concebem os adultos ocidentais. Quando faz parte de qualquer jogo, posto em prática pela sua “dona”, a boneca geralmente tem um papel passivo e meramente figurativo, não de in-terlocutor mas de ouvinte e espectador, cabendo à fantasia da criança produzir respostas que alimentem o diálogo imaginariamente compartilhado.

Porém, nem no amor nem no jogo a personagem principal do Sítio se equipara às bo-necas convencionais, pois ela não é nenhum doce de candura, não representa a inocência nem a ternura, seu vocabulário não inclui a palavra passividade. Emília constitui um caso raro de complexidade e hibridismo no rol das personagens infantis de que se tem notícia: é uma perfeita fusão de boneca e gente. Ela mesma afirma, em A Chave do Tamanho, que sofreu uma evolução e de boneca passou a ser gente:

E você, Emília? Se também diminuiu então é que é gente – mas toda vida ouvi dizer que era boneca. Como explica o mistério?

Muito simples. Eu de fato já fui boneca de pano, mas evolui e virei gente (...)
De simples bruxa de pano, fui evoluindo, virei gentinha e hoje sou o cérebro e a vontade do Visconde. (p. 52)

O encontro de Emília com líderes do mundo em guerra é um bom exemplo para ilustrar o poder que seu criador, Lobato, lhe confere, uma vez que ela interfere no processo histórico vivido pela humanidade. Ela comunica ao ditador Hitler que aquela semana de “redução” fora apenas uma advertência e ordena que o “chefe da guerra” faça a paz sob a pena de perder completamente o tamanho caso desobedeça:

Cheguei até cá para dizer uma coisa só – que o Tamanho morreu e quem acabou com o Tamanho eu sei quem foi, e sei também que essa pessoa é a única que pode novamente restituir aos homens o antigo e querido tamanho – aquele tamanho malvado, porque se não fosse ele os homens não teriam sido maus como foram, fazedores de guerra, afundadores de navios, judiadores de judeus. Mas esse misterioso alguém só restaurará o tamanho perdido se tiver a certeza de que Vossa Excelência vai fazer a paz, e botar fora todas as horrendas armas que andou amontoando, e desse momento em diante viverá na mesma paz e harmonia com o mundo em que vivem as formigas e abelhas. (p. 68)

Na seqüência desse diálogo com Hitler, a boneca assume uma postura ditatorial, pois ela é a responsável pelas mudanças ocorridas no tamanho das pessoas e, portanto, a única capaz de mudar esta situação:

Se o Tamanho voltar e tudo ficar como estava, quero vida nova, sem guerras, sem ódios, sem matanças, sem armas, está entendo? E se por acaso algum dos futuros poderosos romper o trato, o castigo será terrível. Sabe qual será o castigo? O tal “Alguém” desce

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Proj. História, São Paulo, (32), p. 371-383, jun. 2006