Acabada a sinfonia ouvem-se três palmas. Sobe o pano.
CENA I
editarAMÁLIA, com um dominó branco, defronte do espelho em atitude de quem é surpreendida. Tira a máscara; ouve forçar a porta da rua; abre-a repentinamente e corre para a alcova dizendo:
AMÁLIA - O que diria ele se me apanhasse assim?!
CENA II
editarTIBÚRCIO (Entrando pela mesma porta) - Cuidei que estivesse fechada; é bom insistir. Até as portas andam aqui fazendo figas à gente! Aqui não está ninguém! Quem bateria, pois, estas palmas? O diabo parece que anda nesta casa! (Ouvem-se novamente as palmas.) É cá fora. Vamos ver quem é; se não for alma do outro mundo.
CENA III
editarALFREDO, JÚLIA e TIBÚRCIO
JÚLIA (Com um dominó azul) - Seu amo já veio? A senhora está aí? Responde, depressa!
TIBÚRCIO (Compassadamente) - Meu amo já entrou... mas tornou a sair; e a senhora está em casa. Creio que está lendo. Os senhores estão muito bonitos assim!
JÚLIA - Vai chamá-la, que tenho muita pressa.
TIBÚRCIO - Sim, minha senhora. (À parte) Esta leva outra. vida. Oh! Que vidão!
CENA IV
editarJÚLIA e ALFREDO
JÚLIA - Nem palavra sobre o nosso intento. Vamos sondar o terreno.
ALFREDO - E como resolvê-la agora sem o necessário? Não há de ir assim...
JÚLIA - Eu sei o que faço. Não seja indiscreto, chiton.
CENA V
editarAMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
AMÁLIA - Sejam bem-vindos. Como estão bonitos! Bravo! O que é isto?
JÚLIA - A nossa visita é meteórica; é uma aparição.
AMÁLIA - Assim parece; mas é brilhante e bem empregada. Aonde vão a estas horas, ao teatro? Estão dois perfeitos venezianos. (Suspira.)
JÚLIA - Viemos do baile do conselheiro. Muita gente e calor de abafar. Está brilhante, animado e com muita novidade, muito luxo e muita alegria. O doutor Almeida, aquele escritor de folhetins, esteve como um foguete de lágrimas: subiu luminoso, cheio de graça e encheu a todos de prazer e admiração. É um tesouro inesgotável, porque é momentoso, fino e decente.
ALFREDO - Não lhe acho a menor graça. Nunca diz uma coisa que faça rir a gente com uma boa gargalhada, com uma destas de tirar a respiração, de tossir e de chorar.
JÚLIA - Lembranças originais; trocadilhos lindíssimos, alusões finíssimas, tudo com um ceticismo de bom gosto. É porque atira setas de flores e epigramas que fazem rir sem malevolência e sofrer com prazer; mas como não há sol sem eclipse, também lá estava o pesado Barão de Itajubá, o famoso arrota-contos. É uma anta batizada.
ALFREDO - Esse é que tem muita graça! Porque as diz de tirar couro e cabelo. Aquela história da criação da mulher é muito engraçada!
AMÁLIA - Já a ouvi, por minha desventura; é uma pilhéria de marinheiro: tem sal de Cabo Verde e cheiro de patacho... O outro é uma dessas almas felizes, dessas boas naturezas, que enchem de um ar festivo e alegre toda a sociedade em que se acha. Quem de mais saliente? Muitos poetas?
JÚLIA - O autor dos Desenganos; aquele moço que ouvimos na Arcádia Brasileira e que foi tão aplaudido; e mais um mocinho do norte, que me dizem ser uma maravilha! Já publicou um volume, que amanhã terei, e está imprimindo outro.
ALFREDO - Ninguém lá fazia caso deles; estavam de roda à parte.
JÚLIA - Fazia o dono da casa, que os convidou e que é um magistrado de muito saber; fazia eu e outras senhoras, que nos prezamos de ser senhoras. Cale-se, que isto não é para os seus beiços. Escuta, Amália, vem cá. (Afastam-se as duas para conversar.)
ALFREDO - (Aproximando-se.) Se é segredo, retiro-me, porque sou discreto.
JÚLIA - É segredo, e de Estado! Retire-se e não seja criança. Se quer imitar o seu modelo, escolhe mal o terreno. Não quero graças.
ALFREDO - (Enquanto as duas falam.) É-me preciso ter cem olhos e mil ouvidos, porque esta minha mulher é das Arábias! Ah! se eu lhe pilhasse a cabeça! Mas eu sempre tenho algum talento, porque a pilhei, com a ajuda de meu pai, que é fino! A outra disse que sim e agora diz que não! O que será? Será o plano? Que contos e que artes não estará urdindo a minha cara-metade, que torna a outra tão pensativa? Hesita, temos coisa séria; a minha insiste e pega-lhe nas mãos, bravo! Temos tempo. (Assenta-se.) Há de convencer e vencer, lá a conheço. Vai fechar-se a sessão secreta, porque há o reboliço da votação. Ainda não; podemos dormir. (Repotreia-se.) Se eu fosse poeta, escreva uma comédia intitulada Cinco bugias de espermacete. Cada vela seria um ato. Primeiro: começava a cena pela despedida de três senhoras na porta da sala e ai consumia uma bugia. Fazia-as entrar na sala de novo e aí travarem uma conversa de modas, irem buscar caixas e caixinhas e caminharem até a porta: apaga-se a bugia. Segundo ato; conversa no escuro até chegar a nova luz e desta vez fazia o criado, bem gaiato já se sabe, vir com dois castiçais: discussão sobre figurinos, revolução na biblioteca e despedida. Terceiro ato, no patamar da escada, consumindo a outra vela só na despedida. Quarto: o previdente criado arrancando da algibeira uma nova vela, esta apaga-se com o vento ao abrir-se a porta; descem aos trambolhões e uma cai. Quinto: volta, amanhece o dia. Era chamado à cena.
JÚLIA (Conversando) - Então, sim? Não há nada, são escrúpulos de criança.
AMÁLIA - Não sei; temo; não sei que ele dirá.
JÚLIA - Não diz nada, antes estima; não te hás de arrepender.
ALFREDO - A confissão foi longa, mas creio que não houve contrição.
AMÁLIA - Hei de ver primeiro. Ele me disse que não gosta dessas coisas.
CENA VI
editarJULIANO e os mais
JULIANO - Já sei que passaram agradavelmente o seu tempo e que o vão findar no teatro italiano. Querem hoje respirar em duas atmosferas.
JÚLIA - Mano, venha conosco, vamos ao baile mascarado, temos um camarote.
JULIANO - A senhora sabe que eu hoje aborreço estes divertimentos e que até nem posso ouvir falar neles. Se não fui à casa do Conselheiro, como hei de ir ao teatro?
ALFREDO - Mas no teatro estamos mascarados, somos de outra raça.
JULIANO - Venho cansado da discussão.
JÚLIA - Da sociedade carnavalesca? Que é a única destes dias.
JULIANO - Coisa mais séria, porque todo tempo é bom. Uns o gastam em futilidades e eu em obras meritórias. Aproveitamos estes dias de sueto geral para uma fundação pia; mas o visgo parlamentar pega por todos os lugares. Há uma mania de orar, de retoricar, que é uma praga de futilidades.
ALFREDO - Por isso não vou lá mais; porque se fosse para comer e gozar, bem, mas para discorrer não; e por aqueles senhores, que conhecemos...
JULIANO (Dando-lhe um beliscão.) A propósito das camas dos dormitórios, discorreram sobre a eletricidade dos metais é influência desta sobre o sono e os sonhos; brigaram pela definição de sonho; houve uma verdadeira descarga psicológica; até se falou de ginástica e de literatura, sem se lembrarem que às nossas órfãs compete uma outra educação. O major Militão, a propósito de umas barras, ou catres, queria que houvesse, no colégio das meninas, uma sala de armas!
ALFREDO - Para as meninas? É muito esquisitão! Florete, pistola, espada, espadão? Ou jogo do pau? Sala de beliscões?
JULIANO - Dizia ele que sendo pobres e destinadas a servir, deveriam estar em estado de defender a casa de seus amos em caso de perigo, ou a si próprias quando saíssem à rua fora de horas. Houve gargalhada velha. O doutor Couto quer uma escola de música vocal, ensino de coros, porque diz ele que será bonito e novo o ver-se as que forem lavadeiras, ensaboarem, esfregarem, baterem a roupa a compasso e que sei eu! Até disse que as cozinheiras poderiam adoçar destarte a monotonia das pancadas do facão. Falou-se muito e divagou-se pelo infinito das frioleiras. Estou cansado e quero repousar esta alma como que alfinetada por tantos pontinhos.
JÚLIA - E dizem os homens que as mulheres é que falam muito! Então, adeus.
JULIANO - Querem alguma coisa para fora? Porque parto.
JÚLIA - Boa viagem, passe bem. Adeus, mana, boa noite. Hei de vir contar-te o que por lá vimos. Dizem que a festa há de ser esplêndida. Vamos ver o que há em outros teatros e passaremos por aqui, talvez...
ALFREDO (Na porta) - Féerique! Iluminação a giorno, pancadaria dobrada, danças novas, trajes de Paris e a nata de toda a corte. (Vai-se) Flores de Santa Catarina, doces da Bahia, sorvetes da Carceller e pinturas do Tagliabue e a banda do Avelar.
AMÁLIA (Na porta) - Venham amanhã, venham amanhã jantar comigo, não se esqueçam. Adeus, adeus.
CENA VII
editarTIBÚRCIO
TIBÚRCIO (Olhando para as paredes) - Vamos a apagar isto. Hoje foi dia de grande movimentação; mas estão baldadas todas as minhas esperanças de ir dançar no baile com a gente graúda. Já vi, fico de plantão. O cavalo já está pronto e temos passeio misterioso. Aquele brejeiro daquele pajem é quem leva a boa vida; dorme até o meio-dia e janta do melhor, quando o há; porque os víveres vão agora escasseando nesta casa e não sei por quê. Este meu amo é boa pessoa, mas há dias em que anda assim com uma cara de defunto desenterrado! Ele hoje entrou e saiu; veio a francesa; veio o francês; veio mais outro diabo; depois entrou aquela bela mulatinha, com aquela caixa tão bonita como ela é que não sei o que tem. É coisa leve; já lhe tomei o peso; há de ser algum vestido para a senhora. É bom que assim seja, porque ela anda sempre tão triste. Ainda os não vi brigar, nem na mesa ouvi uma palavra assim mais forte! E no entanto há alguma coisa entre eles. Eu creio que ela anda meia assombrada como eu. Quando aquele maldito ponteiro vai chegando à meia-noite, sinto logo as carnes arrepiadas. Não ouvem? (Os quadros da sala movem-se.) Santo breve da marea; vou-me já entaipar no meu quarto, a suar como um jumento de carroça. Já estou tremendo! (Deixa uma vela).
CENA VIII
editarJULIANO, falando alto
JULIANO - Ai, ai! São os sinais precursores da hora fatal! Quando acabara isto? Parece-me que ainda está longe o dia da minha liberdade. Ah! se fosse hoje; se eu encontrasse uma mão benéfica que me quebrasse para sempre este encanto terrível, esta dura expiação por um crime que não é meu, mas que devo pagar sem remissão!' Minha pobre mulher! Anjo de candura, vitimado por um destino oculto, por uma lei misteriosa, vim apenas como o cândido cordeiro que geme sobre o altar, sem repelir a morte. Ah! mas o tempo virá em que ambos deslizaremos estações de venturas, dias inefáveis e horas de paraíso. (À parte e em meia voz) E ela está ai, veio ouvir-me... Coitadinha, quer-me tanto e é tão meiga e tão paciente! Eu é que sou um diabrete, um... (Alto, para que Amália o ouça). Vai chegando a hora fatal! Aquele ponteiro, semelhante ao dedo de um fantasma iníquo, já me está apontando o lugar do meu suplício... Mas eu quero dizer-lhe um adeus, eu quero...
CENA IX
editarAMÁLIA e JULIANO
AMÁLIA (Entra com uma vela, olha algum tempo para Juliano e senta-se ao pé dele. Pausa) - Vinha ver se estava aqui o meu livro... Que tens, que estás tão triste? Se desejas, eu tenho ali na sacada aquela planta mágica que me trouxeste e que te dá repouso, que te aplaca e te faz dormir. Já plantei mais dois pés.
JULIANO - Hoje não pode ser: as estrelas, o ar e um não sei quê dentro mo estão dizendo. Sinto em mim, não uma mão de ferro, uma cadeia, mas como um vento impetuoso, como uma onda que me arrebata e me atira para esse deserto d'alma, para esse mundo animal, em que perco tudo e até a forma humana! Já estou sentindo aquela tristeza mortal, aquele abatimento, que me leva a uma letargia, a um frio, ao estado de morte, e que de repente passa ao furor e ao não sei quê, porque depois nada sinto! Ai, ai! mas o dia está breve o dia da minha redenção. (Amália chora) Não chores, meu amor, porque não sou eu o único desgraçado assim condenado. Pressinto que isto vai findar-se.
AMÁLIA - Por muitas vezes devorei este segredo entre as agonias de todas as suspeitas! Parecia-me incrível; pensei mesmo, e deves perdoar-me, que era um meio para encobrir algum crime oculto...
JULIANO - Crime! Eu criminoso, minha filha! Pois tu não vês a minha vida? O crime, por encoberto que seja, é como as cinzas de um vulcão: queima.
AMÁLIA - Não disse bem; mas uma argúcia, inventada para iludir a minha credulidade; porque tu sabes, Juliano, que amor, quanto maior, mais crédulo.
JULIANO - O tempo que rasga o véu de todos os mistérios, que decifra todos os enigmas, há de esclarecer esta triste verdade do meu fado.
AMÁLIA - Hoje estou persuadida da verdade. Procurei esclarecer-me e fiz o que devia...
JULIANO - Como?!
AMÁLIA - Há dias, confesso tudo, e foi no começo da semana passada, creio eu, assim como quem não quer nada, comecei a falar com o nosso médico, o doutor Albano, sobre coisas extraordinárias, sobre o mau-olhado, quebranto, feitiços, e vim a cair neste ponto, tendo ar de duvidar de tudo; porém ele, que é homem sério e instruído, tirou-me de todas as dúvidas com um discurso muito longo e até fez mais do que eu esperava...
JULIANO - Já sei que não acreditas em mim, no teu maior amigo.
AMÁLIA - Espera. É bom duvidar; porque a crença depois da dúvida é forte e fica como a fé.
JULIANO - E ele o que é que disse? (À parte) Bate-me o coração, apesar de tudo.
AMÁLIA - Não te comovas, tranqüiliza-te.
JULIANO - A minha comoção é outra; por esse lado estou forte, mas não calmo. Mas enfim, o que te disse o nosso velho amigo?
AMÁLIA - Trouxe-me uns livros de ciências ocultas, aonde bebi todas as convicções da realidade, desta triste realidade! Decorei todos os meios apontados, orei, fiz promessas, armei-me de coragem e quis eu mesma ferir-te, ser a tua salvadora e a que te quebrasse o encanto; mas, ao chegar da hora, tremi porque tive medo de falhar o golpe e em vez de te salvar, morrer às tuas iras e deixar-te desgraçado.
JULIANO - Fizeste bem. Considera o meu estado, quando ao despertar do encanto, encontrasse o teu cadáver ensangüentado, esquartejado e estraçalhado?! O caçador que erra o tiro no leão não dá mais um passo, porque é logo um cadáver. A pata é veloz.
AMÁLIA - Dize-me, fala, não eras tu mesmo aquele animal escuro, que andou rodeando a casa e uivando no jardim antes de ontem?
JULIANO - Não sei se o era, porque quando fico assim perco a razão: sou um lobo, um furioso animal, um bruto sem razão que não conhece nada! Só sinto fúrias e vontade de morder e espicaçar quanto vivente encontro! E é por isso que agora monto a cavalo e vou para longe, para os lugares silvestres e solitários... Lá para os matos.
AMÁLIA - E o seu pajem não vê isso?
JULIANO - Não; porque ao chegar na estalagem do Andaraí, dou-lhe em aguardente um poderoso narcótico, com o qual ele dorme um sono de pedra até que eu o venha acordar com três gotas d'água fria e umas rezas. E como não há mal que não traga um bem, sabe que afugentei todos os quilombolas daqueles matos e esconderijos.
AMÁLIA - De certo, que os coitadinhos hão de ter medo.
JULIANO - Como que me lembra, como que sonhei, que há dias despedacei um que fugia, subindo a marmita da Tijuca. Lá no alto da pedra, bem no cabeço do pico, filei-lhe os dentes e de lá rolei com ele por todos os precipícios até que acordei em baixo, todo banhado de sangue e de suor. Sei que é triste este meu fadário assim como sei que se há de acabar em breve. Ninguém me pode matar, mas poder-me-á cortar ou aleijar alguma perna ou braço. São poucos os homens verdadeiramente animosos que se podem arriscar a tanto.
AMÁLIA - Sei de tudo, porque tudo isso eu li nos livros que me trouxe o nosso amigo.
JULIANO (À parte) - Aquele Albano é um barra; hei de abraçá-lo. (Para Amália) Ah! são cruéis essas horas da licantropia, vê-se nelas uma eternidade!
AMÁLIA - Com esse mesmo nome deu-me ele um livro francês e bem antigo.
JULIANO (À parte) - Hei de pagar-lhe do verdadeiro Clicquot de la veuve; do fino.
AMÁLIA - Eu li aí e nos outros livros muitos casos! O fato de um desgraçado agarrado em Pádua, a quem cortaram as patas e no mesmo momento se transformou num homem maneta de mãos e pés! Isto foi o que me fez mais medo e o que me faz ainda. Aquele outro caso da mulher de um fidalgo no Auvergne, em França, que atacou o marido em uma caçada e este cortou-lhe uma pata, pondo-a no saco; e qual não foi o seu espanto, no dia seguinte, quando viu que era uma mão de mulher tão alva e tão mimosa e não a pata de um lobo! E mais ainda redobrou de horror ao ver num dos dedos um anel de ouro e nele escrito o seu nome e o de sua própria mulher! Era o anel nupcial! Vendo naquele dia que ela escondia sempre as mãos, avançou-se para ela, reconheceu-a maneta e, louco e irado, a entregou aos tribunais, que a condenaram a morrer queimada! Coitadinha...
JULIANO - Tu bem vês, meu amor, que a mulher também não está isenta deste meu mau fado.
AMÁLIA - Todo o livro de Nynauld é interessante; assim como a obra de Chavincourt, está cheia destes fatos; mas o que é mais sério é o tratado do Prior de Lavai! Aí vi mais mulheres.
JULIANO - Uma vez encontrei uma delas, branca como a neve, linda como um galgo!
AMÁLIA - Aonde? E o que fizeste? Era bonita esse demônio? O que fazia ao pé de ti?
JULIANO - Fugia... As desgraçadas só têm furores. Parece que és ciumenta?! Por isso algumas vezes me ocultavas os livros que então lias! Lembra-me que te vi chorar, muitas vezes, mas pensei que era fruto de algum romance.
AMÁLIA - Como não chorar diante de um espelho que me refletia a tua e a minha desventura? O céu é injusto fazendo pagar o filho inocente pelo pai culpado. Perguntei a ele por que nos primeiros tempos de casado não sofreste deste mal e só depois de um ano.
JULIANO - Por quê? Também não o sei. Há de haver ai alguma lei misteriosa em função do casamento e da mulher. Mas o tempo está a findar. Espera, e tem fé. As vezes penso no suicídio, mas lembro-me de ti e da eternidade e digo a mim mesmo o que te estou dizendo: espera, e tem fé.
AMÁLIA - Não fales nisso. A vida é um dom de Deus e quebrá-la é um crime.
JULIANO - Sei disso, está na minha fé, na minha esperança e no meu amor.
AMÁLIA - E logo hoje em que estava assim meia satisfeita; mas o coração engana as vezes.
JULIANO - Por quê? Por que estavas meia satisfeita somente?
AMÁLIA - Porque pensei que ias ao teatro e que me levarias a um grande baile mascarado que reúne todas essas sociedades carnavalescas.
JULIANO - Que lembrança! Antes assim fosse. Ai! Iria de bom gosto, de muito bom grado! Mas quando... (Olha para o relógio) Quando se tem diante de si uma triste lembrança; quando se sente dentro e fora do corpo uma força invisível que nos arranca do chão e de nós mesmos e nos prende às torturas de um martírio, de urna coisa sem igual na terra, ah! Como pensar se pode em tão risonhas frioleiras? E de que maneira te veio isto à cabeça?
AMÁLIA - Pensei, e não sei como. A solidão é criadora de tantas ilusões...
JULIANO - A solidão é o campo das magnas criações e o centro donde partem os dois caminhos do bem e do mal. A solidão, para que não engendre a ociosidade, combate-se com o trabalho, porque o trabalho é produtor e povoa todos os ermos e desertos.
AMÁLIA - Por isso não é bom estar, e menos ainda sem fazer nada. Os pobres são mais felizes porque têm obrigação no trabalho e nele o seu bem estar. Antes eu fosse pobre; antes fôssemos bem pobres, mas queridos do céu e ricos de alegria.
JULIANO (Olhando para o relógio) - Amália, tu não és uma criatura humana, és um anjo que o céu me deu. Juro que não te mereço, mas protesto que do dia em que se quebrar este meu fado, acharás daí em diante um coração capaz de te acompanhar e talvez de se elevar um dia às alturas do teu amor. Sim sempre te verei a meu lado, como um anjo da guarda; como esse espírito vigilante e protetor que o céu nos envia à hora do nascimento... (Bate meia-noite no relógio) Céus! (Levanta-se num sobressalto) Ora por mim até à estrela d'alva; de joelhos, sempre, não saias da tua alcova, não fales com ninguém, com ninguém absolutamente... (Dá um pulo, entra na porta do gabinete, bate com ela e fecha-a. Ouve-se um grande uivo e algum tempo depois o galope de um cavalo. Amália cai de Joelhos, fica silenciosa, cobrindo ouvidos com ambas as mãos e. reclina-se sobre o sofá.)
CENA X
editarJÚLIA, ALFREDO e AMÁLIA; depois TIBÚRCIO
JÚLIA (À porta) - Está tudo no escuro. Estão dormindo. (Amália levanta-se e conserta-se.)
TIBÚRCIO (Com uma vela) - Aqui está luz. Bem lhe disse que não. A senhora aí está.
JÚLIA - Sozinha e no escuro?
AMÁLIA - Como conheço a casa, vim buscar um livro, um companheiro. Parece-me que estás assustada?! Tens alguma coisa?!!
JÚLIA - Se tenho. Quase que fui esmagada por cavalos, montados por dois furiosos... Aqui mesmo ao pé da casa...
AMÁLIA (À parte) - Foram eles, meu Deus!
JÚLIA - E o senhor Alfredo tratou de salvar a si primeiro do que a mim!
ALFREDO - Bagatela! E o que havia de fazer? Era mesmo negócio de deixar o meu corpinho de lado., ou debaixo do cavalo e dizer: vem cá minha querida Júlia, e suspendê-la no ar, sem amarrotá-la, porque as senhoras depois do perigo querem os seus vestidos arrumados.
JÚLIA - Egoísta. Para outra vez... Veremos.
ALFREDO - Cada um segure no seu corpinho, que não faz tão pouco neste mundo.
JÚLIA - Um bom marido deve morrer para salvar sua mulher.
ALFREDO - Deve viver para salvar-se do sucessor. A senhora é das que preferem quebrar uma perna a amarrotar o vestido. Conheço tudo.
JÚLIA - Eu é que o conheço.
AMÁLIA - Fiquei também assustada. Tibúrcio, traz-me água, açúcar e flor de laranjeira. Querem alguma coisa?
JÚLIA - Beberei também.
AMÁLIA - Três copos.
TIBÚRCIO - Sim, senhora.
CENA XI
editarAMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA - Teu marido foi sempre?
AMÁLIA - Foi, e pediu-me que o esperasse acordada.
JÚLIA - E estás disposta a isso?
AMÁLIA - E por que não, se ele pediu-me? De certo que o farei.
JÚLIA - Pois cumpre com a tua palavra de uma maneira agradável...
AMÁLIA - Como?
JÚLIA - Vem comigo ao baile...
CENA X
editarEntra TIBÚRCIO com os copos
AMÁLIA (Preparando os copos) - Aqui tens. Essa água de flor de laranja veio-me de Paris.
ALFREDO - Mandar buscar água desta em França, estando-se no país das laranjeiras?
JÚLIA - Em casa de ferreiro, espeto de pau. Os senhores, que são tão orgulhosos das grandezas da sua terra, por que não fazem estas coisas boas e ao menos luvas e sapatos? Confesso que quando ouço falar em Paris, parece-me que ouço falar do céu. Aquilo não é Paris, é Paraíso. Este é o seu nome.
ALFREDO - Assim é, porque em toda Europa se diz que é: o paraíso das senhoras, o purgatório da algibeira e o inferno dos cavalos.
JÚLIA - O senhor, que por lá andou, deve saber disso perfeitamente.
ALFREDO - E fui sempre bem comportado. Gostava de dançar e ainda gosto.
JÚLIA - Por isso o mandaram vir logo; parece que dançava a passos largos...
AMÁLIA - Bem; (Para Tibúrcio) deixa isso ai e vai para dentro.
CENA XIII
editarAMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA - Não percamos mais tempo. Alfredo vai buscar um dominó e nós vamos ver aquilo num instante. Manda pôr água no fogo e voltamos a tomar chá, porque estamos bem pertinho do teatro.
AMÁLIA - Se meu marido fosse, iria com muito prazer; mas sem ele, não.
JÚLIA - Tu és das que pensam que uma mulher está em perigo quando não tem o marido ao lado? Pois o marido é quem guarda a gente?
AMÁLIA - Não é, bem o sei.
ALFREDO - Então quem é, vamos lá, que teorias são essas? Temos independência?
AMÁLIA - Temos tudo quando temos a nossa dignidade e o próprio respeito.
JÚLIA - Esta conversa não é de mascarados.
ALFREDO - Apoiado. Vamos, mana.
AMÁLIA - Não brinquem. Tenho deveres a cumprir, e deveres sagrados.
JÚLIA - Tudo se harmoniza neste mundo. Olha, são só dois minutos. Alfredo vai ali, aluga-te um dominó chique, tu o vestes, eu te trago uma máscara nova, porque tenho duas; e vamos ver aquilo que há de estar muito lindo.
AMÁLIA - Não posso, minha irmã.
JÚLIA - Podes, mas não queres.
AMÁLIA - Não quero porque não devo. Se por um incidente qualquer chegasse meu marido à casa e não me achasse?
JÚLIA - Deixava-se-lhe um recado.
AMÁLIA - Não basta. Que idéias lhe passarão pela cabeça vendo esta resolução inesperada? O marido, com quanto não seja um senhor é um amigo a quem devemos todas as boas condescendências.
ALFREDO - Apoiadíssimo! (Ouve-se na rua uma orquestra passar) Bravo, que belo! Se a música influi nos soldados o valor que agora sinto, creio que uma clarineta vale mais do que uma peça de artilharia.
JÚLIA - É a sociedade carnavalesca que passa e vai para o baile. Vamos somente ver-lhe a entrada na sala do teatro. Temos um camarote e lá estamos a cômodo, gozando de tudo a portas fechadas.
ALFREDO - E temos um petisco que mandei aprontar, assim como um chá... Um chá de caravana, que mandei buscar à Rússia.
AMÁLIA - Tudo está muito bom, mas não vou.
JÚLIA - Porque não tens vontade; porque estás ficando uma freira.
AMÁLIA - Vontade não falta, porque sou moça e gosto de divertir-me; mas não posso.
ALFREDO - Dizem que está tudo de uma riqueza estupenda! Assevero que vi os carnavais de Paris e de Roma e que ambos estão longe de emparelhar com o nosso deste ano! Não pensem vocês que lá é melhor! Tudo o que é bom pega com facilidade na nossa terra.
JÚLIA - Alguma coisa, alguma coisa; mas o bom, o bom de todos os tempos, o que fez a Europa grande, não veio. Ainda não sabemos louvar e agradecer.
ALFREDO - E o que estou fazendo agora? (À parte) Isto é comigo, que a não louvo dia e noite, como meu cunhado faz à sua. As mulheres gostam mais dos Judas que das Madalenas (Apontando para si no último caso.) Escutem, minhas senhoras. O programa fala de Apoio, da corte do rei Midas e do seu magnífico acompanhamento. Sei que se recrutaram todas as dançarinas ativas em disponibilidade e exoneradas; sei que há uma dança antiga, uma bacanal em regra; sei que há outra dança pírrica de brancos e vermelhos ensaiada pelo novo mestre que nos veio de Milão; e sei mais que há uma pantomima, que acaba pelo galope infernal. Aí entrarei eu, para lembrar-me do que fui. Eis o que há de acontecer, sem faltar um pontinho.
JÚLIA - Vamos lá, diga tudo.
ALFREDO (Imitando Juliano) - Juliano chega à porta, pergunta pela mana, Tibúrcio responde: "A senhora foi ao baile mascarado". "Sozinha?" pergunta logo. "Não senhor, com a senhora dona Júlia e com o senhor Alfredo". Calado, dá três passos no corredor, pára e pergunta: "A que horas saíram?" "A uma hora". responde o criado; e ele diz com ar severo: "Pois bem, esperarei". O criado anuncia-lhe o bilhete que deixamos em cima da mesa e ele em dois pulos está aqui na sala. De chapéu na cabeça, lê o que tu hás de escrever...
JÚLIA - Ou o senhor, que tem ótima letra...
ALFREDO - Ou eu; e fica pensativo; e do mesmo passo, meia-volta à direita, com outros três pulos está na rua e com mais dois passos no camarote número nove da primeira ordem, contente como sempre. E se viermos antes, pode ignorar...
AMÁLIA - Não brinque assim. Nossa mãe sempre nos dizia: "Não cedam, não fraquejem, pois que dado o primeiro passo lá vai tudo pelo ar fora. Os homens, mesmo os mais estúpidos, sabem pintar tudo às maravilhas, mas depois... "
ALFREDO - Isso era no tempo do rei velho, quando o bigode era um privilégio, o charuto um crime e o teatro uma casa de perdição. Tempos das beatas e dos santarrões em que a roda dos enjeitados engolia mais meninos por noite do que as moendas de um engenho feixes de cana de açúcar. Diga a seu marido que a violentei e ele que venha pelejar comigo.
JÚLIA - As vezes diz coisas boas.
ALFREDO - Obrigado, obrigadíssimo. Vamos a terminar isto, que o tempo corre.
JÚLIA - Vamos, mana, decida-se, tenha caráter e lembre-se que de pequenino é que se torce o pepino.
ALFREDO - Está muito adiantadinha! Pois não há de torcê-lo.
JÚLIA - São dois passos e num instante tudo está pronto. Alfredo, sai e traze-me o mais belo e o mais novo dominó que encontrares. Vê se ainda está lá aquele branco; vai, não faças preço, e volta. Enfim já tens vestes e ninguém nos há de conhecer. (Para Alfredo) Então, que demora é essa?
AMÁLIA - Não saia, mano, porque não precisa.
JÚLIA - Pois então com que hás de ir? Bem, toma o meu dominó que eu vou com o teu chapéu e xales. Está tudo feito. (Quer despir-se).
AMÁLIA - Se eu quisesse ir não precisava do teu dominó nem do outro.
JÚLIA - Por quê?
AMÁLIA - Porque tinha um em casa, e bem bonito e novíssimo.
JÚLIA - Aqui há coisa.
ALFREDO - Há segredo e maganeira. Vamos, porque temos surpresa. Querem ir sozinhas e nos intrigar por lá! Pois já estou prevenido. Esta mana é muito disfarçada...
JÚLIA - Para que esses mistérios? Tens camarote? É melhor irmos juntas.
AMÁLIA - Estão ambos no ar. Eis o caso. As ave-marias trouxeram-me aqui uma caixa com um lindo dominó branco, e na caixa o número da casa e as iniciais de meu marido. Confesso-te que cuidei ser uma agradável surpresa, mas como o vi entrar e sair sem dizer nada, assentei de o não avisar, à espera...
JÚLIA - Basta, basta, basta; já sei o que foi. Ajustaram-se para ir ao baile e brigaram depois. Ele pegou o chapéu e safou-se.
AMÁLIA - Está enganada.
JÚLIA - Pôs-se a panos e fingiu-nos uma viagem... E a que horas?! Que viagem é essa? Quem vê terras à noite dá ordens às estrelas ou então conversa com os bacuraus e com as corujas. Contos e mais contos.
ALFREDO - Talvez esteja lá no teatro a regalar-se.
AMÁLIA - Antes fosse, antes fosse. (Suspira)
JÚLIA - Foi briga; tu amuaste, e... Ainda és ciumenta?
ALFREDO - É e será como todas. O tempo foge, e vamos, já que a senhora não quer.
JÚLIA - Vai buscar o dominó que eu quero vê-lo. Creio que isto não faz mal.
AMÁLIA - Para que, com que fim?
JÚLIA - Se for mais bonito do que o meu, levo-o ao baile, porque tu mo emprestas.
AMÁLIA - Mas eu não sei se ele é meu.
JÚLIA - Pois de quem é? Veio-te à casa e com o nome de teu marido.
AMÁLIA - E se ele resolver mandá-lo? Assim não pagará.
ALFREDO - Apanhei-a com a boca na botija. Que histórias, que disfarce.
AMÁLIA - Para provar-lhes que não há nada e que falo a verdade, vou buscá-lo, porque assim acabam-se as curiosidades e as... suspeitas.
CENA XIV
editarJÚLIA e ALFREDO
JÚLIA - Quero divertir-me porque assim não estarei só. Vosmecê vai ao seu galope, pois vá, que lhe dou plena liberdade no teatro. A sua vizinhança é à vezes muito importuna por causa de certas amizades.
ALFREDO - Obrigadíssimo; mas desejava uma explicação.
JÚLIA - Porque tira a máscara e o seu rosto formoso e resplendente atrai muitas mariposas. Lembra-se do ano atrasado, e era então noivo?
ALFREDO - Eu hoje já não sinto o calor que então sentia. Quanto às suas esperanças de liberdade plena, vá perdendo-as, porque vamos juntos e juntinhos ficaremos.
JÚLIA - Tens medo que eu me perca no camarote? Seremos duas; é mais difícil.
ALFREDO - Tua irmã lá não vai, e estamos gastando um tempo preciosíssimo.
JÚLIA - Há de ir. Tu sabes que quando quero, quero e venço.
ALFREDO - Isso é às vezes comigo, que cedo, porque quero ceder. Ceder é vencer; diz o poeta... que agora me não lembra o nome.
JÚLIA - Há de ir, quer queira ou não queira. Agora fiz tenção. - Ah, ah, ah... que segurança! são duas teimosas, e aqui ficaremos toda a noite a discutir.
JÚLIA - Quer apostar?
ALFREDO - Tudo quanto quiser, minha senhorita.
JÚLIA - Uma caleche? Vamos, não se arrependa...
ALFREDO - Sempre a caleche. Pois vá, pois vá a caleche.
JÚLIA - Dê-me a sua palavra de honra.
ALFREDO - Dou-a. E se a menina não ganhar a aposta?
JÚLIA - Perco a caleche.
ALFREDO - Mas olha que é com cavalos, arreios e librés. (À parte) Desta feita paga o pai e eu fico como quero. (A ela) E onde hás de ir buscar tanto dinheiro? Vamos lá. é bom esclarecer as coisas.
JÚLIA - Em parte alguma.
ALFREDO - Então como é isso?! Apontamos ao ganha-perde?
JÚLIA - Não, senhor; quem perde neste caso sou eu, porque fico Sem a caleche; e quem ganha é o senhor, porque fica com o seu valor na algibeira: dinheiro poupado, dinheiro ganhado.
ALFREDO - Mas então o que é que eu ganho?
JÚLIA - Ah! Ainda não conheces o pai dos filhos de Zebedeu? Bem se vê que estás já com o galope na cabeça e o juízo nos pés. Ela aí vem; lanças em riste, cavaleiro: está aberta a liça; mas não toque trombeta e atabales.
ALFREDO - Hei de pleitear até morrer.
CENA XV
editarAMÁLIA e os dois; TIBÚRCIO com a caixa
(Abrem a caixa, tiram o dominó e o examinam como senhoras)
AMÁLIA - É muito bonito! Se queres ir com ele vai, pouco me importa e até estimo.
JÚLIA - Vou, decerto. Que formosa coisa! E que caixa tão taful!
ALFREDO - Há de te assentar como as penas de uma rola.
JÚLIA - Capisco, as penas. Mana, eu o hei de tratar bem, porque não danço hoje.
ALFREDO - (Batendo na algibeira) Tenho cobres e vai-se a caleche com a vaidade.
AMÁLIA - Queres ver como fica? Dá um ar de corpo admirável, um ar de estátua.
JÚLIA - Certamente que quero vê-lo primeiro no teu corpo. (À parte) Tenho caleche.
ALFREDO - (À parte) Antes que a caleche fuja. (Alto) Menina, veste-o, são horas e mais que horas; vamos, vamos. (Olha para o relógio) E já é tarde.
JÚLIA - (À parte) Firme: seguremos nas rédeas. (Alto) Já vou, mas quero ver como me assenta este dominó, porque temos ambas o mesmo corpo. Mana, para não perder tempo, veste-o, para eu assim melhor vê-lo. De noite não se vê bem no espelho.
AMÁLIA (Pondo o dominó) - Vê como é belo! Que seda, que pregas e que todo magnífico! Anda, veste-o e vai brilhar com ele, não no camarote.
JÚLIA - Vamos lá, complete tudo. É impossível que ele me assente assim!
ALFREDO - São todas duas do mesmo corpo e altura.
JÚLIA - Estás como uma visão encantadora! Se eu fosse um moço, mas um destes moços em regra, caía a teus pés. Tu não sabes o que vales!
AMÁLIA - Não digas asneiras. Toma e parte. (Quer despir-se)
ALFREDO - Ganhei os cobres. Vamos, adeus mana do coração, minha querida maninha.
JÚLIA - Espera. (Para Amália) Amália, dá uma volta, assim no salão, e faze o que tu bem sabes.
AMÁLIA - Darei, mas com estes sapatos é impossível. Enfim, tu não és homem para apreciar bem um pé de moça?
JÚLIA - E por que não? Anda. Como és graciosa! Confesso que sempre tive inveja de ti. Os dedos não são iguais Então, doutor Alfredo?
ALFREDO - Já vai ficando muito tarde.
AMÁLIA - És muito caçoadeira e bem te conheço. Lembra-me bem de quando entrávamos em qualquer baile de tudo quanto se passava: tu é que eras o ímã de todos os olhos, o espelho de todos os agrados e sorrisos!
ALFREDO (A Júlia) - Estão rasgando sedas baratas. Estas não me entram pela algibeira. (À parte) Estás empurrando a caleche para o meu lado...
JÚLIA - (À parte) Quer fugir; mas está segura; vamos. (Alto) Conheço quanto és modesta.
AMÁLIA - Acabou-se. Anda, veste-o e vai florear com teu marido. Eu fico, porque devo ficar. Não é assim, Alfredo? Juliano está fora... E depois...
ALFREDO - Sempre vos conheci como um modelo de sabedoria e de prudência. (À parte) Puxa.
JÚLIA - E também eu. Venha o dominó; porém, espera.
AMÁLIA - Para que mais? Aí o tens, ajuda-me a tirá-lo sem amarrotá-lo.
ALFREDO - (À parte) Venha a caleche. (Alto) Vamos, vamos, seja como for.
JÚLIA - Não vou, não quero. Tenho receios...
ALFREDO - Essa agora é nova e inesperada!
AMÁLIA - Receios de quê? Já é teu e não volto atrás: tenho nisso muito gosto, e gosto particular.
ALFREDO - Gosto de quem tem palavra. Decida, senhora Júlia.
JÚLIA - Aceitarei com uma pequenina condição... Com um favorzinho...
ALFREDO - O favor está feito: não há mais condições. (Faz-lhe momices de escárnio)
JÚLIA - Assim não vou, quero ficar.
AMÁLIA - Pois dize, que eu farei tudo (À parte) Quero acabar com isto, que é tarde.
JÚLIA - Fazes?
AMÁLIA - Se é coisa possível.
JÚLIA - Fácil; é um capricho de mulher.
ALFREDO - Deixe-se de maçar sua irmã. Ensaque-se, ou envolva-se nessa nuvem misteriosa e venha ser a deusa do baile.
JÚLIA - Não seja teimoso, deixe-me.
ALFREDO - Não seja mosca tonta: deixe sua irmã, que já fez tudo. Anda.
AMÁLIA - Estás perdendo tempo.
JÚLIA - Vejo que me não queres aqui e que preferes a solidão.
AMÁLIA - Por Deus, que não. Fala; estou pronta.
JÚLIA - Os homens não entendem disto senão quando estão namorados, mas nós entendemos sempre, porque este é o mundo que eles nos concedem. Quero ver o efeito geral, o todo com suas partes. Quero ver como é que bolsa, como se encurvam as pregas desse dominó em uma volta de valsa, nesse gracioso rodopio, em que as sedas imitam o sussurro da aragem nas folhas das bananeiras, o murmúrio das águas ao respiro da brisa.
ALFREDO - Temos poesia, e eu serei o banana. O respiro? O respiro quero eu.
JÚLIA - As pontas deste laço encarnado, desta divisa com fímbrias d'ouro, devem abrir-se voar como as duas asas de um guará sobre o chamalote das ondas de um rio cristalino.
ALFREDO - Essa poesia me faz agora lembrar uma coisa. Como já não estará a água que encomendei para o chá! Certamente esfriada e choca! Lá tem espelhos às dúzias e cada um do tamanho desta sala. Com esses teus olhos, que vêem estrelas às escuras, poderás ver tudo isso à luz do gás. (À parte) Ela bem puxa, mas o carro já está nas mãos de Faetonte. Há de ir tudo pelos ares.
AMÁLIA - O que ele diz é verdade.
JÚLIA - Estás com sono?
AMÁLIA - Sono? Nenhum. Quem me dera que aqui ficasses toda a noite.
ALFREDO - Fique, minha senhora, mas eu vou estrear o camarote que já paguei, e o chá...
JÚLIA - Façamos aqui o nosso baile.
ALFREDO - E a nossa ceia, que encomendei para a uma hora em ponto?
JÚLIA - Que esfrie, que se perca e que a coma quem quiser. Amália, vai calçar um sapatinho de cetim branco, uma meia de seda lustrosa, meia cor de carne, como no dia do teu noivado.
AMÁLIA - Para que, e para quem? Que luxo de caprichos a esta hora!
JÚLIA - Para mim. Ainda não é tudo. Quero que calces umas luvas novas, luvas lustradas, daquelas que nos vieram de Paris, e ficará tudo assim completo. Conheces agora o motivo, e diz-me se não tenho razão. Não exijo mais nada. Vai cumprir a promessa: eis favor.
ALFREDO (À parte) - Está pondo pedrinhas nas rodas da caleche. (Alto) Não incomodes a mana. Toilette a estas horas, e em casa?
AMÁLIA - (Hesitando) Tens umas idéias! Umas coisas...
JÚLIA - (Enfadada) Pois não vou daqui. A senhora quer faltar à palavra, pois falte.
ALFREDO - Estes sapatinhos me fazem lembrar aqueles sapatinhos-de-judeu de que fala o mestre Camões, que também fora mestre em artes.
AMÁLIA - Pois bem, não te quero mais contrariar. Lembrar-me-ei sempre desta noite. (Despe o dominó)
CENA XVI
editarJÚLIA e ALFREDO
JÚLIA - Abra aquele piano, acenda essas velas, todas; assente-se e ponha-se pronto à voz do mestre-sala. Venceu, meu senhor; está triunfante, mas há de perder ainda alguns minutos. Uma caleche bonita, nova em folha, não se ganha assim. Paciência, perco duas coisas: a caleche e talvez o baile.
ALFREDO - O baile não, mas não te desconsoles, fica para mais tarde a caleche. Esta gente do comércio, estes pés-de-boi não gostam do rapaz que se põe de sege e criados antes de chegar a uma altura sólida; e quase que têm razão. Teu pai será o primeiro.
JÚLIA - Como perdi, não quero ouvir mais razões. Ponha-se no piano e escolha a música. (Enquanto ele abre o piano, escolhe as músicas, acende as velas, Júlia examina o dominó e acha uma carta perfumada na algibeira dele; cheira a carta, arregala os olhos e a guarda consigo) Como é belo! É uma maravilha! (À parte) Todo o meu corpo parece um formigueiro. Que carta será esta? (Alto) Então? Você está hoje um verdadeiro jabuti de atividade. Vamos, luzes e mais luzes.
ALFREDO - (À parte) A caleche é que está mesmo com dois jabutis. (Alto) Tudo está pronto. Quer valsar, pois valsará: é melhor assim para o corpo.
JÚLIA - Percebo. Mais luzes; acenda as serpentinas, que não há baile às escuras.
ALFREDO - A tua vista é que me parece estar se escurecendo. Tem paciência. Logo dar-te-ei o carro da noite, pintado de azul e marchetado de estrelas que é mais belo e não precisa de consertos, de cocheiro, pajem e palha...
JÚLIA - Está triunfante; é generoso, zomba da vencida.
ALFREDO - (Cantando no piano)
"La donna ê mobile,
"Qual piuma al vento,
"Muta d'accento
"E di pensier.
JÚLIA - Bravo, bravíssimo. (Bate palmas e ri-se) É um rouxinol arribado.
CENA XVII
editarAMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
AMÁLIA - Não pensei passar esta noite tão agradavelmente. Sempre foste alegre. Continue, mano.
JÚLIA - Para que pesar a vida com mágoas que não vêm perseguir-nos?
AMÁLIA - De há muito que não ouvia a sua bela voz. Muito bem, continue.
JÚLIA - Agora sim; que pé! Estou contente por te ver contente. Veste outra vez o dominó enquanto eu vou lá dentro.
AMÁLIA - Tem luz, tem tudo na alcova.
JÚLIA - Bem, obrigada. (À parte) Vamos a decifrar este enigma. (Mostra a carta)
CENA XVIII
editarAMÁLIA e ALFREDO
AMÁLIA - Toque, ou cante alguma coisa bonita e moderna.
ALFREDO - Esta sua irmã é das Arábias. Ainda a não vi triste um só dia! O que eu sinto é ela estar-lhe a dar esta maçada, e fora de horas.
AMÁLIA (No espelho) - Nenhuma. O que não farei para agradar-lhe! Olhe, fiz mais porque até trouxe as minhas pulseiras; veja como são bonitas!
ALFREDO - Conheço-as. (À parte) Vaidade! São bichos do diabo. (Alto) É incômodo o vestir-se assim e despir-se depois. Sua irmã é em tudo assim. Comprei uma coleção de plantas com os desenhos de suas flores; que faz ela? Manda chamar um pintor e figurar em perspectiva no muro do jardim aquelas plantas, lá grandes, para ver o efeito. Muda daqui, muda dali; mais um vaso, mais uma estátua, e fez uma coisa linda.
AMÁLIA - Ainda não vi isso e ela nada me disse.
ALFREDO - Surpresa! Não lhe fale nisto que logo me chama de cesto roto. Satisfaça-lhe o capricho; mas eu penso, mana, que não deve de ir ao baile.
AMÁLIA - Não tenho a menor tenção. Se o mano soubesse... Aí vem ela. Estou pronta e até assim. (Mostra-lhe as pulseiras).
CENA XIX
editarJÚLIA, AMÁLIA e ALFREDO
JÚLIA - Assim mesmo, menina; tu é que me adivinhas. Bravo, que efeito maravilhoso! Hás de fazer ficar tudo de boca aberta.
AMÁLIA - As paredes da minha casa são novas e ainda não têm aberturas. Os teus olhos são os que embelezam tudo. Brinca, porque assim te fez o céu.
JÚLIA - Olha, esse teu pezinho e essas tuas mãozinhas são de invejar.
AMÁLIA - São como os teus e tu bem o sabes.
JÚLIA - E por que nunca os artistas quiseram modelar as minhas mãos? Aquele escultor que veio para a estátua eqüestre, quando viu na Academia as tuas mãos em gesso, modeladas pelo Honorato, ficou tão louco que fez delas uma cópia e levou-as para a França. Disse que nunca as vira mais belas e as copiou na estátua da Sévigné.
AMÁLIA - Histórias que te contaram. Nunca soube de tais coisas.
JÚLIA - Pois menina, tu não viste até uns versos no Diário do Rio? As mãos divinas! Os jornais falaram tanto disto! A quem pois se referia o poeta, discorrendo sobre o que vira na Academia? Inocente...
AMÁLIA - Li, é verdade, mas não atinei. Como já não sou deste mundo, considero-me sepultada. Agora estou de luvas...
JÚLIA - As luvas são como a prata em que se encastoa o brilhante. Agora sou eu que toco; saia do piano. Vamos; uma volta de valsa. Estas valsas de Strauss e Lanner não me servem; quero esta do Álbum das Senhoras. (Toca e recita o seguinte, á parte) Agora: bravo! (Dançam) Bravo, madame; bravo, chevalier. Allons, du courage.
1. Prendi o rato na ratoeira,
Tinha o focinho já na melgueira.
2. Ganhei a aposta, tenho calecha;
Vou dar em cheio, bater a brecha.
3. (Estribilho na 2ª parte)
Cartinha amada, foste um tesouro!
Achei o fio, e que fio d'ouro!
4. (Na repetição)
Oh, que finura! Oh, que requinte!!
Tenho calecha, vou dar no vinte.
1. Pobre da tola, está na esparrela;
E o maganão zombando dela.
2. Anda por fora; come a fartar,
E a pobre em casa, e a jejuar.
3. Ele na rua, buscando tocas;
Ela encerrada, comendo mocas!
4. Que padre mestre, que meninório!
Que diplomata, oh! que finório.
1. O meu tratante também queria
Levar a vida na fadaria;
2. Mas eu cortei-lhe o jogo no meio,
Triunfei de rijo, dando-lhe em cheio.
3. e 4. (O estribilho)
1. O meu cunhado não pede meça,
É das Arábias, é fina peça!
2. Tem pão em casa e pede ao vizinho!
Hei de fartá-lo. mas c'um bolinho.
3. É dos que canta de noite, e dia,
A caridade, a filantropia;
4. Deixa a mulher e vai passear:
Bravo, que santo, oh, e que exemplar!
5. Temos pagode; temos mistérios...
Temos vitória e grão salvatério! (Forte)
2. Mato dois coelhos duma pedrada;
Lucro dois frutos duma assentada.
3. e 4. (O estribilho)
AMÁLIA - Pois já cansaste?
ALFREDO - Está satisfeito o capricho; agora toca a retirada.
JÚLIA - Ainda não. (À parte) Tudo vai bem. (Alto) Muto di accento e di pensier. Quero completar o baile. En avant deux! Marche. (Toca uma contradança).
AMÁLIA - Estou gostando.
JÚLIA - Não sabe quanto estimo. Vamos, firme.
ALFREDO - Já lá se vai a minha bela ceia.
JÚLIA - Teremos melhor pratinho. Não é assim, mana?
AMÁLIA - Farei o que quiserem. Temos chá e ótimo café! (Dançam e por fim acabam com o galope).
ALFREDO (Atirando-se no sofá) - Basta, que mais é matar.
AMÁLIA - Estou botando a alma pela boca fora. Há tanto tempo que não danço! Não pensei passar a noite assim!
JÚLIA - Se tu visses como danças! Que graça, e que pezinho! É a mesma coisa! Danças como uma sílfide sobre as flores; és mais leve do que o colibri quando beija as flores da laranjeira.
AMÁLIA - Deixa-te de asneiras. Aí tens o teu dominó, antes que se amarrote.
JÚLIA - Não o tires ainda, pelo amor de Deus. Descansa e conserva por algum tempo essa atmosfera encandecida, senão podes apanhar o mais prosaico de todos os defluxos.
AMÁLIA - Mas isto é tão leve?...
JÚLIA - Não importa. São cinco minutos.
ALFREDO - Escute a mestra, mas não faça tudo; porque os mestres também erram.
AMÁLIA - Pareceu-me que recitaste versos?
ALFREDO - Eu só ouvi o ruflar das sedas e a voz do mestre-sala.
JÚLIA - Recitei uma Balíata nova, novíssima, que ainda não está acabada.
AMÁLIA - Da tua composição, já se sabe?
JÚLIA - Justamente. É um drama em miniatura.
ALFREDO - Se fosse em outra hora, pedia para ouvi-lo.
AMÁLIA - Recita-me o começo, um pedacinho somente...
JÚLIA - Quanto estiver completo. Hás de chorar e gostar muito.
ALFREDO - Está fechada a sessão. Vamos; porque vamos ao enterro do baile. Deixemos a mana.
JÚLIA - Se ela vai conosco. Vamos, mana, temos o palácio de Aladino! Pinturas do Tagliabue, flores de Santa Catarina doces da Bahia, bufete do ilegível, banda dos (- ilegível -), orquestra de Banquete e olhos brasileiros. Vamos, vamos.
AMÁLIA - Quem! Eu? Que esperança!
JÚLIA - Temos lá mais uma surpresa, um lance inesperado que te há de agradar muito e pelo qual me ficarás eternamente obrigada.
AMÁLIA - Que artes estás inventando!
JÚLIA - Hás de ver teu marido, alegre, voejando como Um beija-flor.
ALFREDO - Esta só lembra do diabo. (À parte) Vejam que lembrança! Isto não é mulher!
AMÁLIA - Só eu sei para onde ele foi, coitado.
JÚLIA - Coitado de ti. (Com acento forte) Lá está.
AMÁLIA (Treme) - Não fales assim, que esse teu "lá está", mana, como que estalou em minha alma e a fustigou. Dize-me, sabes de alguma coisa; dize-me pelo amor de Deus.
ALFREDO - Não sabe nada, não há nada: tudo isto é uma armadilha. (À parte) Isto é o demônio encarnado.
JÚLIA - Quero que vás; e não me perguntes.
AMÁLIA - Não, não vou. (Quer despir-se, mas a outra a impede).
ALFREDO - Faz muito bem, mana, faz muito bem assim, dispa-se.
JÚLIA - São justamente as horas e agora vão eles para a ceia, e ele também... Também sua súcia.
AMÁLIA - Eles quem? Ele quem? Que súcia?
ALFREDO - Está improvisando, mana, está improvisando.
JÚLIA - Cale-se, não seja criança. (Ao ouvido da irmã) A sociedade dos lobisomens, só composta de homens casados, de maridinhos fiéis...
ALFREDO (À parte) - Não larga a presa! Pode dizer adeus à caleche.
AMÁLIA (Alto) - Os lobisomens! Pois o que é isso? (À parte) Eu tremo, meu Deus, eu tremo!
ALFREDO - Ah, ah, ah, que idéia, que invenção! (À parte) Isto é o diabo! É de enforcar a gente.
JÚLIA - É uma sociedade de certos santinhos, de homens muito sérios, que correm à meia-noite o fado com as fadas. Não entra para ela um só homem solteiro.
AMÁLIA - E quem é que te disse tudo isto?
JÚLIA - Alfredo.
ALFREDO - Ora esta é boa! Para que me estás comprometendo? Eu não disse nada.
JÚLIA - Cale-se; e veja que sou discreta.
ALFREDO - Mana, tudo isto é mentira. Não vá ao baile, fique em casa.
JÚLIA - Também o senhor era da sociedade, mas eu o fiz demitir-se e jurar de lá não pôr mais os pezinhos. Vamos, Amália, que ele lá está.
AMÁLIA - Pois sim, eu vou; mas não, não vou. Não vou, porque... porque...
JÚLIA - Tens medo de ser conhecida com esse dominó? pois toma o meu.
AMÁLIA (Pensativa) - Não é por isso, mas... isto... não é por isso...
JÚLIA - Olha: esse laço vermelho é um sinal; e apenas tu chegares, logo conhecerás se há ou não alguma coisa. Olha que eu vejo longe...
AMÁLIA - Estás me envenenando com suspeitas que nunca tive.
JÚLIA - Vamos, e num quarto de horas estamos aqui (Fala-lhe ao ouvido)
ALFREDO (À parte) - Está forrando as rodas da caleche com veludo, para que eu não ouça o barulho e pague sem remissão. Pois não?...
AMÁLIA (Firme) - Vamos, vamos, sem perder um segundo.
ALFREDO - Pois está resolvida!
AMÁLIA (Perturbada) - Por um instante somente; é só entrar e sair.
JÚLIA - Vamos que é tempo.
AMÁLIA (Toca a campainha) - Ó lá, estás dormindo?
ALFREDO - Lasciate ogni speranza. Adeus, caleche.
CENA XX
editarTIBÚRCIO, AMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
AMÁLIA - Apaga as velas; fica na escada, que eu já volto.
FIM DO PRIMEIRO ATO