Leminski quanto em sua capacidade de articular um repertório amplo e eclético. Porém permanece em segundo plano as possibilidades hermenêuticas dessa poesia, que talvez aí esteja outra força lírica e possa abrir outros caminhos de estudos. Vejamos o poema seguinte, sem título, publicado em Distraídos Venceremos:

rio do mistério
o que seria de mim
se me levassem a sério? (LEMINSKI, 1987, p. 116)

Numa leitura rápida, o poema parece condensar os fatores apontados anteriormente: o eu-lírico zomba de si mesmo indagando sobre a seriedade que não lhe é dedicada. O resultado: um efeito auto-irônico ao ver-se incompreendido, e zomba dessa situação. Mas o poema não se esgota aí. Vejamos com mais atenção.

Há um ludismo anagramático (STAROBINSKI, 1974) que permeia todo o poema: o termo rio perpassa pelo termo “mistério” no primeiro verso: mistéRIO; também perpassa pelo segundo verso: “O que seRIa de mim”; e pelo último termo do poema: “séRIO”. Isso pode ser compreendido como um recurso icônico (PEIRCE, 2011) ao constituir o movimento de um rio, com o seu percurso. Porém ele, o rio, é ocultado nesses anagramas e por isso se constitui no “rio do mistério”, ao qual no primeiro verso é estabelecido como interlocutor: “você, rio do mistério, o que seria de mim...”. E o que isso significa? Significa que levá-lo a sério pode revelar aspectos menos evidentes, que passam despercebidos sob os olhos que seguem o curso mais evidente da zombaria, incluindo, talvez, o próprio eu-lírico, que se vê como um desconhecido por si mesmo.

Aqui vale lembrar o epíteto cunhado por Leyla Perrone-Moisés, quando chama o poeta de “samurai-malandro”. Podemos visualizar ambas as facetas: o lado “samurai” se enquadraria na sofisticação dos jogos formais, das ambiguidades, que requerem maior atenção por parte do leitor; o lado “malandro” se enquadraria no efeito humorístico e auto-irônico que o poema, de imediato, constitui. Porém é conveniente dar um passo além e indagar: o que isso tudo significa? Mais especificamente: o que isso pode significar tendo em vista a temática do “mistério”?

Vejamos: será que o termo “rio” é utilizado apenas como o substantivo que designa as águas que correm por determinado percurso, fazendo, assim, do “rio” um interlocutor? Ou será o termo empregado como verbo “rir”, na primeira pessoa do singular do tempo presente, fazendo do “mistério” um objeto de riso? Ambos os efeitos são válidos e levam ao mesmo lugar: a indagação final, sobre ser “levado a sério”. E é ela que se sobressai no poema. Se no primeiro verso há uma dubiedade gerada pelo que está dito – o “rio”, que pode ser substantivo

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Anu. Lit., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 154-169, 2016. ISSNe 2175-7917