Suspiros poéticos e saudades (1865)/O Carcere de Tasso


Em Ferrara

Que vim eu aqui ver? — Uma masmorra
Úmida, estreita, onde respiro apenas!
Se a fronte elevo, o negro teto roço;
Se estendo os braços, a largura abranjo;
Dous passos bastam a medir seu fundo.

Que vim eu aqui ver? — Nomes escritos
De um lado e de outro de centenas de homens,
Que como eu curiosos peregrinos
Vieram visitar este recinto.

Vós, meus olhos, nada vedes;
Mas minha alma no passado
Um vate vê encerrado
Nesta lúgubre prisão.
Aqui chorou longos dias,
Longas noites, longos anos,
Quem por olhos soberanos
Enlouqueceu de paixão.

Tasso aqui como um escravo
Amargurou a existência;
De um senhor a inclemência
A morte aqui lhe quis dar.
Triste ele a ausência carpia
De sua cara princesa.
Seu amor, sua beleza
Causaram só seu penar.

Livre, qual Deus o criara,
Entre ramos adejando,
Melodias exalando,
Passa a vida o rouxinol.
Saúda o sol quando nasce,
Redobra o canto co'o dia,
Enche os ares de harmonia,
Geme ao deitar-se do sol.

Mas se preso na gaiola
Mão tirana o encadeia,
Inda assim ele gorjeia,
Para dar alívio à dor.
Assim, oh grande Torquato,
Neste cárcere horroroso
Gemer te viram saudoso
A Liberdade, e o Amor.

Fado! Fado do vate!... A Itália toda
As doçuras gostava de teus versos;
Gofredo ao céu da glória remontava
Sobre as sonoras asas de teu gênio;
E tu, oh Tasso, aqui nesta masmorra
Como um vil criminoso definhavas!
Fado do vate! rigoroso fado!
Mas Tasso ousou amar de um duque a filha!
Oh Ferrara! cem duques teus cingidos
De áureas c'roas, de púrpura cobertos,
Um só Tasso não valem.
Um vate é mais que um rei. Reis faz o povo,
E a seu grado os desfaz, como do mármore
Tira o escultor um Nume, e quando apraz-lhe
Em simples animal converte-o, ou quebra-o.
Mas tu, sagrado fogo d'harmonia,
Quem te acende nas almas dos poetas?
O mágico poder com que convertes
Aquiles num herói, Páris num fraco,
Acaso dos mortais herdaste, oh vate?
Ou foi prenda do céu a lira tua,
A lira, que imortais sons desferindo,
Vive no tempo, e impõe silêncio à inveja?

Muros desta prisão! muros, que outrora
Um tesouro encerrastes,
Vós, que insensíveis testemunhas fostes
Dos suspiros de Tasso,
Dizei, muros, se acaso vós pudestes
Tolher do engenho as asas?
Ou se o tirano a glória nodoou-lhe?
Vingou a Humanidade a afronta sua,
Como um astro no céu Tasso rutila,
E o nome do tirano negrejando,
Aumenta-lhe o fulgor, que o ilumina.

Mas oh da Providência altos arcanos!
Que mais sofra na vida, quem co'a morte
Nova vida imortal viver começa!
Assim homens ingratos,
Enquanto vivo o mérito premiam!
Ah! consola-te, oh Tasso,
Que o único não foste, que da sorte
Sorveu tragos amargos.
Quase é do vate estrela o infortúnio!
Como os mártires são, que só morrendo
A apoteose recebem.
Aquele a quem a Grécia ergueu altares,
Homero, mendigou de porta em porta!
Tu, oh Ravena, o fugitivo Dante
Viste iracundo praguejar seu fado.
Camões, rival de Tasso, o pão esmola
Ante os olhos de Lísia. E tu, oh Silva,[1]
Da minha Pátria filho,
A fogueira subiste com pé firme,
Que a inocência teus passos vigorava;
E entre as chamas, por mãos ímpias acesas,
Teu último suspiro ao céu subiste.
Ante esse bruto povo,
Que outrora te aplaudira.
Tu Cláudio octogenário,[2] na masmorra
Para a afronta evitar te deste a morte.
Lá de horrenda prisão correm ferrolhos,
A dura porta se abre,
Lá sai Dirceu[3] saudoso, suspirando
Pela cara Marília,
Lá vai morrer proscrito
Nas inóspitas plagas Africanas.
Fado do vate! rigoroso fado!

Porém dos vates
Por que lamento
A triste sorte?
Pode o tormento,
Ou pode a morte,
Inda que seja
Dura, afrontosa,
Fazer que a história
Não perpetue
Sua memória?
Raivosa a inveja
Arme- se embora,
E os acometa.
Do vate a glória,
É qual planeta,
Que no céu mora,
No céu lampeja,
Para honra dos humanos,
E opróbrio dos tiranos.

Ferrara, 3 de maio de 1835

Notas editar

</references>

  1. Antônio José da Silva, natural do Rio de Janeiro, poeta cômico, foi queimado vivo num auto-de-fé, em Lisboa, em 1739, porque, dizia-se, era judeu.
  2. Cláudio Manuel da Costa, conhecido com o nome de Glauceste Saturnino, distinto poeta, de quem correm algumas poesias impressas, sendo acusado, já avançado em anos, e preso com outros ilustres poetas, deu-se a morte na prisão.
  3. Tomás Antônio Gonzaga, tão conhecido com o nome de Dirceu, imortal nas suas liras. Nós lhe consagramos esta nota, porque, de quantos têm lido suas liras e nem todos sabem que reais foram as suas desgraças; comprometido com Cláudio Manuel da Costa, e Alvarenga, foi condenado ao desterro para Moçambique, onde expirou. Como Petrarca, imortalizou-se com suas poesias eróticas, e o nome de sua Marília será tão célebre como o de Laura, quando os brasileiros prezarem mais os seus literatos.