Suspiros poéticos e saudades (1865)/As Saudades/O Genio e a Musica


À Senhora Catalani

Sim, é certo; a Natura não se esgota;
Mas providente de seu seio tira
Um a um esses Gênios, que benigna
Co'os séculos reparte;
Assim, sem fatigar, encômios cobra,
E co'a força do mágico artifício
Os homens doma, os encadeia, e guia.

Dos Gênios a importância se conhece
Quando, enchendo a missão, desaparecem.
Se os rios as campinas fertilizam,
Os lavradores folgam;
Mas extintas as fontes d'alma veia,
Atenuam-se os campos,
E a Natureza em torno empalidece;
Aos pedregosos, descobertos leitos,
O homem chega, e d'água uma só gota,
Para a sede aplacar, não acha, e chora;
Mas lágrimas a sede não saciam!
Então do bem se lembra que gozara,
Do bem que já não goza.

Quem não respeita o Gênio? Quem não sente
Bater-lhe o coração inopinado,
Quando escuta os angélicos acentos
Do ser misterioso,
Que a Natureza inspira?

Na culta Grécia, na guerreira Roma
Endeusada a Harmonia cultos teve;
Entre bárbaros povos, Galos, Francos,
Celtas, Bretões a música divina
Os cruentos costumes adoçava.
Nos Brasílios sertões, duros Tamoios,
Intrépidos Caités ao som se curvam
Da harmonia selvagem;
Como divinos, de Tupã mimosos,
Seus músicos respeitam.
A iluminada Europa
Não desdenha entoar sagrados salmos
No Templo do Senhor; atado ao remo
O pescador ao som das vagas canta,
Canta o proscrito sobre estranhas plagas,
E o peregrino em solitárias selvas.
O canto maternal o infante acalma,
E a cólera dos homens se desarma,
Quando escuta suave melodia.

Eis em campo o guerreiro;
Como brioso marcha, quando troa
A bélica trombeta!
Patrióticos hinos entoando,
Sente para o valor estreito o peito.
Entre selvas de lanças, e de espadas,
Coberto co'uma abóbada de fumo,
Através de pelouros sibilantes,
Assoberbando a morte,
Vai nos braços da glória
Arvorar os pendões vitoriosos!
Na guerra hinos guerreiros,
Na paz canções de amores!
Tanto, oh música, podes sobre os homens,

Que em toda parte imperas!
Sim, que os Anjos, os céus, o sol, os mares,
Os vales, as montanhas, as florestas,
Aves, brutos, e homens,
E essas centenas de milhões de mundos,
Que cadentes vagueiam no infinito,
É um sistema harmônico, perpétuo,
Em glória do Supremo Ser dos seres!

Rara mulher, tu viste humildes servos
Deporem a teus pés dons preciosos,
Que os Reis, e os Potentados te enviavam.
Tu viste os próprios Reis, e seus validos,
E deles homenagem recebeste.
Viste os povos da Europa arrebatados
Aqui e ali ao som de teus acordos,
Que embebiam nos seios d'alma o encanto.
Viste, sim viste inúmeras coroas
Lançadas a teus pés; e prosseguias
Ufana a deslizar as sibilinas
Dulcíssonas cadências.
Eis do Gênio o triunfo!
Glória ao Gênio se dê, perene, eterna!

Sobre um leito de rosas, e de louros,
Hoje repousas, não no esquecimento,
Mas no arroubo da glória:
Como o guerreiro que na paz desfruta,
Vendo os despojos dos vencidos povos,
Grata consolação que a alma embriaga.

Tudo o que te rodeia manifesta
Teu imortal renome.
Altares te ergueria a prisca Grécia,
Se a prisca Grécia te embalasse o berço.
Da própria filha tua a voz canora,
Voz que tão alto sobe, e já promete
Outro novo milagre de harmonia,
Também te louva, e exalta;
Que se o nome dos pais herdam os filhos,
A glória filial os pais sublima.

Ah! não desdenhes receber louvores
Do peregrino incógnito, que passa
Por estrangeiras plagas
Sem arruído, como o mudo sopro
Das matutinas, solitárias auras.

Mil vezes proferir ouvi teu nome
No novo, e velho mundo, e jamais pude
Augurar-me a ventura
De te ver, de te ouvir, e mais ainda,
De receber de ti sinais de estima.

Longe da Pátria o viajor saudoso
Bem raras vezes o prazer encontra.
De cidade em cidade andado tenho,
Reinos atravessei, cantões, e vilas,
Vinguei gelados Alpes, e Apeninos,
Vales desci sombrios, subi torres,
Sempre co'a Pátria minha na lembrança;
Como a andorinha que de teto em teto
Salta, sem que se esqueça de seu ninho.
Tudo da Pátria a idéia me revive,
Mas nada me consola;
Em parte alguma não achei ainda
Um coração de pai, de mãe, de amigo,
Que vendo-me partir, pesar sentisse,
E ao menos me dissesse: — Deus te guie.

Sublime Catalani, tu me honraste!
Talvez única sejas, que te lembres
Do peregrino errante,
Quando ele, já na Pátria rodeado
Dos velhos pais, de irmãos, e dos amigos,
Refrescando a memória das viagens,
Entre, os que viu, prodígios,
Cheio de comoção, citar teu nome,
E dizer: eu a vi; falei com ela!

Pago ao Gênio um tributo merecido,
Que a gratidão me inspira;
Fraco tributo, mas nascido d'alma.

Florença, 20 de novembro de 1834