O Subterrâneo do Morro do Castelo/Sexta-feira, 19 de maio de 1905
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Os Tesouros dos Jesuítas editar
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II editar
Os Tesouros (continuação) editar
Entrementes, o marquês recostado à guarda da curul, pensava. A [ilegível], flexível, por toda a parte segui-lo-ia. Expulso, sem classe, erraria pelas aldeias e vilas. O amor fugir-lhe-ia, porque tinha razão o Reitor, seu amor era uma esmola da Ordem.
Que seria dele? Só, sem parceiros, sem mulher...
Na alma do marquês havia o caos. Tudo se chocava, tudo se baralhava; nem um sentimento definido. Por fim, acovardado, ajoelhou-se e implorou:
— Perdoai-me, padre reitor, perdoai-me.
O semblante do velho religioso resplandeceu e, como de antemão se contasse com aquela cena, ergueu o professo do lajedo, calmo e meigo, e lhe disse:
— Prolfaças que obrastes bem, João.
Em seguida recomendou ao padre secretário:
— Rasgai o ato.
E para os capitulares reunidos:
— Transportemos agora para as salas as riquezas da Ordem.
Os padres se ergueram. Quatro saíram e foram se postar em um compartimento mais alto. Os oito restantes ficaram no mesmo aposento, arredando um grande armário de junto da parede. Retirado o móvel, padre Saraiva introduziu uma talhadeira entre os lajedos, deixando ver um largo conduto inclinado, que começava no aposento a cavaleiro. Com um sistema misto de roldanas, cabos e plano inclinado, as grandes arcas desciam por ele, cada uma de per si. Mal ajuntavam na abertura, dois padres, nas alças da cabeceira, e dois nos pés, tal como as esquifes, removiam as arcazes para as salas próximas.
Todas estas precauções foram tomadas a fim de melhor guardar segredo. Para o aposento superior, as riquezas tinham sido, aos poucos, levadas por escravos e gente a soldada da companhia; e daí para baixo vinham dessa maneira.
Já tinham descido quinze caixas, quando a décima sexta, a das pedrarias, tropeçou no caminho e resistiu à tração.
Era a última, e a noite ia alta. O alampadário tinha a mesma luz e os candelabros haviam recebido novas velas.
A um só tempo os oito padres deram um único puxão no cabo de linho.
A caixa escorregou e, dado o impulso que tinha, veio cair no centro do salão, despedaçando-se.
Diamantes e rubis; coríndons e ametistas; pérolas, crisólitas, turquezas, turmalinas, ágatas; grandes, pequenas e miúdas, semeadas pelo lajedo, brilhavam, faiscando. Tons cambiantes, matizes do verde, do azul, do vermelho, misturavam-se, caldeavam-se. Por baixo da película verde do brilho das esmeraldas havia coriscos azuis do cintilar das safiras. Rubros pingos de sangue vivo desmaiavam à fosca luz das pérolas. Um grande diamante da Índia, principescamente, como um sol, faiscava no centro.
E à indiferente luz da grande alâmpada de prata, febrilmente, uma a uma, os padres, agachados, ficaram a reunir aquelas riquezas dispersas...
Padre João conservava-se a distância, braços cruzados sobre o espaldar da cadeira, na humildade do seu arrependimento; o seu olhar, intenso e vivo, fixava-se nas pedrarias espalhadas pelo lajedo.
Em seu espírito uma íntima revolta flamejava; o marquês relembrava o seu passado, cheio de nobres e cavalheirescas ações; jamais ele se curvara a uma imposição ou a uma ameaça.
Fora sempre um forte nas lutas de política como nas do coração.
Entretanto agora se haviam dobrado os seus joelhos numa súplica e os seus lábios afeitos ao mando tinham murmurado frases de perdão!
E tudo isso por quê?
Um amor intenso, fatal, dominador, obcecava-lhe a razão, apagara-lhe do peito a chama vívida de um orgulho indomado.
A expulsão seria a perda do poderio, da paz monástica do colégio, seria talvez a perda de sua vida; nada disso, porém, era de força a abater o ânimo do clérigo.
O que o obrigara àquela humilhação, à quebra de vaidade de homem, fora o amor, unicamente o amor; fora o receio de perder, com a roupeta de jesuíta, a sua Alda, a sua querida Alda.
A Companhia era forte, era quase onipotente.
Expulso dela, vagaria solitário pelo mundo, e aquela por quem abandonara o mundo, entre as paredes do claustro do Castelo, seria pasto da lubricidade dos outros.
Padre João fizera bem; a vingança viria depois, cedo ou tarde.
E com os braços apoiados no espaldar da velha curul, o jesuíta fixava as pedrarias esparsas, com um sorriso diabólico a brincar-lhe nos lábios.
(Continua)