O Subterrâneo do Morro do Castelo/Sexta-feira, 26 de maio de 1905

Os Subterrâneos do Morro do Castelo editar

D. Garça editar

IV editar

O Encontro editar

O jesuíta chegara ao Rio de Janeiro com a alma despedaçada pelo ciúme, numa sede horrível de vingança.

A certeza de que Duclerc, o ex-amante de Dona Garça, voltara de novo a reconquistar o seu amor perdido, acordava-lhe no coração todos os sentimentos maus que há tantos anos dormiam recalcados pelo seu voto de humildade.

Duclerc, derrotado pelas forças de Bento do Amaral Gurgel, correra sem perda de tempo a procurar o objeto de seu amor, cuja posse fora o motivo que o fizera pedir o comando da aventurosa expedição.

O seu encontro com a condessa foi um misto de ternura e reproches, de queixas e súplicas de perdão.

Por ela longos anos de sofrimento passara na Corte de França; nem a luta acesa da política, nem os saraus aristocráticos de Versailles conseguiram trazer ao seu espírito atribulado um pouco de alívio e de conforto.

E era tão longe a América...

Entretanto, o amor lhe dera forças para tentar a perigosa empresa, a expedição que se preparava contra o Brasil era um magnífico pretexto para tornar a ver a sua querida Dona Garça e súplice, aos seus pés, mendigar-lhe um sorriso, uma palavra de meiguice e de conforto.

E assim, andara pelas secretarias, a bajular os poderosos, até conseguir o ideal sonhado — o comando da expedição conquistadora.

D. Garça ouvia-o orgulhosa, com um sorriso brando de condescendência nos lábios rubros e sensuais.

O seu espírito de mulher gozava o martírio daquele homem poderoso e valente que atravessara os mares, que afrontava os perigos de batalhas sangrentas, só por vê-la, só por obter um olhar dos seus olhos, uma palavra meiga dos seus lábios.

Ela também o amava.

Durante toda a sua vida romanesca, passada entre as paredes frias do convento, muitas vezes a sua alma se desprendia, sonhadora, a corporizar a esbelta figura de Duclerc, o forte mestiço por quem pulsaram tantos corações femininos.

Mas agora o seu espírito satisfeito embalava-se nas palavras cariciosas do seu ex-amante e ela nem ousara falar, de modo que se escapasse dos seus lábios uma palavra que traísse o seu amor.

Era-lhe bem mais agradável escutar aquela música sonora de frases ternas, como se ela lhe fosse de todo indiferente, como se fosse a banalidade estulta de todos os dias.

E Dona Garça dissimulava a sua imensa comoção sorrindo complacente, com piedade quase.

Entretanto Duclerc, na meia luz da velha casa da Rua da Ajuda, tinha no olhar chispas ardentes, fulgurações indescritíveis de uma velha paixão sopitada e que agora explodia com toda a fúria, com todo o império de sua grandeza.

— Já não me amas, Dona Garça?

— E por que não?

— Pois se há tanta frieza nos teus belos olhos, se nem uma palavra me dizes que me dê forças ao ânimo abatido...

— Enganas-te; sou a mesma.

Estas palavras foram ditas num tom de voz glacial, sem uma vibração, sem um colorido que denotasse partirem de uma alma sinceramente amorosa.

Duclerc conservou-se por um instante calado e pensativo. Súbito, como se alguma força estranha o abalasse todo, ergueu-se de mãos crispadas, olhos em chamas, terrível, quase sublime.

— Mulher infame e prostituída, exclamou, tu não compreendes a grandeza de uma paixão veemente e alucinada! Nos braços do padre perdeste os últimos vislumbres do pudor; chafurdaste-te nos vícios e na dissolução; és indigna de mim! Vai-te! E, empurrando-a brutalmente, alucinadamente, o francês voltou as costas, enquanto D. Garça caía por terra, trêmula, branca, da brancura imaculada de um lírio que um tufão despedaçasse.

Mas o velho cavalheirismo gaulês despertara em tempo na alma de Duclerc.

Voltou-se, os braços cruzados sobre o peito.

Dona Garça estava ajoelhada, as mãos postas numa súplica de perdão; dos seus negros olhos românticos, duas grossas lágrimas rolaram sobre a face alvíssima como duas pérolas líquidas sobre as pétalas de uma rosa.

O colar arfava-lhe, ofegante, fazendo oscilar as rendas do corpete.

Era a figura humanizada da Madona em toda a sua beleza mística, temperada de um estranho sabor de pecadora volúpia.

E os seus lábios brancos e trêmulos murmuravam apaixonadamente:

— Amo-te, Duclerc.

O francês tomou-a nos braços carinhosamente, como a uma criança, os seus lábios aproximaram-se como que atraídos por uma força oculta e dominadora e um grande beijo apaixonado e lúbrico soou cristalino e sonoro, selando a reconciliação.

(Continua)