O Subterrâneo do Morro do Castelo/Segunda-feira, 15 de maio de 1905

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Os Tesouros dos Jesuítas editar

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II editar
Os Tesouros (continuação) editar

O padre reitor, velha raposa jesuíta, tinha aos poucos anulado todas as razões do moço religioso, que sentindo-se derrotado, se encheu de ódio e raiva, até ali contidos, assegurando com firmeza:

— Saberá Vossa Paternidade que não irei.

Os dez capitulares ficaram atônitos e pálidos. Conheciam o reitor, a pureza de sua fé, a sua inquebrantável energia. Temeram pelo antigo Marquês.

Entreolhavam-se.

O reitor crispou os dedos e ergueu-se da cátedra.

Era um homem baixo, magro, anguloso. Sob a sua tez tostada havia o baço dos ictéricos. Espanhol de nascimento, professara no Colégio de Évora. Mandado para o Pará, bem cedo mostrara o seu grande ardor apostólico. Andara 20 anos pelo Solimões, levando aos selvagens boas novas do sagrado evangelho. Tinha a confiança que os impressiona e a afabilidade que os rende.

Depois de professo só tivera um desejo — apostolar, e só quisera uma glória — o martírio.

Este, quase obtivera; mas a sua força d’alma afastara-o dele.

Apostolando no Madeira, prisioneiro dos Muras, fora amarrado ao poste do sacrifício. Próximo o fogo crepitava. Um enxame de vespas, repentinamente espantadas com a fumaça, voou feroz. Mordilharam-lhe o corpo, descarnado e nu; transformaram-no numa chaga só.

Quando os selvagens voltaram e contemplaram a sua fisionomia plácida, serena, de olhos untados de beatitude postos ao alto, admiraram aquela insensibilidade, e plenos de superstição soltaram-no respeitosos.

Esfarrapado, doente, esfaimado, Gaspar Hurtado continuou a pregar e fundou quatro aldeias. Era a esse homem que o padre Jouquières tão abruptamente desafiara.

— Porventura estareis esquecido da obedientia coeca, que juraste? indagou o reitor.

Absolutamente, padre Hurtado, não estou. Vossa Paternidade, me parece, é que já está esquecido em demasia.

— Quereis falar da autorização especial que tendes?

— Sim. Do Geral que tudo pode e manda, e quer ser obedecido.

— E quem vos disse que ele está sendo desmandado, Marquês de Fressenec? Quem vos disse?

— Relembrai-lhe os termos, padre Reitor.

— Lerei. Será melhor.

"... concedo-lhe a graça de experimentar as grosserias do mundo, enquanto for para bem dos interesses da Ordem..." Não é isso?

O velho missionário, logo ao tirar a cópia da carta de sob as vestes, tinha dado com o tópico; e a presteza com que o achou dava a entender que muito meditara sobre ela e a interpretara segundo as suas conveniências.

O antigo marquês percebera argutamente a finura do superior; mas quis, no entanto, argumentar.

Tenazmente refutado, caiu em cólera. Com o olhar aceso, levantou-se de um salto da cadeira, dizendo:

— Na terra, não há quem me possa tolher os passos. Desconheço em vós esse poder. Sou homem, sou livre.

Sabei. Quero amar, hei de amar. Não irei; não me apraz...

Os professos cabisbaixos, assistiam com ceticismo àquela revolta. Sabiam até onde ia o poder da Ordem de Jesus. Mediam as suas forças ocultas e os perigos que corriam um perjuro dela.

— Vossa Reverência parece ter esquecido o juramento: perinde ac cadaver, disse o Reitor com calma e reflexão.

— Que me importam os juramentos, os compromissos; que me importam eles, se se antepõem ao meu amor, ao meu coração. Quero o inferno nas minhas duas vidas; quero perseguições, misérias, mas quero amar, Padre, quero amar; quero tê-la bem perto de mim, bem junto, a minha Alda, o meu Amor. Não irei, Padre! Dentro da minha alma, sou rei, sou Deus!

Os professos continuavam calados.

O Reitor levantou-se e mansueto discorreu:

— Deus é rei dentro de vós. Pensais isso? Que engano! Humilhado, despicado com o mundo, há quinze anos, batestes às nossas portas. Vínheis corrido da glória, do amor. De nada vos valeu vossa nobreza, vosso talento... Só a Ordem brilhava nas trevas dessa noite de vossa vida. Batestes e receberam-vos.

Ela, a Ordem, vos deu paz, sossego, abundância; não contente, vos deu também amor. Tudo o que quisestes em França, há quinze anos, a Companhia vos deu aqui. Não vos pediu ela, só obediência. Nada vos exigiu de sacrifício até hoje. Entretanto, ela vos pede agora uma pequena privação, objetais orgulhosamente que sois Deus, que sois rei, que vosso amor não quer... Como se vosso amor não proviesse da Companhia; como se ele não fosse uma esmola da Ordem!

Marquês de Fressenec, sede rei, sede Deus, mas notai bem: o que aqui vistes, não vistes; o que aqui ouvistes, não ouvistes.

Acabando de dizer estas palavras, padre Gaspar voltou-se para o irmão Secretário, recomendando:

— Vossa Reverência fará mercê de lavrar o compromisso de expulsão, de acordo com as Instruções Secretas.

O jesuíta puxou uma folha de papel e pôs-se a escrever.