como o sofrimento de D. Benta com as notícias de morte, provocadas pelos bombardeios.

As reflexões sobre a guerra presentes em A Chave do Tamanho parecem fundamentadas numa concepção darwinista do ser humano e de seu modo de estar no mundo. É possível, no entanto, perceber a influência das idéias rousseaunianas de civilização e barbárie: “A situação era tão nova que as suas velhas idéias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que D. Benta havia explicado, isto é, que nossas idéias são filhas de nossa experiência” (p. 11).

Em A Chave do Tamanho, Monteiro Lobato, na figura de Emília, descreve-nos o processo percorrido pela razão, desde seu estado bruto, de natureza, até o estado de civilidade, percurso bastante próximo de formulações de Rousseau relativas à barbárie e à civilidade. Destituída de seu tamanho, Emília vê-se diante de seu estado bárbaro, bruto, inclusive sem roupas, ou seja, diante de seu estado de natureza.


A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava.(...). Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas idéias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente a uma condição inferior àquela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem.[13]


Em A Chave do Tamanho, Emília, encolhida, passa a trilhar o caminho de teknos que a levará à civilidade, ou seja, ela precisa refazer em sua história todo o processo civilizatório, entendendo-se a civilização como fruto de um estado de barbárie produzido pelas necessidades do homem. Isso deveria ser bom se, como disse Rousseau, na nova condição, não houvesse abusos que levassem o homem a um estado ainda mais inferior que aquele de onde saiu. Emília, num processo civilizatório acelerado em relação aos outros seres “apequenados”, abusa de sua condição: mente, omite, manipula, com o objetivo de justificar sua iniciativa de desligar a chave.

Essa mesma idéia de processo histórico é defendida de forma mais sistemática pela personagem Dr. Barnes, que vê no surgimento da cultura pós-fogo um dispositivo gerador das guerras, uma vez que fogo e guerra têm origem no desejo humano pela dominação. São, portanto, várias as vozes que retomam a idéia de D. Benta, de que a guerra é resultado de um processo civilizatório da humanidade e de certa maneira, pode ser entendida

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Proj. História, São Paulo, (32), p. 371-383, jun. 2006