O Subterrâneo do Morro do Castelo/Sexta-feira, 5 de maio de 1905

Os Subterrâneos do Rio de Janeiro editar

Os Tesouros dos Jesuítas editar

Chovia torrencialmente quando apeamos do bonde que nos conduzia à residência daquele senhor alto de bigodes grisalhos e olhar penetrante que ontem apresentamos aos leitores como um grande sabedor das extraordinárias coisas do Morro do Castelo.

Uma ladeira íngreme, lá para os lados de Gamboa, lamacenta e negra a nos recordar o passado Porto Artur com toda a bravura dos vencidos e todo o ridículo dos vencedores.

Céu caliginoso ao alto, de nuvens pardas, pesadas de chuva...

A luz dúbia e intermitente das lamparinas elétricas da Central, que dificilmente nos aponta o caminho da residência do "nosso homem".

Neste cenário trágico nos encaminhamos pelas tortuosas vilas da Gamboa, à cata das preciosas informações que nos prometera de véspera o senhor alto, de olhos penetrantes.

Há alguma dificuldade em encontrar a casa; a escuridão tenebrosa da noite e da iluminação nos não consente distinguir os números dos portais.

Indagamos da vizinhança:

— O Sr. Coelho? Sabe nos dizer onde mora o Sr. Coelho?

— Ali adiante, moço, informa-nos opulenta mulata que goza a noite, refestelada à janela.

Caminhamos; em meio à ladeira íngreme, um velho abanando o cachimbo. Informa-nos:

— O Sr. Coelho mora no 27, passando aquela casa grande, a outra.

O Sr. Coelho, concluímos, é conhecido de toda gente; toda gente nos dá notícias precisas do Sr. Coelho, inda bem...

Encontramos, por fim, o 27, entramos. Casa modesta de empregado público, sem altas ambições; efígies de santos pendem das paredes; há no ambiente o perfume misterioso da gruta de um derviche ou do laboratório de um alquimista.

À luz macilenta de um lâmpada de querosene os nossos olhos divisam retratos em fotogravura de Allan Kardec e Pombal, que "hurlent de se trouver ensemble".

— Tem aqui o Pombal! hein Sr. Coelho?

— O Pombal? Meu grande amigo, meu grande amigo!...

Amável, o dono da casa lamenta o ofício de jornalista.

— Com esta chuva...

— Que quer? É preciso informar o público; o público é exigente, quer novidades a todo transe e agora a novidade que se impõe é o Castelo, são os seus subterrâneos e o senhor é o homem fadado a nos tornar capazes de satisfazer a curiosidade carioca.

O Sr. Coelho desfaz-se em modéstia: não é tanto assim, ele sabe alguma coisa, mas o seu maior prazer é abrir os olhos ao público contra as falsidades dos embusteiros.

E levanta-se para nos trazer seus documentos.

São largas folhas de papel amarelado, cheirando a velho, preciosos pergaminhos em que se mal descobrem caracteres indecifráveis, figuras cabalísticas, coisas intraduzíveis aos nossos olhos profanos.

— Aqui temos nós toda a verdade sobre os tão falados tesouros, diz-nos, num gesto enérgico. Mas antes de enveredar neste caos, uma rápida explicação! As galerias agora encontradas, como já disse, nada significam; são esgotos, são esconderijos e nada mais. O atual edifício do convento compunha-se antigamente de três andares; dois deles estão atualmente soterrados. A porta que conduzia ao Morro, corresponde ao antigo 2o andar do edifício, e estava por conseguinte muito abaixo do primitivo convento.

Todas as galerias que atravessam a montanha com diversos sentidos não foram construídas, como se tem imaginado, no tempo de Pombal, nas vésperas da expulsão da Companhia de Jesus; elas datam da instalação da Companhia no Brasil.

Os jesuítas argutos e previdentes, imaginaram o que, de futuro, lhes poderia suceder; e daí o se aprestarem com tempo, construindo na mesma época em que fizeram as galerias de esgotos e as que serviam para o transporte de mercadorias, os subterrâneos de defesa e os grande depósitos dos seus avultados bens.

Os jesuítas eram senhores e donos de quase todo o Rio de Janeiro; possuíam milhares de escravos, propriedades agrícolas, engenhos de açúcar e casas comerciais. Quando a 10 de maio de 1710 aportou a esta cidade a expedição de João Francisco Duclerc cuja misteriosa morte vai ser em breve conhecida por documentos que possuo, os jesuítas perceberam com fina clarividência que os franceses não deixariam impune o assassinato do seu compatriota. Prevendo assim a expedição vingadora de Duguay Trouin, os padres da Companhia cuidaram de pôr em lugar seguro os tesouros da Ordem, receosos de um provável saque dos franceses. Aproveitaram para este fim os subterrâneos, já construídos, do Castelo e lá encerraram todos os tesouros lavrando-se por esta ocasião uma ata em latim cuja tradução é a seguinte:

Ad perpetuam memoriam editar

"Aos 23 dias do mês de novembro de 1710, reinando El Rei D. João V, sendo capitão-general desta capitania Francisco de Castro Moraes e superior deste Colégio o Padre Martins Gonçalves, por ordem do nosso Rev.mo Geral foram postos à boa guarda, nos subterrâneos que se fabricaram sob este Colégio, no monte do Castelo, as preciosidades e tesouros da ordem nesta província, para ficarem a coberto de uma nova invasão que possa haver. Consiste este tesouro de:—Uma imagem de Santo Inácio de Loiola, de ouro maciço pesando 180 marcos; uma imagem de S. Sebastião e outra de S. José, ambas de ouro maciço pesando cada uma 240 marcos, uma imagem da Santa Virgem, de ouro maciço pesando 290 marcos; a coroa da Santa Virgem, de ouro maciço e pedrarias, pesando, só o ouro, 120 marcos; 1400 barras de ouro de quatro marcos cada uma; dois mil marcos de ouro em pó; dez milhões de cruzados, em moeda velha e três milhões de cruzados em moeda nova, tudo em ouro; onze milhões de cruzados em diamantes e outras pedras preciosas, além de um diamante de 11 oitavas, 9 quilates e 8 grãos, que não está avaliado. Além destes tesouros foi também guardada uma banqueta do altar-mor da Igreja, seis castiçais grandes e um crucifixo, tudo em ouro, pesando 664 marcos. O que tudo foi arrecadado em presença dos nossos padres, lavrando-se duas atas do mesmo teor, das quais uma fica neste colégio e outra segue para Roma a ser entregue ao nosso Rev.mo Geral, dando-se uma cópia autêntica a cada um dos nossos padres. Feita nesta cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, aos 24 dias do mês de novembro do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1710 (Assinados) Martins Gonçalves, superior. —Padre Manuel Soares, visitador. —Frei Juan de Diaz, prior."