realidade. Assim, o foco do título no melro enfatiza a ideia de linguagem atividade como mediadora, em que a imagem real não é recebida passivamente, como se fosse possível (ou útil) atingir um absoluto natural bruto. Qualquer apreciação sobre o mundo é realidade mediada, também ela completamente real. Como defendido no aforismo de “Adagia” presente no subtítulo desta seção, “things seen are things as seen” (STEVENS, 1957, s/p), e esse é o único real com que podemos realmente lidar, visto que não escapamos de nossa posição única de uma mente que interpreta o mundo. É nessa chave que pretendo reler o poema, fazendo referência a algumas das excelentes sugestões de Sukenick, embora considere que, muitas vezes, a f1m de sustentar o tipo de leitura que está fazendo, o autor “puxe” a interpretação para um lado ou outro - o que, aliás, é impossível não fazer, provavelmente, na leitura desse poema, devido à sua forte tendência declarada à obscuridade.

De início (seção I), é apresentado o primeiro contraponto entre melro e a realidade: “Among twenty snowy mountains, / The only moving thing / Was the eye of the blackbird” (STEVENS, 1987, p. 40). A imagem é simples: focaliza-se o olho movente do melro na paisagem estática. Este primeiro melro parece estar, de primeira, em sentido literal, porem, quando se lê o poema algumas vezes (e se percebe que é inútil tentar ler o melro somente de forma denotativa), f1ca claro que se trata de um simples termo de comparação. Sukenick sugere que o melro aí é um “centro de composição”, um ponto a partir do qual se forma, como numa pintura paisagística, a imagem completa (SUKENICK, 1967, p. 73). Do ponto de vista da teoria stevensiana da metáfora, o melro movendo os olhos torna a paisagem estática, pois ele funciona como estabelecimento de uma diferença. Nesse caso, o caráter relativo (no sentido de conceituação compreendida como uma realidade relacional, não substancialista) aparece em um tom misterioso, porém ainda pacif1cado. Não é isso que acontece em outros casos, como em XI.

Ocorre que esse sentido misterioso da realidade como relação construída a partir da mente, frequentemente de tom francamente místico, assume muitas vezes, neste e em outros poemas, outro tipo de inquietação pouco serena. Há um estado de ânimo, um mood, que é frequente em alguns poemas de Stevens, e parece ser aquele que ele descreveu em seus ensaios como o início da percepção metafórica (lembrando que a semelhança é a metáfora básica) e é aqui lido como a ideia de linguagem atividade: uma proliferação caótica de semelhanças que são percebidas como angustiantes. O exemplo evidente deste estado de

ânimo é “Domination of Black” (STEVENS, 1987, p. 18-21), em que o eu lírico, ao relacionar instintivamente a cor dos açafrões, o grito dos pavões e o giro dos planetas (a

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 92-113, 2016. ISSNe 2175-7917