II

 

Como já ficou dito, o livro IV do Paesi é a transcripção de um folheto já publicado em Veneza em 1504. Ora, como a fonte da narrativa do descobrimento do Brasil no Paesi é a mesma da deste folheto, aliás de importancia capital para a historia do descobrimento da America, precizamos examinal-o detidamente.

Harrisse [1] cita-lhe o titulo com duas variantes e o suppunha perdido. Ha, porém, dous exemplares delles, um na Bibliotheca de San Marco, em Veneza, já descripto no supplemento daquelle autor, e o outro, annunciado á venda em Florença em 1904 e logo vendido não sabemos ainda a quem. Thatcher [2] dá um fac-simile do exemplar de San Marco.

E՚ intitulado:

 

Libretto de Tutta la Navigatione de Re de Spagna. De Le Isole et Terrene Nuovaments Trouati.

 

Consiste de 29 paginas impressas, não numeradas, a Tabula começando á pagina 28, tendo no fim da pagina 29:

 

. . . Stampato in Venezia per Albertino Vercellese de Lisona a di X de aprile, MCCCCCIV.

Pois bem; esta celebre obra foi escripta nestas circumstancias, que muito nos importam tambem.

A Republica de Veneza tomava o maior interesse nas navegações e descobrimentos dos Hespanhóes e Portuguezes.

O primeiro historiador,conhecido,do descobrimento da America, além dos proprios Colombo e Vespucio em suas cartas, foi realmente Pedro Martyr de Anghiera, o celebre Italiano que se pôz ao serviço dos Reis de Castella e Aragão, preceptor dos seus filhos, seu Embaixador no Egypto e homem cuja illustração extraordinaria lhe dera vasto circulo de admiradores, amigos e correspondentes. Por occasião do ultimo anniversario do descobrimento da America o presente escriptor publicou nestas columnas [3] extractos do seu Opus Epistolarum,--algumas cartas de Pedro Martyr dirigidas a personagens celebres referindo noticias de Colombo á proporção que as tinha, — e elle as tinha todas completas, graças á sua posição na Côrte, e suas relações pessoaes com o proprio Colombo, Vespucio, e toda a gente de valor. Mais tarde Pedro Martyr escreveu uma narrativa completa das tres primeiras viagens de Colombo e, como de costume naquelle tempo em que a imprensa ainda era difficil e pouco generalizada, fez naturalmente tirar cópias do seu manuscripto latino, talvez para offerecel-as a amigos seus da propria Italia, com os quaes mantinha sustentada correspondencia.

Ora, uma destas cópias cahio em mãos de Servulo Angelo Trevigiano, que servia então de secretario do oratore ou embaixador veneziano junto aos Reis da Hespanha. Pertencia á ordem dos secretarios, que vinha logo após á dos patricios e eram admissiveis a cavalheiros de Malta como se fossem nobres. Fora « segretario e pifaro » do Almirante Domenico Malipiero, o celebre historiador da Republica de Veneza, e depois tambem servio de secretario do oratore Domenico Pisani, em Hespanha, em 1501, e de 1503 a 1505 do oratore Vicenzo Quirini, em Castella, ao qual acompanhou nos seus passeios pela Inglaterra, Belgica e Allemanha. Falleceu em 1508 exercendo então o cargo de secretario da chancellaria ducal. [4] Foi em mãos deste Trevigiano que cahio o manuscripto de Pedro Martyr que consistia então das tres primeiras Decadas. Trevigiano recebia cartas de Malipiero, seu antigo patrono e amigo de sua familia, pedindo-lhe instantemente noticias por menor de todos estes novos descobrimentos: ora, que melhor autoridade do que a de Pedro Martyr? Elle escreveu ao Almirante que ia traduzir no veneziano vulgar esta autorizada narrativa. Em carta, a Malipiero dirigida, datada de Granada 21 de Agosto de 1501, diz Trevigiano:

 

« Circa al tractado del viazo del dicto Columbo, uno valentuomo l՚ha composto, et è una dizeria molto longa. L՚ho copiato et ho la copia apresso di me, ma è si grande che non no modo de mandarla se non a pocho a pocho ».

 

E para mostrar o interesse que tinha em servir ao Almirante, Trevigiano annuncia-lhe que o proprio Colombo, (que então, diz elle, cahira em desgraça e estava sem meios de vida), lhe promettêra mandar traçar em Palos um mappa dos novos descobrimentos para que o Almirante melhor acompanhasse as descripções.

Completa pouco a pouco a traducção e enviada para Veneza, a cujo Senado Malipiero a offertara, cahio o M. S. em mãos de Albertino Vercellèse, de Veneza, que o fez imprimir em 1504, como se vio. De modo que, annos depois, quando Pedro Martyr publicou a sua primeira Decada (1511) já o seu assumpto era conhecido; e no Livro II, Dec. II, da 1ª edição das suas tres Decadas (Alcala, 1516) elle protesta contra Ca da Mosto por se ter apropriado das suas lucubrações! O pobre Cada mosto já havia fallecido antes de romper o seculo XVI, e Pedro Martyr muito provavelmente nunca vira o Libretto ( que bem pudera ter sido impresso particularmente em edição limitadissima ) e só deparara com a sua narrativa no livro que examinamos, o Paesi, em que foi transcripto daquelle, na sua quarta divisão, e que, como já vimos, começa pelas viagens de Cadamosto.

Conhecidos estes dados, podemos agora approximarmo-nos do assumpto que mais de perto nos interessa.

O Almirante Domenico Malipiero não se contentava com pormenores das viagens de Colombo. Elle pedia ao seu joven ex-Secretario que lhe munisse tambem de dados sobre os descobrimentos portuguezes. A correspondencia deste com o Almirante, por este offerecida ao Senado de Veneza, foi dalli passar ás mãos de Soranzo, patricio veneto,e depois delle,ás de dous ou tres possuidores, até que cahio em poder do Rev. Sneyder, de Londres, sendo hoje propriedade de seu filho. Estes manuscriptos nos dão a genesis da descripção do descobrimento do Brasil, de que nos occupamos. [5] Depois da carta de Pero Vaz de Caminha, ora na Torre do Tombo é este o monumento mais antigo que existe sobre aqqelle acontecimento.

Na mesma carta de Trevigiano a Malipiero, a que nos referimos acima, datada de Granada, a 21 de Agosto de 1501, o secretario, depois de fallar na cópia de Pedro Martyr, que começara a fazer, accrescenta:

 

« Ulterius aspetiamo di zorno in zorno da Lysbona el nostro doctore, che lassò lí el nostro magnifico ambassator el qual a mia instantia ha facto un՚opereta del viazo del Calicut, de la qual ne farò copia á la magnificencia vostra. de carta de qual viazo non è possibile haverne che el Re ha messo pena de vita à chi la dà fora. questo è quanto posso far adesso per servitio de la magnificencia vostra. »

 

Assim, Malipiero insta com Trevigiano por informações dos descobrimentos dos Hespanhóes e Portuguezes, e Trevigiano manda-lhe da Hespanha o que póde — inclusive um mappa encommendado em Palos pelo proprio Colombo, — e de Portugal insta a seu turno com o embaixador veneziano para auxilial-o a servir ao Almirante; e este « oratore », elle mesmo compõe um opusenlo sobre a viagem de Pedro Alvares Cabral, que em tempo Trevigiano mandaria ao Almirante, ao qual, porém, avisa desde já que não póde supprir de um mappa da viagem, pois o Rei de Portugal comminava a pena de morte a quem o fornecesse para fóra.

Este embaixador veneziano em Lisboa era o que tem sido conhecido por Lorenzo Cretico, mas cujo nome verdadeiro era Giovanni Matteo Cretico [6]. E՚ elle, por conseguinte, o traductor ou compilador desta primeira descripção impressa do descobrimento da nossa terra.

Escrevendo novamente a Malipiero, poucos dias depois, diz Trevigiano:

 

« Circa el desiderio ha la magnificentia vostra de intender el viazo de Calicut, io li ho scritto altre fiate che aspetto de zorno in zorno Messer Cretico, qual me scrive haverne composto una opereta. Subito ch՚el sia zonto, farò che la magnificentia vostra ne haverà parte. »

 

Eis ahi, pois, a confirmação de que Cretico preparara um opusculo que, assim que o trouxesse á Hespanha, onde era esperado, Trevigiano mandaria ao Almirante.

Escrevendo ainda uma carta de Exigia a 5 de Dezembro do mesmo anno de 1501, nella occorre esta passagem:

 

« Messer Cretico etiam sviscerato perlial et servitor de la magnificentia vostra, la rengratia che la se habi degnato per sue lettere salutarlo cosi amorevolmente, et molto se recomanda, congratulandose ex intimo cordis de le felicità sue. el venne de Portugal fino questo Setembre molto informato del viazo de Calicut, et tuta via compone uno tractato che sarà molto bello et grato à chi se delecta de tal cose. »

 

Ora, esta relação da viagem de Pedro Alvares, assim um tanto demorada, só chegou a Veneza depois da publicação do Libretto, para sahir dahi a 2 1/2 annos no Paesi.

Os herdeiros de Sneyd, na Inglaterra, conservam o valioso codigo tal qual Trevigiano o mandara ao Almirante Malipiero, o segundo a reproducção que do m. s. faz Berchet, a cópia do Paesi é fidelissima, o que não se póde dizer da de Ramuzio.

 

  1. Ob. cit., n. 32.
  2. Christofer Columbus, cap. 96.
  3. Veja-se o Jornal do Commercio de 12 de Outubro de 1904.
  4. Estes dados são extrahidos da nota (I) da pag. 46 dos Carteggi Diplomatici de Brechet.
  5. V. Berchet, ob. cit., pag. 46 e seg.
  6. Tiraboschi, Foscariui, Humboldt, Harrisse e Varnhagen o chamam de Lourenço, todos seguindo a Tiraboschi. Segundo documentos, porém, da Universidade de Pádua (onde foi professor) e da Bibliotheca Marcianna seu nome é Giovanni Matteo. E՚ tambem chamado Zuane (João) no titulo de nomeação como Secretario de Pisani, orador em Castella.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1930 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.