III
Demos agora a traducção litteral da celebre narrativa do Paesi.
O ESTANDARTE REAL AO CAPITÃO
No anno de MCCCCC mandou o serenissimo Rei de Portugal por nome chamado Dom Manuel uma armada sua composta de náos e caravellas para as partes da India : na qual armada havia XII náos e caravellas e a qual tinha por Capitão-geral Pedro Aliares Cabrile, fidalgo; as quaes náos e caravellas partiram bem aprestadas e providas de tudo o de que precizasse por anno e meio: dessas XII náos ordenou que descarregasse X em Calicut e que as duas restantes fossem a um lugar chamado Zafala para procurar contratar mercadorias no dito lugar ; o qual lugar de Zalafa acha-se estar no caminho de Calicut. E assim as outras X náos levassem mercadorias que para a dita viagem lhes fosse necessario. E aos VIII do mez de Março do dito millessimo ficaram promptos e naquelle dia, que era domingo, sahiram desta cidade á distancia de duas milhas, a um lugar chamado Rastello, onde ha uma Igreja chamada Santa Maria de Baller, e ao qual lugar o serenissimo Rei foi em pessoa propria entregar ao Capitão o Estandarte real para a dita armada.
(Item. Na segunda-feira que foi aos IX dias de Março partio a dita armada para sua viagem, com bom tempo.
(Item. Aos XIV do dito mez passou a dita armada pela Ilha da Canaria.
(Item. Aos dias XXII passou pela Ilha do Cabo Verde.
(Item. Aos dias XXIII extravíou-se uma náo da dita armada, de sorte que não mais se recebeu noticia nem até o presente disso se pôde saber.
Aos dias XXIV de Abril que foi a quarta-feira na oitava da Paschoa teve a dita armada vista de uma terra; com o que houve grande prazer. E arribaram a essa terra para verem que terra era: a qual acharam terra muito abundante de arvores e gente que alli andavam pela praia do mar. E lançaram ancora á foz de um pequeno rio. E depois de assim lançadas as ditas ancoras o capitão mandou arriar um batel ao mar pelo qual mandou ver que gente era aquella, e acharam que era gente de côr parda, entre o branco e o preto; e bem dispostos, com cabellos corredios e vão e vêm nús, como nasceram, sem vergonha alguma; e cada um delles trazia seu arco com settas, e como homens que estavam em defesa do dito rio: na dita armada nenhum havia que entendesse o seu idioma e visto isto os do batel voltaram ao capitão e nesse instante se fez noite : na qual noite fez grande temporal. Item. No dia seguinte pela manhã levantamos ancora e com grande temporal andavamos discorrendo a costa para o lado do Norte : o vento era suéste, para vermos se achavamos algum porto aonde se abrigasse e surgisse a dita armada: finalmente acharam um porto aonde lançamos ancora e ahi achamos daquelles homens que andavam em suas almadias pescando ; e um de nossos bateis foi aonde taes homens estavam e seguraram dous delles aos quaes levaram ao Capitão para saber que gente era esta e, como é dito, não se entendiam por falla nem menos por acenos, e naquella noite o Capitão os reteve comsigo; no dia seguinte os mandou vestidos com uma camisa e um vestido e uma carapuça vermelha e por este vestir ficaram muito contentes e maravilhados das cousas que lhes foram mostradas; depois daquillo mandou deital-os á terra.
COSTUMES
Naquelle mesmo dia que era a oitava da Paschoa a XXVI de Abril determinou o Capitão-mór ouvir missa e mandou armar uma tenda naquella praça na qual tenda mandou armar um altar e todos os da dita armada foram a ouvir missa, e a prégação. Aonde se ajuntaram muitos daquelles homens bailando e tangendo os seus chifres. E subitamente quando foi dita a missa todos partiram para seus navios ; e esses naturaes da terra entravam no mar até abaixo dos braços e fazendo prazer e festa. E depois do jantar, o Capitão tendo assim resolvido, voltou á terra a gente da dita armada, colhendo recreio e prazer com aquelles homens da terra ; e começaram a tratar com os da armada. E davam-lhes arcos seus e settas por signaes ; e folhas de papel e peças de panno. E todo esse dia tiveram prazer com essas cousas, e achámos naquelle lugar um rio d՚agua doce ; e de tarde voltamos para os navios.
Item. No dia seguinte ordenou o Capitão-mór que trouxessem agua e lenha e todos os da dita armada foram á terra, e esses homens daquelle lugar nos vinham ajudar na dita lenha e agua e alguns delles foram á terra donde são estes homens; que seria III milhas distante do mar e trouxeram papagaios e uma raiz chamada inhame que é o pão delles e que comem; os da armada lhe davam campainhas e folhas de papel em pagamento das ditas cousas. No qual lugar estivemos V ou antes VI dias. Quanto aos costumes desta gente, são pardos e vão nús sem vergonha e seus cabellos são corredios e trazem a barba pellada, e as palpebras dos olhos; e os sobre-cilios eram pintados com figuras das côres branca e negra e azul; e vermelhos trazem os labios da bocca, isto é, o de baixo é furado e no buraco põem um osso grande como um prego e outros trazem uma pedra azul e verde e longa: e assobiam pelos ditos buracos. As mulheres igualmente vão sem vergonha, e são bellas mulheres de corpo : e os cabellos compridos. E suas casas são de páo, mas cobertas de folhas e ramagem de arvores com muitos esteios de páo no meio das ditas casas; e dos ditos esteios ao muro põem uma rêde de fios de algodão ; e entre uma rêde e outra póde ficar um homem. Fazem (assim) um fogo, de modo que em uma só casa estão 40 e 50 leitos armados a modo de teares.
DESCOBERTA
Naquella terra não vimos ferro, nem menos outros metaes. E talham o páo como pedra. E ha muitas aves de muitas sortes, especialmente papagaios de muitas côres, entre elles alguns do tamanho de gallinhas, e outras aves mui bellas. Das pennas das ditas aves fazem chapéos e barretes que usam. A terra é muito abundante de muitas arvores e de muita agua e milho, e ignames e algodão. Nestes lugares não vimos animaes nenhuns. A terra é grande e não sabemos se é ilha ou terra-firma; mas pela sua extensão acreditamos que seja terra-firma. Ha muito bom ar e estes homens fazem rêdes e são grandes pescadores e pescam varias especies de peixes, entre os quaes vimos um peixe que apanharam, que teria o tamanho de um tonel, mas mais comprido e redondo; e sua cabeça era como a do porco e os olhos pequenos, sem dentes, com as orelhas longas como um braço e de meio braço de largura. Embaixo do corpo havia dous furos e a cauda era comprida, um braço e outro de tanto de largura; e não tinha pés de qualidade alguma; a sua pelle era como a do porco. A pelle tinha um dedo de grossura e suas carnes brancas e gordas como a do porco.
— Item. Nestes dias em que ficámos ahi determinou o Capitão a fazer saber ao nosso Serenissimo Rei o achamento desta terra e de deixar ahi dous homens bandidos e condemnados á morte que para tal effeito tinhamos na dita armada e logo o Capitão despachou um navio que tinha comsigo e com mantimentos e isto além das XII náos sobreditas. O qual navio levou partas ao Rei nas quaes se continha quanto haviamos visto e descoberto. E despachado o dito navio, o Capitão foi á terra e mandou fazer uma cruz muito grande de madeira e mandou a chantar no espaço aberto, assim como tambem o dito ( Capitão ) deixou os dous bandidos no dito lugar, os quaes começaram a chorar. E os homens daquella terra os confortavam e mostravam ter delles piedade.
NÁOS
No outro día, que foi o II de Maio do dicto anno, a armada fez-se de véla em seu caminho para fazer a volta do Cabo da Boa Esperança...
Vê-se bem que ainda que nos não tivesse ficado a incompara vel carta de Pero Vaz de Caminha, ainda assim, graças ao Almirante Malipiero, a Angelo Trevigiano e a Giovanni M. Cretico, teriamos esta narração fiel do descobrimento da nossa terra, impressa, mais de tres seculos antes de ser conhecida a narrativa de Caminha.
Donde colheu Cretico os seus dados ? Resumio elle a carta de Caminha, ou traduzio alguma das dos outros Capitães, além de Cabral, que, no dizer do proprio Caminha, « escreveram a Vossa Altesa a nova do achamento desta vossa terra nova? »
Eis o que impossivel nos é saber. Basta que fique averiguado que a narrativa de Cretico é fiel, parecendo até seguir a de Pero Vaz de Caminha, excepto num equivoco na data de 24 em vez de 22 de Abril, e na historia do peixe-monstro [1].
Em todo o caso, ahi fica descripto como se publicou este venerando documento da Historia Patria.
- ↑ Simão de Vasconcellos na sua Introducção
tambem refere esta historia do peixe-monstro,
que em Vaz de Caminha, não passava de um
tubarão. — Diz o Padre Simão :
« 11. — Aqui no meio destes applausos, quiz tambem o elemento do mar sahir com o seu : e foi, que vomitou a praia um monstro marinho não conhecido e portentoso, recreação dos Portuguezes, por causa insolita, e mui aprazivel aos Indios, por parte de seu gosto. Tinha de grossura mais que a de um tonel, e de comprimais que o de dous : a cabeça, os olhos, a pelle, eram como de porco, e a grossura da pelle era de um dedo. Não tinha dentes, as orelhas tinham feição de Elephante, a cauda a de um covado de comprido, outras de largo. Mostrava já desde aqui a novidade deste monstro, as muitas que anlados os tempos, se descobriram nestas regiões do Brazil. »

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.

