O Subterrâneo do Morro do Castelo/Terça-feira, 9 de maio de 1905

Os Subterrâneos do Rio de Janeiro editar

O Tesouro dos Jesuítas editar

Um Caso de Amor editar

Conforme ontem prometemos ao leitor, iniciamos hoje a publicação da interessante narrativa por nós encontrada entre vetustos papéis referentes à história dos jesuítas do morro do Castelo.

Traduzimo-la, como ficou dito, em português moderno, conservando apenas no diálogo o sabor pitoresco característico daquela época, na impossibilidade de conservá-lo em todo o correr da narrativa.

D. Garça editar

I editar
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— Vai-te deitar, Bárbara.

Com o demo, que hoje muito queres transformar às matinas?!...

— Sinhá dona, meu senhor ainda não veio; e o chá?

— Porventura todos os dias esperas Gonçalves para te recolher?

— Não, sinhá dona.

A preta velha, respondendo, ia arrumando cuidadosamente os bilros sobre a almofada das rendas. E, assim que acabou, ergueu-se com dificuldade do assento raso em que estava, e tirou o lenço de Alcobaça, que, em coifa, lhe cobria a cabeça.

Antes, porém, de tomar a benção respeitosa, a escrava aventurou ainda algumas palavras:

— Sinhá dona soube que hoje entrou no Rio a frota do reino?

— Soube... e por quê? indagou pressurosa a senhora.

— Talvez meu senhor não viesse cedo por ter ficado com o governador a ajudar o despacho da correspondência das Minas e Piratininga, chegada na frota. Não é?

— Pode ser... e no que te importa isso?

— Nada, sinhá. Lembrava só.

— Bem. Vai-te deitar, disse então com império à escrava a senhora, descansando sobre a mesa o livro que lia.

Saindo a negra, a mulher que lhe dera ordens ergueu o busto acima do bufete e cravou o olhar num grande armário defronte, reluzente de prata e coberto de lavores de talha, em carvalho.

Pouco tempo esteve assim. Dentro de alguns minutos a pesada peça moveu-se um tanto, sem bulha e suavemente; e da fresta aberta, de roupeta e solidel, surgiu um religioso, trazendo na mão esquerda uma lanterna surda. Mal a depondo sobre um consolo próximo, saudou familiarmente à senhora, que parecia esperá-lo.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Alda.

— Louvado seja, Jean.

Não se sentou logo; antes de fazê-lo sacudiu das mangas da batina alguns salpicos de barro molhado.

Era um homem alto, alongado, de formas finas. Um tanto obeso já, a sua obesidade discrepava lamentavelmente do seu todo aristocrático. Nos seus olhos azuis, ora indagadores, ora mortiços e apagados, às vezes penetrantes, havia um inteiro arsenal de análise d’almas.

Se outro indício não houvesse, este bastava para caracterizar o religioso. Era jesuíta, e professor também,—o que se adivinhava na convicção interior a irradiar-lhe pela fisionomia.

Como não houvesse chovido e ele limpasse das manchas pegajosas de barro umedecido, bem parecia que as havia apanhado ao atravessar um lugar lamacento e úmido.

E o cheiro de terra que, à sua entrada, logo recendeu pela sala, dava a supor que viesse por caminho subterrâneo, guiado pela luz da lanterna.

Tudo fazia acreditar que aquele religioso não passara pelas ruas. Àquelas horas era excepcional transeuntes pela cidade; e um clérigo levantaria maldosas suspeitas.

Em 1709, o Rio de Janeiro era uma pequena cidade de 12 a 15 mil habitantes. Iluminação não havia de espécie alguma, a não ser em alguns nichos devotos, velas ou candeias acesas aqui, ali, nas beiradas dos telhados baixos, povoando as vielas de sombras fantásticas.

Depois do anoitecer, a cidade morria: e somente um ou outro corredor de aventuras ousava atravessar a treva, armado até os dentes.

O jesuíta que ali estava não era desses; viera com certeza por caminho seguro e só dele sabido.

Do Colégio ao alto do Castelo, ele descia para a grande cripta embaixo da praça de S. Sebastião. Não penetrava em qualquer de suas salas. Seguia pelo corredor circular até à galeria de Oeste, que ia ter a Santo Antônio e ao morro da Conceição; e em certa altura, subia em rampa um desvio à direita, feito adrede, até encontrar um segundo, em conveniente plano horizontal, pelo qual penetrava naquela casa da Rua da Ajuda, próximo à de S. José, por um flanco dela que beijava a colina.

Quem da rua contemplasse essa casa, nada encontraria de anormal. Tinha dois pavimentos. No superior se abriam três janelas com sacadas de grade de pau, em xadrez; e estava ocupado pelos donos. O térreo possuía duas largas portas e abrigava alguns escravos com a preciosa cadeirinha, que levava os senhores pelas martirizantes ruas da incipiente cidade.

Tal era a casa de Martim Gonçalves Albernaz, almoxarife do paiol da alfândega da cidade de S. Sebastião.

O seu serviço era luxuoso. Havia baixela de prata e porcelana da Índia; e os portadores de sua liteira tinha libré própria.

As más línguas diziam que nelas se cortava Fazenda Real... mas outros pretendiam que a senhora possuía bens e abundantes cabedais na terra do seu nascimento...

Logo que se sentou, à margem do bufete de jacarandá, na cadeira de alto espaldar e assento de couro lavrado e repregado com pregaria de cobre, o jesuíta disse:

— Dá-me de beber, Alda. Já faz frio.

D. Alda levantou-se e tirou do armário um pichel com vinho branco e dois copos.

De pé, ela era como um frágil caniço. Delgada, esguia, nem a elevação dos seios lhe quebrava a unidade da linha. Por todo o seu corpo, não havia interrupções ou soldagens de partes: era feira de um só traço. Vestia de branco; e as cânulas do cabeção em leque, erguido atrás da nuca, eram como pétalas de uma dália extravagante, sua cabeça de traços regulares figurava como um disforme pistilo imprevisto.

Movia-se lentamente, levemente, como uma cegonha nos banhados.

Quer na rua, quer em casa, vestia-se com rigor.

Era sempre branco o corpete e, aberto triangularmente no colo, permitia entrever a opala de sua pele. O resto do corpo ficava-lhe envolvido no abundante panejamento do vestuário da época.

Os cabelos negros, longe de trazê-los à moda do tempo, repartia-os ao meio da testa, e empastando-os à esquerda e à direita, deixava-os cair sobre as orelhas, unindo-os nas costas em novelo...