arnaldo não fez parte da bandeira; o Louredo não o quis levar consigo, e êle submeteu-se à vontade paterna. Assistira, porém, a todo o combate como simples curioso; e viu o denôdo do valente Anhamum, que lhe ganhou a admiração e a simpatia.

O rapaz tinha lá para si que os índios não faziam senão defender a sua independência e a posse das terras que lhes pertencia por herança, e de que os forasteiros os iam expulsando. Fôra esta a razão por que não se empenhara em combatê-los.

Quando ao voltar à Oiticica ou viu dizer aos bandeiristas que o chefe dos Jucás estava no calabouço e ia ser supliciado no dia seguinte com estrépito, para exemplo e escarmento do gentio, Arnaldo revoltou-se e protestou a si mesmo salvar Anhamum.

A intenção do capitão-mór fôra efetivamente em princípio fazer do suplício do selvagem um espetáculo de incutir o terror, convocando para assistir a êle todos os moradores conjuntamente com dois outros índios prisioneiros, que levariam aos seus a notícia das torturas infligidas ao chefe.

Mudou, porém, de idéia o Campelo, e resolveu meter Anhamum em uma gaiola de ferro, como se faz com os tigres, e enviá-lo a Lisboa com um procurador, que de sua parte oferecesse a El-rei essa preciosa curiosidade do sertão, ornado de todos os seus petrechos bélicos e insígnias de chefe.

O calabouço da fazenda ficava na extremidade do quartel. Era um poço ou cisterna coberta por alçapão feito de pranchas de pau-ferro, que três homens robustos levantavam com esfôrço por meio de dois moitões onde passavam as correntes.

Foi aí que atiraram Anhamum. Ao conduzí-lo, Moirão que era o cabo da escolta, querendo obrigar o selvagem a deixar o passo grave e consertado para andar mais ligeiro, travou do penacho de plumas de canindé que o chefe trazia à cabeça pregado com resina de almécega, e puxou-o para diante.

Anhamum deitou-lhe um olhar terrível e não deu mais um passo. Foi preciso arrancá-lo dalí, e carregá-lo até o calabouço, onde o lançaram.

Descido o alçapão, o Aleixo Vargas deitou-se por cima dizendo:

— Se tu és irmão do diabo, caboclo mofino, pede a êle que te tire daquí.

Fechou-se a noite. Arnaldo desde a tarde trabalhava na emprêsa em que se empenhara.

Tinha êle meses antes descoberto no sopé da colina em que estava construída a casaria da herdade, um profundo socavão, formado pelo enxurro das águas. A primeira vez que rompendo a balsa, descobriu essa cova, deu-lhe curiosidade de conhecê-la e penetrou dentro.

Era uma galeria subterrânea, que subia em ladeira atá às grossas raízes de uma árvore secular, entre as quais ficava uma pequena abóbada esclarecida por um óculo superior. Reconheceu Arnaldo naquela árvore a oiticica do terreiro e compreendeu como se havia formado o corredor subterrâneo.

Um dos três estipes em que se dividira desde a raiz o tronco da árvore secular, brocado pelo cupim, ficara reduzido ao córtice, que entretanto ainda absorvia bastante seiva para nutrir os ramos superiores. As chuvas enchiam êsse grosso tubo que fazia o efeito de uma calha ou bica, e ia despejar no seio da terra a sua corrente. A erosão das águas, buscando uma saída, havia minado o solo e formado a galeria, pela qual só agachado podia um homem passar.

Lembrou-se Arnaldo, que a meio do corredor ouvira o eco de vozeria que lhe pareceu dos acostados e bandeiristas; do que induziu que estava embaixo do quartel. Foi essa lembrança que o levou naquela tarde a examinar de novo a galeria e estudar a sua direção.

Verificou sua primeira suspeita. O corredor passava por baixo do quartel e ao lado do calabouço. Cavando uns palmos à sua esquerda, deu com a muralha da cisterna, e sem mais demora começou a arrancar a argamassa com a ponta da faca e a tirar os tijolos.

À meia-noite estava concluído o seu trabalho e feita a brecha. Mal tirara o último tijolo sentiu um sôpro nas faces e o contacto de uma mão forte, como a garra de uma onça. Anhamum ouvira o rumor, percebera a natureza do trabalho, e sem compreender a quem devia a salvação esperou-a.

Arnaldo conduziu o selvagem fora da caverna sem trocar uma palavra, alí apontou-lhe a floresta, pronunciando uma palavra tupí:

Taigoara!

O rapazinho não sabia a língua dos selvagens; mas retivera algumas palavras e uma delas era essa, que significa livre.

O selvagem com um ente de seu colar de guerra sarjou a pele, fazendo uma marca simbólica por cima do peito esquerdo, e afastou-se proferindo uma palavra cujo sentido Arnaldo ignorava.

Coapara.

Só depois veio a saber o rapaz que êsse vocábulo traduzia-se em português por camarada, mas queria dizer tanto como amigo dedicado.

No dia seguinte, Flor apareceu triste, com pena do selvagem que supunha condenado a morrer. Arnaldo para desvanecer essa mágoa contou em segrêdo à menina que êle tinha livrado o chefe dos Jucás da prisão.

Poucas horas depois descobriu-se a evasão que deixou tonto por muitos dias ao nosso amigo Moirão. Desde então deu êle por provado que Anhamum era de fato irmão do diabo; do que duvidara até alí por não lhe constar que Satanaz, o verdadeiro, fosse caboclo.

Não se explicava a evasão do selvagem. O alçapão não fôra aberto; Aleixo Vargas dormira em cima; a cisterna estava intacta; somente notou-se que a argamassa de um lado estava fresca; mas atribui-se à umidade.

O capitão-mór estava no auge da sua ira sempre formidável, e embora repelisse a idéia de atrever-se alguém a auxiliar a fuga do selvagem, protestava, se tal coisa houvesse acontecido, condenar o criminoso a ser enterrado vivo.

No meio das indagações que fazia o potentado, apareceu D. Flor, que ouvindo falar do acontecimento, exclamou:

— Eu sei quem foi!

— Quem deu escapula ao gentio? perguntou o capitão-mór.

— Sim, meu pai. Foi Arnaldo.

O capitão-mór ouvindo êsse nome voltou-se com um senho terrível para o rapazinho também alí presente:

— É verdade! disse o filho do Louredo tranquilamente.

Flor não medira o alcance de suas palavras. Maravilhada com o heroísmo de seu camarada, cuidou que os outros o admiravam como ela, e quis restituir a glória da proeza a seu desconhecido autor.

O capitão-mór desprendera o seu grosso e pesado riso.

— Então foste tu, pirralho?... Ora já viram!

— Não foi êle não, meu pai! acudiu Flor, que havia caído em si. Eu estava brincando!

— Que não foi êle, bem o sei, e ainda bem, que essa graça lhe custaria a pele e os ossos.

Fôra o prodigioso da emprêsa que salvara Arnaldo. Se para um homem forte já a consideravam desmarcada, como acreditar que a praticasse um menino?

Arnaldo não dirigiu a Flor a menor exprobração. Foi a menina que, desvanecido o susto, aproximou-se dele prara dizer-lhe em segrêdo:

— Você ia morrendo por minha causa, Arnaldo.

O rapazinho fitou nela os olhos.

— E por quem hei de eu morrer, Flor?

A menina corou e esteve todo êsse dia preocupada.

Por essa época morreu o Louredo. Tinha êle feito uma pequena ausência na fazenda; na volta deitou-se como de costume em sua rede, embrulhou-se nela e no dia seguinte acharam-nomorto.

Arnaldo sofreu profundamente com êste golpe. Todos os sentimentos dêsse menino tinham a pujança e energia de sua organização, o amor como o ódio, a ternura como a ira, eram nele paixões violentas, veradeiras irrupções d’alma.

Pouco depois completou Flor quatorze anos; e desde então um impulso natural começou a separá-la da companhia e intimidade em que até alí vivera com Jaime e Arnaldo. O instinto feminino que desenvolvia-se com a adolescência, inspirava-lhe o recato. Já não se animava a passear só pelo mato com o primo ou o colaço, nem consentia que êles a suspendessem nos braços, como faziam outrora.

Não pensava ela que houvesse algum mal nesses folguedos a que se entregava dantes com tanto prazer; mas agora causavam-lhe uma perturbação, que de certo modo ofendia a sua altivez nativa. Porisso esquivava-se às excursões e passeios, demorando-se mais ao lado de sua mãe, para fazer-lhe companhia.

Alina, que tinha gênio mais romanesco, inventava aventuras caseiras, para substituir as travessuras campestres.

Na novela ou auto da loura menina, Flor vinha a ser princesa ou rainha, cuja formosura enchia o mundo com sua fama, e cuja mão era pretendida por todos os príncipes cristãos. O mais belo, e também o mais bravo dêsses campeões, era o príncipe por excelência, representado na pessoa do sobrinho do capitão-mór.

Ora, a princesa tinha sua dama, assim como o príncipe devia ter seu pagem. Êsses dois papéis tocavam a ela Alina e a Arnaldo, parecendo-lhe de razão que os criados fiéis se reunissem como acontecia nos romances pelo mesmo sentimento que prendia os amos, de modo, que em vez de um, houvesse dois casamentos. Êste desfecho, porém, a autora não o divulgava, deixando que o fio dos acontecimentos o inspirasse.

Tal era o quadro da novela imaginada por Alina. Teve, porém, de sofrer duas alterações. Flor não admitiu Jaime como pretendente à sua mão e assinou-lhe o papel de príncipe irmão. Quanto a Arnaldo era um pagem sempre ausente, em recados, e que só figurava na imaginação da órfã. O vaqueirinho ignorava completamente o romance de Alina, e vindo a sabê-lo, é de crer que não tolerasse o papel subalterno que lhe haviam distribuído, além de comprazer-lhe mais a solidão da floresta do que o terreiro de casa.

Era aos domingos que se faziam as representações da novela, sempre dirigidas por Alina. Em uma dessas condescendeu Flor com os rogos da companheira, e consentiu figurar de noiva. Inprovisou-se então um oratório; arvorou-se uma rapariguinha em padre, vestindo-se-lhe uma saia preta atada ao pescoço, e começou a cerimônia.

Apresentou-se D. Jaime, como campeão vencedor em um torneio imaginário; exaltou suas proezas e a formosura de D. Flor. Depois do que, oferecendo o braço à princesa, avançaram os dois com passo de procissão. Alina, como dama da princesa, carregava a cauda de seu manto real; seguiam-se uma guarda de honra composta de uns seis meninos montados em cavalos de talos de carnaúbas, armados com espadas de taquara, e um bando de crianças de todas as côres e tamanhos, crias da fazenda, endomingados especialmente para essa festa. No coice vinha a velha Filipa fazendo mil visagens.

O préstito devia dar duas voltas ao terreiro para dirigir-se ao altar. Ao começar a segunda, apareceu Arnaldo, que trazia um casal de jaçanãs para Flor. Dando com a procissão parou surpreso, e compreendeu logo a natureza do brinquedo, que os outros aliás trataram logo de explicar.

Esteve o menino uns instantes perplexo; de repente saltou sôbre Jaime, separou-o de Flor, atirou com êle no chão arrancando-lhe as fitas de que vinha enfeitado; correu depois ao altar que deixou em destrôço; e sumiu-se.

Passou fora oito dias.

Foi dessa vez que, vagando pelo campo do lado do Riacho do Sangue, encontrou atirado ao chão um homem nos últimos arrancos.

Arnaldo perguntou-lhe o que tinha:

— Sede! respondeu o morimbundo com a voz extinta.

Cortou o menino uma haste de mandacarú, e tirando os espinhos, espremeu-a na bôca do desconhecido, para aplacar o maior ardor, enquanto ia à busca de uma cacimba, pois era pela sêca e os rios já tinham desaparecido.

Reparou então o menino que o velho tinha as mãos atadas às costas:

— Quem o amarrou?

— Eu mesmo.

Ao gesto de espanto de Arnaldo, acrescentou:

— Eu queria morrer. Mas é horrível!...

Resolvido a deixar-se morrer, o velho armara um laço, cruzara os pulsos nas costas, e metendo-os na corda, fizera disparar o nó que lhe atara as mãos.

Assim, ainda quando quisesse buscar água para matar a sede, não poderia. Condenara-se à mais atroz das mortes, e já tinha sofrido terrível suplício quando o menino o encontrou.

Arnaldo salvou o infeliz e o persuadiu a acompanhá-lo. Jó, pois era êle, sentira desde logo uma atração irresistível para êsse menino; sua existência, que nada já prendia à terra, achara alí um elo misterioso. Deixou-se conduzir e governar por aquela criança.

O vaqueirinho levou Jó à casa materna. A Justa agasalhou o velho, enquanto o filho construia para seu amigo a cabana da várzea. Nunca soube-se na Oiticica donde viera êsse desconhecido; dele apenas se obteve esta informação vaga:

— Eu tinha uma cabana no Frade; os malditos puseram-lhe fogo para queimar-me vivo.

Jó serviu de mestre a Arnaldo. Sentado à soleira da cabana, durante as noites esplêncidas do sertão, o velho deixava que o pensamento divagasse pela intensidade do céu e da terra, e vazava no espírito ávido do sertanejo todos os tesouros de sua experiência.

Arnaldo tinha partilhado das lições que o padre capelão dava a Flor, Alina e Jaime; mas sabidas as primeiras letras, o haviam tirado da escola, visto que um vaqueiro não carecia de mais instrução, e essa mesma já era luxo para muitos que se contentavam em saber contar pelos riscos de carvão.

Foi de Jó que recebeu o menino conhecimentos irregulares, sem método e ligação, porém muito superiores aos que se encontravam no sertão por aquele tempo em pessoas do povo. Entre muitas coisas, ensinou-lhe o velho a língua tupí, na qual era versado.

Suspeitava Arnaldo que havia na existência do velho um doloroso mistério; mas respeitava-o, e essa reserva foi talvez uma das causas da grande afeição que inspirou ao infeliz ancião.